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Historia infantil de todo o homem que sente....

LOPO DE SOUZA—Herança de lagrimas.

Venceslau Taveira nasceu na comarca de Lamego em 1795. Como filho segundo de casa vinculada, foi destinado desde o berço a frade cruzio ou benedictino. Estudou humanidades em Coimbra, e entrou, portanto, a noviciar na casa capitular de Tibães aos quinze annos.

Findo o anno de prova, o profitente interrogado manifestou que lhe faltava genio e fé para ser frade como cumpria.

Fr. Francisco de S. Luiz, então conventual em Tibães, e, mais tarde, bispo, ministro liberal, patriarcha e cardeal, sahiu em defeza do noviço contra as violentas persuasões dos monges escandalisados da impiedade de Venceslau.

Não ter fé! Era a primeira vez que um noviço ousára dizer que não tinha fé! Que elle não tivesse virtudes,{16} vá; que muito frade se salvou sem ellas, graças ao habito que faz o monge e á contricção final que faz o santo; mas não ter fé!...

Sem impedimento d'estas e outras razões dos frades escandalisados, argumentava o sabio benedictino que era desprimor notavel para a religião o acorrentarem-lhe ao altar os seus sacerdotes; que o descredito das ordens monasticas havia sido motivado pelo vicioso proceder dos frades constrangidos; e que, finalmente, ninguem esperasse que a violencia abrisse á luz da fé corações fechados e escurecidos pela duvida.

Com tão válido protector, o noviço despiu o habito e foi para casa. Recebeu-o a mãe com amorosa indulgencia; mas o pae, affrontado da insolita rebeldia, apertou-o no duro dilemma: ser frade, ou, quando não, ir grangear sua vida onde lhe bem quadrasse.

Baldados os rogos e piedades da mãe, já ao marido para que perdoasse, já ao filho para que obedecesse vestindo o habito, Venceslau, com algumas moedas liberalisadas pela commiseração maternal, foi caminho de Lisboa onde não tinha parentes nem amigos.

Principiava o anno 1811.

O mancebo chegou a Santarem no dia em que o general Massena alli aquartellava a sua divisão. O reboliço da cidade desbordando de tropa, o espectaculo offuscante de um exercito embriagado de victorias, aquellas magestosas figuras dos generaes do imperio alvoroçaram o animo do rapaz cuja imaginação verdejava as epicas fantasmagorias dos dezesseis annos.{17}

Que farte ouvira elle em Tibães execrar Napoleão, Massena, Soult, Junot e os outros d'aquella funesta constellação. O seu entendimento queria duvidar da justiça das accusações; mas o patriotismo insinuava-lhe o dever de odiar francezes, salvante Rousseau, cujas obras elle podéra lêr clandestinamente, subtrahindo-as da gavêta defeza da livraria de Tibães, onde talvez as recadasse com prudente cautela o esclarecido fr. Francisco de S. Luiz.

Á conta pois do auctor do Contracto Social está, por desventura de sua alma, a grave responsabilidade de haver-se esquivado á tunica de S. Bento aquelle rapaz que em Santarem perguntava a outros:—Depois d'este acto de justiça quem póde negar a Massena as virtudes militares que Plutarco refere dos varões illustres de Grecia e Roma?

O leitor vae recordar a sabida passagem que, no espirito do moço enthusiasta, emparceirava o general francez com Themistocles ou Paulo Emilio.

Quando os francezes retiravam de Alemquer, certa familia de notoria fidalguia, receando insultos da plebe, acompanhou o exercito invasor com uma escolta de dois dragões. Ora um d'estes indignos guardas, ageitada a occasião, e vencido do impeto do sangue e dos conselhos do demonio, maculou mais ou menos—mas é de crêr que fosse mais—a pudicicia de uma das damas confiadas á sua vigilancia.

Eis pois um dragão indigno de aparelhar com o outro que, no jardim das Hesperides, guardava o vélo{18} de ouro, de certo com mais peso e quilates, mas com muito menos direitos á nossa consternação.

E succedeu que a dama queixosa, posto que o infando desastre houvesse sido secreto, (ave rara!) preferisse ser honrada a parecel-o. Assim pois, logo que chegou a Santarem, D. Lucrecia (ouso chrismal-a assim em honra da sua memoria bastante romana) expoz a Massena o affrontamento que lhe fizera o dragão. Ordenou para logo o general que o criminoso entrasse em conselho de guerra, e tão summario correu o processo que, no lapso de meia hora, foi o carnalissimo réo interrogado, sentenciado, confessado e espingardeado!

E como quer que alguem intercedesse em favor do comdemnado exorando menos rigorosa pena, o general respondeu: «Depois de arcabuzado, requeira».

Tal foi o caso de disciplina que obteve para as aguias de Austerlitz um acerrimo partidario.

Apresentou-se Venceslau Taveira ao marquez de Alorna, um dos generaes portuguezes que seguiram deslumbrados o metheoro da Corsega, quando as côres ardentes já se íam esmaiando ao visinhar-se do céo de Waterloo.

O marquez, illustrado e dadivoso, agasalhou o foragido noviço com tanta cortezia como caridade, sentando-o á sua mesa e provendo-o das coisas que lhe escasseavam, na crise em que a fome apalpava os portuguezes menos protegidos.

Comprazia-se o provinciano em convivencia d'alguns fidalgos, commensaes de Alorna, taes como o marquez{19} de Loulé, o conde de S. Miguel e D. Luiz de Athaide. Este ultimo foi grande parte no precoce rancor de Venceslau aos governos absolutos.

Era D. Luiz de Athaide filho do conde de Atouguia e neto do marquez de Tavora, ambos justiçados como regicidas sob o reinado de D. José I.

Um dos amigos de Venceslau, então adquiridos em casa do marquez, escrevendo, quarenta e cinco annos depois, as suas Memorias, avaliou ineptamente D. Luiz de Athaide com estas descaroadas linhas:

«... Não posso deixar de mencionar outro homem notavel que alli encontrei, e que, descendente da mais alta fidalguia da nossa terra, era um tristissimo exemplo da degradação a que póde chegar a especie humana, decahida do explendor da grandeza e mergulhada no lodaçal da miseria e despreso. Foi D. Luiz de Athaide filho e neto d'essas familias desgraçadas a quem o inexoravel grande marquez de Pombal sacrificou sobre o horroroso altar do poder absoluto e de quem até pretendeu riscar os nomes da superficie da terra... Em verdade, era digno de ser observado por quem podésse bem avaliar o que são e podem ser os destinos do animal chamado homem... Quem o via, e não sabia quem era, só o podia ter por um sordido e baixo môço de cavallariça. Na sua figura e no seu trage trazia todas as insignias das maldições humanas, e nas suas palavras não havia senão rancor e odio, e esse rancor e odio tão profundos e inveterados, quantos eram os annos desde que poude conhecer as suas{20} mizerias. A quem lhe fallasse na casa de Bragança, respondia com rugidos de leão; parecia que lhe saltavam os olhos pela cara fóra estimulados pela raiva, e só socegava depois que desafogava o coração ulcerado com imprecações horriveis. Para elle só Napoleão era o rei legitimo de Portugal; e tal era a affeição que lhe tinha que, havendo, não sei porque artes, ganhado uma grande porção de dinheiro a foi entregar a Massena assim que entrou em Portugal. Este lh'a acceitou e agradeceu, declarando-lhe ao mesmo tempo que esta lhe seria restituida em Paris, se para lá fosse...»[1]

Apezar d'esta apreciação indicativa de escriptor e espirito menos de ordinarios, e incapazes de alçarem-se até onde a desgraça ergue pelos cabellos as suas preas, D. Luiz de Athaide, no conceito de Venceslau, incutia a um tempo compaixão, respeito e assombro. Aterrava e commovia ouvil-o vociferar contra a raça de D. José I, e de repente levar as mãos aos olhos afogados em lagrimas, soluçando o nome de seu pae. Se alguem lhe lembrava que elle era proximo parente da familia real, e portanto devia cohibir-se de insultal-a no mais sensivel da honra, exasperava-se a termos de repellar-se por não poder inventar maneira de denegrir em si proprio as gotas de sangue real que lhe deshonravam as veias.

Tanto escogitou, porém, que descobriu facil processo de enxurdar quanto humanamente se podia a sua{21} progenie realenga. Foi assim. Encontrando, mezes depois, em Paris, no derradeiro escalão social, um vulto de mulher desfigurada pelo squalor do vicio, fêl-a sua esposa, com o intuito de a fazer mãe dos parentes da casa de Bragança. D'este caso tambem teve noticia José Liberato Freire de Carvalho, nas citadas Memorias.

Escreve elle: «... Mas como casou! Consta-me tambem que alli em Paris vascolejára as ultimas fezes da sociedade para encontrar uma mulher que fosse digna d'elle e que a achára. Reduzido na sua terra á infima sorte de um paria na India, quiz, no seu mesmo aviltamento, vêr se podia tambem aviltar, como elle dizia, algumas gotas de sangue que lhe circulassem no corpo, e fossem d'essas que animavam a familia real portugueza.»

Homem de tão singular e descommunal condição tinha direito a ser estudado e desenhado por quem tivesse vista d'alma que alcançasse o enorme desgraçado no fundo da sua voragem. Dos seus coevos e camaradas nenhum deu tento d'esse extraordinario martyr senão o ex-frade José Liberato, que nunca pôde desfazer-se de tres partes de máo frade com que fugiu aleijado do convento. O neto do brioso Tavora, o representante da opulenta familia, cujos bens haviam sido confiscados para a casa reinante, ou para a do valido que se pascia nas lagrimas, no sangue e no espolio dos degolados em Belem, emfim, aquella sublime e rancorosa desesperação de D. Luiz, que dava o ouro ganhado em azares do jogo para derruir o throno, e trajava andrajos para que{22} assim o vissem roubado nas ultimas mealhas de seu pae—tal homem assim maltrapido e crucificado no seu opprobio, figurou-se aos olhos de José Liberato o compendio «de todas as maldições humanas»!

Com interesse de respeitoso compungimento o via Venceslau Taveira, e o escutava nas apostrophes iracundas contra a dynastia de Bragança. Já decrepito, o solitario da charneca de Odivelas, recordava o neto dos Athouguias, e dizia que se a França houvesse tido um homem assim recaldeado em fraguas de tamanhas angustias—um tão extravagante complexo de soberba e aviltamento, de saudade maviosa e sevos odios—os mais grados litteratos o exalçariam diante do mundo, tornando-o interessante como historia, como philosophia, como moral, e até o poeta se não pejaria de ir procurar nas cavallariças de Massena esse neto de reis portuguezes, e vestil-o dos esplendores da poesia tragica, ao mesmo passo que o seu real parente, o principe D. João de Bragança, apenas vingaria ser dignamente cantado nas epopêas bordalengas de José Daniel.

Affeição de outra tempera, como de eguaes e de mancebos em alvorada de esperanças, ligou Venceslau Taveira a um official de infanteria do quartel-general de Pamplona.{23}

Livro de Consolação

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