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IV

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Il est plus glorieux de tomber généreuse,

D'embrasser en partant ceux qui nous font souffrir,

De fluir sans remords, comme une femme heureuse.

MAD. GIRARDIN.—Poésies.

Prescinde o leitor que lhe historiem os sabidos desastres do exercito francez até ao dia em que Massena, o abatido «anjo da victoria», entrou em Coimbra.

Eduardo Pimenta correu á portaria do convento, e perguntou por D. Antonia de Portugal, a quem desde o Porto enviára cartas repetidas que nunca ella recebeu das religiosas, testemunhas impassiveis do lucto da supposta viuva e dos trances de agonia tão demorada.

Quando o official perguntou por sua mulher, a porteira, tremente de pavor, disse que a snr.ª D. Antonia estava moribunda. Lançou-se Eduardo contra a porta, com supplicantes lagrimas, já a repellões de raiva, bradando que lh'a abrissem. As freiras terrorisadas capitularam em avisar a reclusa de que seu marido a procurava.

Estava D. Antonia, senão moribunda, prostrada nos ultimos esvahimentos de pthysica. Disseram-lhe que a{42} buscava seu marido, e ella cuidou que ouvia uma voz a dizer-lh'o, como tantissimas vezes a ouvira nos seus delirios, antes que as ultimas golfadas de sangue a privassem do prazer de delirar. Mas, como aquella voz se repetisse por bocca de algumas religiosas que mais caritativas lhe velavam a enfermidade, Antonia sentou-se de golpe no leito, e circumvagou pelas faces de tantas mulheres os olhos torvos, não de lagrimas, senão do véo da morte.

Entendeu-as, convenceu-se, acreditou, porque a Virgem celestial lhe tinha segredado que seu marido não era morto. As madres, com quanto crendeiras em raptos e visões asceticas, julgaram-n'a delirante quando a viram ajoelhar com muita fadiga, e contemplar a imagem da Senhora das Dores, á qual dizia com anciosas intercadencias: «Fez-se o milagre, Mãe Santisssima! Eu bem vi que os vossos labios se moveram hontem, quando eu me arrastei até junto de vós. Elle vive!... mas eu... vou morrer... morro n'este instante, ó consoladora dos afflictos, se me não daes algumas horas de vida em troca de tantas dôres, e de morte tão custosa nos meus annos, com tanto amor e esperanças a morrerem comigo! Outro milagre, Senhora! Deixai-me vêl-o... vêr o meu esposo!..»

E orou uma prece inaudivel, com sorriso de esperança a embellecer-lhe as lagrimas. Depois, lançou-se do leito aos braços d'uma religiosa, exclamando:

—Não morro... não quero morrer assim! A Virgem Santissima quer que eu expire abençoando todos{43} os algozes, e beijando todos os instrumentos das minhas torturas... Chamem as pessoas que mais me despedaçaram... Eu quero chorar nas mãos onde houver signaes de sangue do meu coração... Vistam-me... amparem-me... E, se eu morrer agora, levem-me assim morta onde estiver Eduardo, ouviram?

Balbuciadas poucas mais palavras inintelligiveis, D. Antonia inclinou a face ao seio de uma noviça, e immudeceu, ressumando da fronte e das palpebras um suor frio.

—Estará morta?!—perguntavam-se as freiras quando nos dormitorios do convento reboava grande alvoroço de passos e gritos.

Os sacrilegos e algum tanto romanescos officiaes francezes, que tinham acompanhado o seu camarada ao mosteiro, não lhes soffrendo o animo a demora da reclusa e a impaciencia do esposo, intimaram arrogantemente a porteira a franquear a porta. Como ella se negasse, esconjurando os depravados hereges, e sacudindo o hyssope da agua benta contra as paredes, uns francezes espadaúdos pozeram hombros contra as portadas em quanto outros escavacavam a roda a cutiladas, ou esgarçavam á ponta de sabre o crivo dos palratorios. Desacatos tamanhos e tanto para lastima eram crime vulgar e habitual em taes sujeitos, vezados desde 1792 a profanarem conventos e a matarem freiras, principalmente as velhas.

Passadas de sensato horror, as religiosas abriram a porta. Eduardo foi quem primeiro transpoz o limiar{44} d'aquelle pombal de aves do empyreo, que apenas tinham de mulheres o receio de serem tratadas menos ao espiritual do que se usa com as jerarchias celicolas. Era, ao mesmo tempo, mavioso e compungente vêr como aquellas abelhas da divina ambrosia volteavam e zumbiam, ao darem tento dos zangãos francezes! Se, por mofina sorte, colmeia tão do céo, favos amellados com essencia de quantas flores perfumam cenobios de noviças, se—diga-se ao claro—aquellas raparigas cahissem nos colmilhos de tamanhos canibaes, com que vergonha nacional e minha não contaria eu aqui o escandalo!

Ainda bem que o decoro d'esta minha terra, n'aquillo como no restante, ha sempre uma providencia que o salva illeso.

As freiras, pelo menos, salvaram-se d'aquelle inferno que lhes andou a chammejar por perto dos véos e dos escapularios; todavia, o alarido e corrimaças que ellas faziam no claustro, accusariam de incontinentes os gallos, (aqui a palavra gallos não é contingencia de capoeira) se ellas mesmas não confessassem depois ao bispo e ás familias que os camaradas de Eduardo Pimenta haviam procedido mais castamente do que era de esperar de atheus, sem lei, nem rei, nem roque.

E disseram verdade.

Vem aqui a ponto sahir com uma defeza, embora serôdia, do exercito francez, no tocante a ominosos attentados contra mosteiros portuguezes, segundo consta d'uns poemas calumniosos que ahi correram, quanto javardos{45} correm por lameiraes, e ainda sujam as bibliothecas de alguns collectores de sordicias. Exceptuado o dragão que embaciou o cristallino pudor da menina de Alemquer, não me chegou noticia authentica de outro aggravo feito por parte da França á honra das nossas patricias. É regalo—não é?—poder a gente escrever isto, e, por isto mesmo, asseverar que na construcção das gerações sequentes a 1808 não ha gallicismo notavel que eu saiba. Não obstante, dizem praguentos que as joldas invasoras dos mosteiros arrebanhavam baixellas, pinturas, joias d'arte, e pospunham com desdem joias da natureza, as esposas do cordeiro. Aqui ha acinte menoscabador da belleza das nossas freiras, sendo certo que n'aquelle tempo as havia peregrinas, primorosas, dignas patricias d'aquella Marianna Alcoforado, conventual em Beja, que tão celebrada formosura e espirito deixou na Europa em cartas ainda hoje relidas com dó, admiração, e somnolencia.

Á imitação d'esta deviam ser as cento e vinte que esvoaçavam dos dormitorios para a claustra e da claustra para a cêrca, do mesmo passo que Eduardo e os seus honestos amigos seguiam a porteira em direitura á cella de D. Antonia de Portugal.

Quando o marido da desmaiada senhora assomou á porta, as freiras conclamaram tão rijo grito que a enferma retranziu-se espavorindo os olhos.

N'este lance, os braços, que a sustinham, eram já os d'elle, cujos labios, crispando estremecidos de angustia, balbuciaram:{46}

—Esposa da minha alma!... Mataram-te... Fui eu quem te matou!... Oh! falla-me, querida filha!... Não me conheces, Antonia?...

Quando esta e outras exclamações iam avocando a razão da pavida agonizante, a prioreza chamou fóra da cella as freiras testemunhas do trance doloroso, e observou-lhes:

—Não assistam a essa diabrura! Venham comigo ao côro pedir ao divino esposo que despene d'esta vida a alma da peccadora, que veiu dar escandalo n'esta casa.

—Assim é, nossa madre!—obtemperou a escrivã, offerecendo uma vez de simonte á madre boticaria, e olhando de esconso contra um official que lhe careteava enviezando o beiço de baixo até cobrir a ponta do queixo.

O verso e o reverso das coisas d'este planeta, leitor philosopho!

Dentro da cella, agonias que as lagrimas afogavam no silencio; cá fóra, a irrisão, a farça, a jogralidade que a critica descobre á beira das grandes dôres, á beira até das sepulturas!

Mas ao pé da sepultura de Antonia de Portugal, no templo de S. Salvador de Coimbra, se não havia preces nem olhos lagrimosos, tambem não passava o motejo sacrilego. Ahi moravam o silencio, a soledade, e a mudez do esquecimento que deve ser nas almas idas e saudosas d'esta vida um chorar sem consolação no seio da eterna gloria.

Estava pois resalva das borrascas a luctadora vencida{47} e ao mesmo tempo victoriosa; que morrer assim é triumphar.

A presença inesperada do esposo, que ella considerava morto, foi o osculo santo do anjo que desde muito lhe condensava a treva para que um lampejo final lhe abrisse o dia da perpetua luz. Aquella immensa alegria reviveu-lhe o coração, galvanisou-lhe as potencias da alma entorpecidas, restituiu-lhe por momentos a plena vitalidade; todavia, aniquilou-lhe o corpo subitamente arrefecido nos braços de Eduardo.

Do mosteiro de Santa Clara sahiu o cadaver sobraçado por aquelle homem que relançava á volta de si o olhar sôffrego da posse da esposa morta. Quando elle, vagarosamente, passava no longo dormitorio, ouviu o murmurio das freiras que rezavam psalmos no côro. A desgraça faz prodigios de fé, desvarios de crença que seriam galardoados com milagres, se os actos da omnipotencia divina se pautassem pela regra do nosso entendimento. Eduardo, accêso em ardente fé, escutava o soturno rumor das vozes, e orava em espirito com os olhos fitos nos do cadaver ainda não fechados. O infeliz pedia a resurreição d'aquella mulher, dobrando os joelhos, e inclinando a face sobre os seus labios alvacentos, como se esperasse sentir-lhe o halito dos pulmões revividos.

Instaram os officiaes, que o acompanhavam, para que lhes confiasse o cadaver; mas, não conseguindo desabraçal-o da morta, ajudaram-o a transportal-a ao quartel de um d'elles, que se incumbiu do enterro.{48}

Ao descahir da noite em que D. Antonia foi sepultada, soaram os clarins a reunir. Massena ordenára um movimento sobre Condeixa depois de se deter em Coimbra tres dias que malograram todos os seus planos. Eduardo Pimenta, que servia no quartel-general de Pamplona, recusou acompanhar o exercito.

Os seus amigos propriamente lhe deram voz de preso, em nome do principe de Esling, e o levaram á força de ao pé do cadaver já amortalhado. Commovidos pelas supplicas, concederam-lhe que muitas vezes retrocedesse a beijal-a no rosto, já quando a passavam para o esquife.

Fechada a sepultura, e feito o silencio do esquecimento á volta d'ella, ninguem diria que vida assim dilacerada podésse acabar por maneira tão singela!

Morrer! Que suave desfecho, se o desfazer-se a vida a desfibrações lentas não custasse tanto! E, se Deus dispensasse as torturas do corpo aos que em si já sentem o ingente supplicio da alma, a sua divina justiça nos deixaria melhormente comprehender os liames que prendem a terra ao céo, a creatura ao Creador, o espirito do homem perecivel á insuflação do grande espirito immortal...

Não sejamos mais especulativos do que foram os indifferentes que viram passar o esquife de Antonia, ao mesmo tempo que Eduardo marchava sobre Condeixa.

Ahi fica esboçada a biographia do official que Venceslau Taveira encontrou em Santarem.

Ai! se elle então morresse! Que tragico vulto na legenda{49} dos amores desgraçados! quantos anjos tristes, nascidos em almas de poetas, iriam deplorativos esfolhar uma rosa de cada primavera na sepultura d'aquelles vinte e quatro annos! Quem cuidára então que os dons celestiaes da alma d'este homem se esvasiavam todos em lagrimas, e no fundo d'esse peito germinavam os embriões de vicios que resvalariam á derradeira infamia!{50}

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Livro de Consolação

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