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Capítulo Um

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Ouvimos uma movimentação mais pro fim das docas, onde uma luz no teto iluminava uma van de entrega vermelha em um enorme contêiner. Um animal estranho se esgueirou entre o caminhão e o contêiner, fugindo para sua liberdade. Dois homens perseguiam a assustada criatura.

– Oxana vai nos escalpelar por isso! – um dos homens gritou amedrontado.

– O Boi – gritou o segundo homem enquanto corria – ela vai levar é com a SUA pele na parede, não a minha.

O animal, algum tipo de antílope, com chifres longos, curvos e de pontas afiadas na direção da nuca, certamente não era nativo da América do Sul. Ele galopou pela frente do caminhão e foi para longe.

– Cadê tua 38, Silveira? – o primeiro homem gritou. – Atira no pé daquele pequeno antes que fuja!

Rachel e seu cachorro, Hero, estavam vários metros à nossa frente, pareciam determinados a não perder a perseguição dos dois capangas ao animal selvagem.

– Rachel! – Kaitlin, minha irmã, gritou enquanto corria para sua filha de nove anos.

Eu encontrei Kaitlin no momento em que ela puxou a criança pela mochila, a levantando pela alça. Tentei conter Hero, mas ele escapou e correu latindo na direção dos dois homens, ele se enfiou sob o caminhão no momento em que um tiro ecoou do outro lado.

– Tio Saxon! – Rachel gritou enquanto lutava contra a mão de aço de sua mãe que a segurava – Eles atiraram no meu cachorrinho.

Hero saiu correndo debaixo do caminhão em alta velocidade e pulou nos braços de Rachel. Ele estava ileso, mas tremia de medo.

– Vou acabar com esse absurdo – eu disse – Isso aqui não é lugar pra disparar uma arma —minha irmã ou Rachel poderiam acabar atingidas por uma bala perdida dessas.

– Saxon – Kaitlin olhou ao redor do cais vazio. —Vamos sair daqui.

Eu mantive minha mão estendida, balançando-a para frente e para trás, enquanto seguia para a frente do caminhão – São só dois.

O nascer do sol estava a poucos minutos daquelas docas, onde uma bifurcação na selva se espalhava ao longo de uma grande faixa de floresta esculpida nas margens do Rio Negro. Dezoito quilômetros rio abaixo, a água barrenta derramava-se no verde profundo do turbilhão Amazônico. O centro comercial remoto de Manaus, no mais sombrio coração da América do Sul, estava ainda acordando naquela manhã tropical de verão.

Virei de lado para me esgueirar com minha mochila entre a frente do caminhão e uma pilha de caixas. Grunhidos abafados saiam do caminhão. A carroceria estava coberta por uma lona de camuflagem, escondendo os animais dentro.

Logo antes de passar pela frente do caminhão, ouvi um forte ruído. Os dois homens estavam na beira do cais, olhando para a água. Um deles, Silveira, eu acho, segurava um revólver.

– Eu falei pra atirar só no pé – disse o outro homem. Sua cabeça era careca e brilhante, com uma faixa de curto cabelo castanho logo acima das orelhas.

–Agora vai precisar de uma história, ele nunca esteve no contêiner de carga ein.

Quando olhou para seu parceiro, pude ver seu bigode preto e espesso. Silveira tinha uma mandíbula pesada, sombreada por um espesso crescimento de bigodes irregulares, e seus cabelos oleosos caíam em cachos. Ele era muito mais alto que o careca, e eles pareciam um par de traficantes de esquina.

– Pelo menos assim Oxana não vai ficar sabendo o quão idiota você é. – disse Silveira.

– Você deixou a coisa escapar, então eu precisei fazer parar.

Decidi conter minha coragem como Hero havia feito, mas antes que eu pudesse fugir, outro grunhido veio de dentro do caminhão, atraindo a atenção dos dois homens. Quando Silveira me viu, rapidamente escondeu a arma nas costas. Seus olhos pretos e brilhantes olharam para mim sob a espessa sobrancelha de homem das cavernas enquanto ele se aproximava. O homenzinho hesitou, mas depois o seguiu.

– Bom dia! – eu disse, tentando parecer perdido, estúpido e completamente ignorante do evento que acabara de ocorrer.

– Você sabe o caminho para Alichapon-tupec?

Silveira, o imenso homem das cavernas, parou, aparentemente surpreso com o uso de sua língua. O segundo homem parou ao lado de seu comparsa. Depois de um momento, o pequeno falou comigo com um inglês meio esquisito.

– Ele nunca vê esse tipo de conversa.

Inglês? Mas eles estavam falando português antes.

Não queria que eles soubessem que tinha ouvido ou visto alguma coisa.

O careca se inclinou para perto de Silveira e sussurrou algo para ele, mantendo os olhos em mim. Assim que Silveira acenou com a cabeça, alguém chamou meu nome.

– Saxon – disse Kaitlin do outro lado do caminhão. – Tem uns homens vindo para cá – Ela também falava em português.

O homem baixo rapidamente baixou a mão de onde esteve até agora, nas costas do parceiro, na arma. Kaitlin deu a volta na frente do caminhão, seguida por Rachel, que ainda segurava Hero nos braços. O cachorro rosnou para os dois homens.

– Tem mais ou menos uma dúzia deles – Kaitlin pendurou os polegares nas alças da mochila e sinalizou na direção em que os outros homens vinham.

– Um parece polícia.

Ela estava falando comigo, mas olhando para Silveira e seu parceiro.

Obviamente, os dois homens a entenderam. Eles trocaram olhares, depois correram em direção à traseira do caminhão, entraram no contêiner de carga e bateram as portas de metal atrás deles.

– Vamos – Kaitlin sussurrou para mim – precisamos ir.

– Está tudo bem agora – eu disse – o policial vai cuidar deles.

– Seu idiota – ela sussurrou enquanto se afastava – Não tem ninguém vindo.

Eu e Rachel corremos atrás dela.

* * * * * * 

Uma hora depois, saí do pequeno café, apropriadamente chamado Extremidade das Docas, para ver se encontrava um guia. Levei um copo com café quente e deixei minha irmã e sobrinha terminarem o café da manhã. Enquanto isso eu explorava as plataformas mais instáveis que ficavam depois das docas comerciais.

Cheguei a um cais de madeira e areia que se estendia até o rio. Estava deserto, exceto por uma pessoa sentada mais pro final. Coloquei meu copo vazio numa tina de lixo e fui caminhando em direção àquela figura. Talvez eu pudesse perguntar sobre a pesca e ter um pouco de informação.

Quando parei ao lado da menina sentada, a jovem me olhou de cima a baixo. Das minhas botas de couro arranhadas, passando pelas calças cáqui e camisa, até meu chapéu Panamá desgastado. Seus olhos hesitaram ao ver meu velho isqueiro Zippo, enfiado na faixa do chapéu. Ela voltou sua atenção para a água, obviamente sem se impressionar.

Ela estava nua acima da cintura, exceto por um amuleto pendurado em um cordão de couro em volta do pescoço. Inclinei minha cabeça para ver melhor.

– Isso é um modem da IBM?

Seus olhos se estreitaram em mim como se eu tivesse dito algo inapropriado. Ela se sentou, com um joelho levantado, apoiando o pé nas tábuas do cais e usava um pedaço de tecido adamascado como saia. Sua outra perna, cortada de forma bruta de um pedaço de mogno ou algo assim, pendia na água barrenta.

Ela me ignorou, puxou um rato, que se debatia de um saco de estopa, e então jogou o roedor cinza às piranhas pretas. Sua expressão era fria, como se ela não se importasse com o que comeu quem, desde que alguém fosse devorado.

O modem dela não aparentava ser lento e antiquado, o tipo que se esperaria encontrar na selva, mas um dispositivo moderno projetado para comunicações rápidas; da largura de uma caixinha de mentos e tão fino quanto o dedo anelar de uma mulher. 'IBM' estava impresso ao lado, seguido de 'USB'; provavelmente pertencera a um notebook e era de fabricação recente. Um pedaço de couro trançado atravessava um buraco em um canto, e triângulos feitos do pelo de animais cobriam as bordas, protegendo as partes macias do seu corpo.

Era uma pena esse buraco no modem, poderia ter servido pro notebook que planejava comprar para Kaitlin, após nossa viagem de volta a Lisboa. Esse computador seria uma grande ajuda para minha irmã na organização dos dados que ela coletou.

– Você sabe o caminho para Alichapon-tupec?

A mulher olhou para mim por um longo tempo, sem falar. Seus olhos escuros tinham uma intensidade suave que era quase hipnótica, eu sentia necessidade de desviar o olhar, mas não conseguia.

Algo espirrou violentamente na água abaixo do final do cais e depois se aquietou. Um papagaio chamava seu companheiro que havia se afastado para se juntar à fêmea no lado oposto do rio. Uma brisa preguiçosa trouxe um leve cheiro de jasmim, tocando o cabelo da mulher e  as delicadas pétalas vermelhas e amarelas enfiadas na orelha esquerda. O alto sonido de um macaco reivindicando seu território ecoou por toda a floresta. Todos esses eventos preencheram o espaço em questão de segundos, mas parecia muito mais tempo enquanto a jovem ainda fitava meus olhos, como se fosse capaz de enxergar para além dos meus rasos pensamentos.

Finalmente, ela falou comigo em yanomami e apontou para algumas canoas amarradas ao longo do cais, me dispensando com o gesto. Não entendi as palavras dela, só reconheci a língua yanomami porque a ouvi falada por muitos naquela região do Amazonas. Quando fiz sinais da minha ignorância, ela me lançou um olhar que não posso dizer que era hostil, mas também não foi amigável. Irritação foi a sensação que me que veio à mente. Eu olhei para as piranhas; elas também pareciam um pouco irritadas com a minha intrusão. O rato já não estava à vista.

Ela pegou minha mão para se levantar e fiquei surpreso com sua falta de altura. Seus cabelos escuros e brilhantes estavam repartidos no meio, e o topo da cabeça alcançava apenas o nível do meu peito. Um momento antes, quando estava olhando para mim, pensei que ela fosse tão alta quanto eu, ou talvez maior. Mas era apenas uma projeção de estatura, uma aura de coragem que era surpreendentemente forte. Agora que ela estava de pé, olhava para seu tamanho, mas a aura permanecia.

Ela jogou os longos cabelos por cima do ombro, enquanto o sol brilhava em seu amuleto. Pensando no que teria acontecido ao proprietário anterior do modem quis alcançá-lo, mas antes que meus dedos o tocassem ela me deu um tapa, com força.

Fiquei tão atordoado que não consegui reagir por um momento. O impacto de sua mão no meu rosto sacudiu uma lembrança há muito enterrada. Acho que já fazia uns cinco anos desde a última vez que uma mulher me deu um tapa, a lembrança ficou nítida. Rivadávia, Argentina. No meio do verão, tão quente na varanda tórrida que nada se mexia, nem mesmo o pequeno lagarto verde que subira os galhos de um palo borracho naquela manhã, para uma refeição saborosa de moscas e formigas. Lauren me dera um tapa naquele calor subtropical e na mesma bochecha, embora não tão duro quanto o que eu acabara de receber.

Lauren era uma mulher bonita, mas talvez um pouco abaixo do nível de perfeição. Ela acreditava em todas as teorias da conspiração que ouvia e, como trabalhava em uma agência governamental, lidando, penso, com exportações e coisas do tipo, achava que pessoas obscuras estavam sempre atrás dela. Era nervosa, de temperamento quente, eu deveria saber que ela explodiria algum dia.

Lauren estava há anos e milhares de quilômetros, daquele pequeno cais no Rio Negro, onde eu acabara de levar um tapa novamente. Esfreguei minha bochecha ardente e, quando olhei para as pontas dos dedos, vi uma fina faixa de sangue, junto com um mosquito achatado.

– Um pouco exagerado, não acha? – Eu disse enquanto ajustava meu chapéu de volta no lugar.

Ela não respondeu; só me olhou de novo com um reflexo nos olhos, como se estivesse me desafiando a lhe dar um soco.

Se o mosquito era um espectador inocente de um avanço insolente ou se a mulher estava me salvando de um caso de malária eu não tinha certeza. Reconheci, no entanto, as marcas distintas das asas de um Anopheles Punctipennis, uma fêmea, é claro, e portadora conhecida da temida doença.

Se o tapa na cara era sua maneira primitiva de me manter saudável, então com que propósito? Eu nunca tinha ouvido falar de canibalismo naquela parte da Amazônia, mas também nunca havia visto uma donzela seminua bonita alimentando ratos com piranhas.

Quando ela se abaixou para pegar seu arco e aljava de flechas, senti um impulso há muito adormecido dentro de mim. Antes que esse sentimento se fundasse, ela endireitou-se e disse algo para mim, acenando para a outra bolsa. Isso eu entendi; algumas coisas não precisam de tradução.

Respirei fundo para acalmar meu coração acelerado, depois peguei o saco de ratos e a segui pelo cais, combinando meus passos com os dela. Enquanto caminhávamos, notei as fileiras de pequenos dentes ao redor da marca d' água na perna de madeira; se feita por ratos ou piranhas, eu não saberia dizer.

Chegamos a uma pequena canoa, e ela a apontou. Eu disse que estava viajando com outras pessoas.

Usando um poico de mímica, ela fez uma pergunta. Eu assumi que era sobre minha companhia.

– Duas – respondi – uma delas é dessa altura – Estendi minha mão, na altura dos ombros, para indicar a altura da minha irmã Kaitlin – E uma assim – eu disse, com a mão ligeiramente mais baixa para a altura da minha sobrinha, Rachel – E um cachorro estúpido desse tamanho.

Ela balançou a cabeça e encolheu os ombros me conduzindo a uma canoa um pouco maior. Puxei um mapa da minha mochila. Mostrava uma Manaus às margens do rio Madeira, não na confluência do rio Negro e da Amazônia, como ela realmente é. E Alichapon-Tupec estava marcada vinte e cinco quilômetros a jusante da junção dos dois rios. Se isso fosse verdade, deveríamos ter passado por Alichapon-tupec no dia anterior enquanto viajávamos rio acima no barco, o que não aconteceu; por isso minha pergunta para a jovem do cais.

Eu queria localizar a vila o mais rápido possível, para que Kaitlin pudesse coletar suas amostras de plantas, aprender o uso medicinal das folhas, e poderíamos estar voltando para o Rio de Janeiro. Se perdemos o Borboleta quando partisse para Lisboa, ficaríamos várias semanas à procura de outro transporte.

Entreguei meu mapa para a mulher, que desenrolou e estudou com grande interesse, enquanto eu observava o rosto dela passar por uma progressão de caretas, beicinhos e sobrancelhas franzidas. Meus olhos começaram a vagar, e a National Geographic Magazine veio à mente. Quando eu era criança, a única maneira de ver os seios nus de uma mulher era na biblioteca, na seção de arquivos da revista, onde anos e anos daquelas revistas de capa amarela eram armazenados.

– Bem, senhor Saxon Lostasia – dizia a bibliotecária enquanto eu tentava passar por ela enquanto saía da biblioteca.

– Estamos explorando um pouco hoje, não é?

Ela então sorria e piscava um olho enquanto eu corria para a porta. A senhorita Pentava parecia velha para mim, mas não podia ter mais de vinte e cinco anos.

Essa mulher sob meus olhos de agora seria uma ótima garota de revista, mas não uma bibliotecária muito boa.

Levei meus olhos de volta para o mapa, o tirei das mãos dela e virei com o lado direito para cima devolvendo-o. Mais uma vez, depois de um olhar de soslaio para mim, seu rosto realizou um exercício quase idêntico de expressões como antes.

Inacreditável, pensei. Ela deve estar memorizando a coisa toda; primeiro da perspectiva do sul, e agora do norte! Memória fotográfica, provavelmente.

Atrás de mim, ouvi um cachorro latindo e pude ver Rachel e Hero correndo em nossa direção. A mudança que ocorreu com a mulher quando a criança e o cachorro chegaram até ela foi surpreendente.

Cian

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