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I
O Microbio[1]

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Tivemos á porta o Microbio.

Eu já o esperava.

A gente, para falar a verdade, porta-se mal cá por baixo e o Padre Eterno deve, com justa razão, encrespar as sobrancelhas com uma boa dóse de mau humor, quando o globo terraqueo, no seu incessante rebolar por essas immensidades, lhe apresentar á vista a formidolosa praça e os seus arrabaldes.

Aquelle nefando e escandalosissimo caso, que tanto alarmou a fé das christandades e a religiosidade das beatas da nossa terra—a prisão da Santa, arremessada aos baldões para os ferros de El-Rei e para a jurisdicção autocratica do Borralho, de sucia com os desobedientes e reaccionarios philarmonicos de Ganfey—deve tel-o incommodado seriamente.

Mas ha mais. É recente outro caso mais escandaloso ainda, que aqui, á puridade, vou referir.

Na vizinha villa de Monsão perpetrou-se, ha pouco, um gravissimo attentado contra a Moral, contra o respeito ás coisas sagradas e seriedade das nossas crenças religiosas.

Ao que parece, o conspicuo Senado não prestou a devida attenção á guarda da Santa Coca e esta, já enfastiada com as interminaveis polemicas e diatribes dos srs. padre Simão, Caetano José Dias e outros respeitaveis jornalistas, escapou-se á sorrelfa, internando-se nas terras da Galliza até Redondella, onde foi visitar a Coca da localidade.

Ora, segundo se conclue, esta era de sexo differente e, de incestuosa copula, resultou uma Coquinha, que os nossos bons vizinhos tiveram a imprudencia de apresentar em publico na ultima procissão de Corpus-Christi, com grande gaudio dos atheus e suprema indignação do ferrador da localidade, contractado para S. Jorge, que, em altos brados, reclamava maior salario, visto que ajustára a lucta contra uma só Coca e não contra duas!

E permitti que vos diga, respeitavel Senado monsanense, á fé de Deu-la-deu, que foi incorrecto o vosso proceder! Contra Cocas com familia deve-se, indubitavelmente (as pandectas o determinam, artigo 1:007), pagar mais caro o S. Jorge.

Ora, com todos estes desacatos, repito, o Padre Eterno deve trazer-nos de ponta e claro é que, mais tarde ou mais cedo, cá teriamos o castigo:—ou qualquer das pragas do Egypto, ou nova Exposição de Rosas, ou novo consulado do João Cabral, ou mais dois falladores, como os srs. Abilio e Leopoldo.

Do Mal, o menos. Veio o Microbio.

As planicies do Ganges já deram o que tinham a dar. O Egypto, a India, a China, a America Central são insupportaveis n’esta epocha, com as suas elevadissimas temperaturas. O Microbio é d’uma organisação especial, que dispõe de todos os recursos para facil e rapida locomoção; anda sobre as aguas, como Ulysses, de chinelos de liga, e no ar, como nós, no sobrado das nossas casas. Requereu, pois, licença para uma viagem ao extrangeiro e o Padre Eterno, extendendo o index, indicou-lhe o caminho.

Microbio preparou-se convenientemente com repetidas abluções hydroterapicas, como o sr. Albino; abotoou o seu guarda-pó; sobraçou o guarda-chuva; despediu-se da familia e, de mala de viagem e guia Baedeker na mão, atirou-se cá para o Occidente e parou em Vigo.

Pelas condições economicas da viagem, que não teve caracter official, nem reclamos, nem discursos de congratulação dos Presidentes das Camaras e das Juntas de Parochia, este Microbio deve ser differente, do que visitou a Hespanha em 85. Deve ser um Microbio burguez, pacato, com inscripções, rheumatismo e dinheiros a juro; talvez Juiz de Paz, ou quarenta-maior contribuinte do seu concelho; deve usar suspensorios, botas de cano; tomar rapé e dormir com barretinho de algodão; deve ser um Microbio sensato, austero e de bons costumes; de principios e convicções firmes, assim como o sr. Agostinho; bom chefe de familia, temente a Deus, inimigo de Malzabetes e de romarias, onde qualquer Pau-real amolga impunemente a massa cerebral, ou a mioleira da humanidade.

Em Vigo apresentou-se, pois, modestamente com um pequeno sequito de gastrites, gastro-enterites e algo de typhos; mas apesar do incognito rigoroso e da modestia d’esta apresentação, souberam da sua chegada, em Lisboa, os conspicuos Membros da Junta de Saude.

Aquelles respeitabilissimos Esculapios, Argos vigilantes, a quem estão confiadas as nossas existencias, aborrecidos já da longa inacção em que vivem desde 1851, limitados a rubricar diariamente o fornecimento dos cemiterios da capital, de que se encarregam com inexcedivel pontualidade, arregalaram, de jubilosos, os olhinhos, vendo em perspectiva um Microbio legitimo, genuino, naturalisado americano pelo sr. dr. Arezes. Tocaram a rebate no paiz.

Os pharmacópolas açodaram-se em abundantes preparativos de tonicos, diaforeticos e antisepticos.

Koch, Pasteur, Brouardel, Proust, Fauvel, Ferran, Raspail foram consultados em laboriosas vigilias.

As tropas, emocionadas pelo santo amor da Patria, prepararam-se para o holocausto no Cordão sanitario,—que tão boas libras produziu em 1885.

Os amanuenses, prevendo uma valente razzia entre os chefes cacheticos e tropegos, saboreavam as delicias d’uma rapida promoção.

Maridos, com vida atribulada, suspiravam voltados para o septentrião... Tudo se preparava, emfim, para receber o Microbio.

Entretanto, palitava elle a sua ociosidade, em Vigo, com alguns artilheiros, que ainda se não sabe, ao certo, se foram victimados pela febre, se pela gangrena originada no excesso de limpeza, em que viviam...

Informado dos preparativos, que no nosso paiz se faziam para o receber, Microbio Bacilla malhumorou-se.

Antipathizou com a calva luzidia do sr. dr. Meira, encarregado officialmente de o saudar em nome do governo lusitano.

Alterou repentinamente o itinerario e... foi-se.

Lá desappareceram com elle as fagueiras esperanças dos amanuenses, dos maridos infelizes e as cóleras dos senhorios de Valença, que em 85 foram, violenta e despoticamente, espoliados dos seus direitos de propriedade por um governo futre e poucaroupa, que teve o descaro de pagar, como aluguel de nove mezes, uns miseros centos de mil reis, que representam o dobro do valor das propriedades.

Lá desappareceram as rações de 1.ª classe e aquellas encantadas folhas de kilometros, que deram aos tropegos membros locomotores de amigos meus, obesos e adiposos, a agilidade e ligeireza do mais leve e reputado andarilho...

D’esta vez, ainda, déste xaque-mate ao Padre Eterno, oh grande doutor Lourenço!

*

Augustus Sampaius, senhor da Balagotia; Intendente geral dos serviços phyloxericos, digo,[2] antimicrobicos da fronteira; Commissario geral dos inoffensivos Cerberos da policia concelhia e, como tal, terror dos Troppmans e Jacks adventicios; Chefe da Repartição do expediente do sr. Administrador (que Deus Guarde); Director da Repartição Municipal de Hygiene e Secção annexa das toleradas, artes julianas e valladicas; Inspector do serviço das bombas e de segurança publica; Fiscal dos pesos e medidas; Secretario perpetuo das Juntas de Parochia; Orçamentologo official das Confrarias e Irmandades sertanejas; Irmão do SS. Sacramento; Mesario e Ex-definidor da Santa Casa da Misericordia; Mordomo da Senhora do Faro, da Senhora Santa Luzia milagrosa e outras Senhoras d’aquem e além mar, terras da Urgeira e Taião; Mestre de cerimonias nas contradanças lithurgicas das nossas festas de Egreja: Estatistico distincto dos fogos, productos, criminalidade, bipedes e quadrupedes do Concelho; Numismatico abalisado; Agricultor emerito; Actor consummado; phantasista original e querido das damas, em debuxos de lettras para lenços de namoro—homem que representas, na vida social da nossa terra, a mais completa e complexa, a mais genial expressão da actividade humana—Augustus Sampaius, senhor da Balagotia—eu te saudo!

Ao fallar no Micobrio, que tanto apavorou os conspicuos Esculapios da Junta de saude, e que tão ridentes esperanças fez agora despontar, no horisonte ennublado de muitas finanças oscillantes, eu não posso esquecer o teu nome, porque foi a ti, ao teu provado zelo, assaz reconhecida sollicitude, desempenada actividade que a Patria, eu e a minha prole devemos a desejada immunidade do terrivel Bacilla, na campanha de 85.

Commove-se-me profundamente a alma; inundam-se-me os olhos de lagrimas; sensibilizo-me, como se te ouvisse no palco com as lamentações de pae tyranno e infeliz; foge-me dos labios o riso, como se te aturasse o espirito n’essas libertinas extravagancias a que te dás no Carnaval, encadernado de princez, ou á antiga, com os ouropeis e a farrapada do teu guarda-roupa—(boceta pandorica de frioleiras e de traça)—percorrendo as casas sérias, com grande gaudio das matronas do teu tempo e abundante colheita de mystificações, intrigas, pançadas de riso, chavenas de chá e tostas com manteiga—quando me recordo, oh Balagotio illustre, dos teus serviços no cordão sanitario!

Noites tempestuosas que passaste; asperezas do inverno; longas caminhadas; chuva, vento, frio, fome e sêde; graves perturbações nas funcções digestivas; fraqueza nas contracções peristalticas, occasionando incommodas e demoradas accumulações no cœcum; nas longas noites de vigia, ao avizinhar-se vulto sombrio e suspeito, afrouxamentos instantaneos do sphingter com defecações abundantes, enfraquecedoras; fartas exhalações de acido carbonico e hydrogenios carbonado e sulfurado—e tudo isto pelo amor da humanidade, provocado pelo mais desinteressado altruismo, inspirado na mais acrisolada philanthropia e, depois ainda, aggravado com os arrancos da tua dyspepsia chronica e com a ingratidão da Patria de quem, contrariado, espezinhado na pureza dos teus sentimentos humanitarios, tiveste de receber, a fortiori, umas mesquinhas dezenas de libras!

Tu, Balagotio amigo, engrossaste o longo martyrologio, da Patria. Salvaste-a e continuas ahi esquecido, ignorado, com a tua dyspepsia e o teu barretinho de seda preto, condemnado a um eterno roçar de canhões do casibeque na mesa da Administração, sem uma commenda, sem veneras hespanholas, que se vendem ao alqueire, sem um viscondado sequer!

Mas eu, conterraneo illustre, não serei tambem ingrato. Já que esse Zé Barros pequenino foi insensivel aos vehementes protestos do teu amor, e te não fez Commissario das Policias, com pingue gratificação de categoria; já que o teu Chefe no Cordão se não compadece dos olhinhos de ternura e piedade, com que tu, cem vezes por dia, lhe fitas a janella, eu te protegerei, cidadão benemerito e prestantissimo.

Tu soffres. Essa dyspepsia cruel, quando se não fala em Microbio, mina-te a existencia, curva-te o tronco, descora-te a face, dissemina no teu organismo os germens de uma anemia lenta e perigosa.

Brown Sequard nada te póde fazer.

A Deus nada posso pedir a teu favor, porque tu tambem foste connivente, com esse feroz Attila do Registro predial, na prisão da Santa.

Nada temos a esperar do Céo, mas recorremos ao Olympo, que outr’ora fazia tão bons milagres, como o Senhor S. Campio, que sua uma vez por anno, ou a Senhora da Cabeça, que, para mostrar competencia na cura de fracturas da dita, reune traiçoeiramente na sua festa, quantos caceteiros comem boroa e feijão, por estas boas vinte leguas em redondo.

Pois bem! Que Jupiter ouça os meus rogos. Já que as delicadissimas funcções do teu organismo te consentem apenas o leite, como alimento, que Elle te mande Io, para que tu, nas suas cem tetas, possas de noite e de dia chupar a vida, novas forças, novos elementos e os teus tecidos tomem, a breve trecho, a salutar obesidade do sr. João Ignacio, do saudoso doutor Pacheco, ou do nosso prestantissimo deputado, o sr. Visconde da Torre!

Setembro 1889.

Sinapismos

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