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*

Como estava dizendo, quando me juntava aos Guerreiros e aos Garções, andava tudo, por ahi, n’uma dobadoira.

Pelo Maio, já tinhamos organisado uma inspecção rigorosa á producção do concelho.

Era-mos, assim, uma especie de agronomos.

Se nos perguntassem:

Quem é, que n’este anno vem a ter:

melhores peras?—o Chico Veiga.

melhores melancias?—o Boticario.

melhores melões?—o Ascencio.

melhores uvas?—O senhor José Rodrigues.

A este senhor José Rodrigues sempre tivemos muito respeito. Quando, por acaso, nos encontrava perto do Prazo, ou da Boavista, (a gente, já se vê, andava a passear innocentemente) falava logo em tiros, mortes, carabinas, punhaes, ratoeiras, facadas, cães de Castro Laboreiro... o diabo!

Por isso, não era como os outros:

o Chico Veiga,

o Boticario,

ou o Ascencio;

era: o Senhor José Rodrigues.

A final, foi sempre um santo, e pagava o seu tributo em bellas uvas e bons melões, como os outros.

Eu falei no boticario...

Era assim nos outros tempos, mas hoje é camarista e chama-se—o sr. Fontoura.

Este senhor é que nos pregou um susto! Eu conto, se não me torno massador para V. Ex.ª

*

As propriedades, como disse, estavam debaixo da nossa vigilancia permanente.

Logo que a uva principiava a pintar, a pera a mudar de côr, a melancia a ganhar casca—dava-mos assaltos medonhos!

Uma vez, combinamos o ataque ás melancias do sr. Fontoura. Ainda estavam verdes, mas duas, ou tres, principiavam a carregar na côr.

O calor abrazava. Era necessario ser um Santo, para resistir á tentação.

Á hora combinada, entramos na propriedade, cautelosamente, sorrateiramente, como quem anda aos grillos.

Tinhamos, já, duas melancias cortadas e tratava-mos de metter a unha, em certa parte das outras (de que eu não digo o nome, porque póde ser lido por senhoras) para verificar se estava molle ou rija, quando ouvimos gritos de agarra! agarra! e logo, após, o estampido d’um tiro!

Eu não posso explicar o que succedeu. Parece que nos agarraram pela golla da jaqueta e nos levaram, pelo ar, até á Esplanada!

Alli paramos, porque já não havia ar no mundo para os nossos pulmões. Consideramos no caso...

Apalpamo-nos cuidadosamente, demoradamente. Estendemos primeiramente uma perna; depois outra; depois um braço.

Cuspimos. Passamos a mão pela cabeça.

Não havia sangue.

Serenamos. Voltou-nos a voz.

Só então verifiquei que, no auge da afflicção, sem querer, tinha trazido as melancias!

Não estava tudo perdido. O que é o instincto da conservação!

Ainda nos incommodava a ideia, de que o sr. Fontoura fosse fazer queixa ás familias—o que significaria uma valente tapona.

Felizmente não succedeu isso, porque elle, no auge do seu furor, (do qual V. Ex.ª pode fazer idea, quando o ouve ameaçar céos e terra, clamando, á porta da pharmacia, contra os seus devedores) não nos conheceu.

Parece que Deus não o dispoz para a nobre carreira das armas, porque, ao apontar a espingarda, fez como os pretos e os soldados brazileiros—voltou a cabeça.

Quando novamente olhou, diz elle, que só viu fumo. Não era só fumo; eram nuvens de pó, que nós levantavamos.

Eu contei agora este caso, porque somos todos de maioridade, paes de filhos, eleitores, elegiveis, e já não temos receio de tapona em casa. Mas, até hoje, tem estado debaixo d’um certo segredo.

Como d’aquelle endiabrado rancho sahiram tão bons paes de familia, é que eu não sei.

São effeitos da edade.

A gente muda muito.

Eu conheço pessoas, que na juventude faziam o que podiam. Chegaram, mesmo, a dar nome; e que agora, sendo uns santos, em certas occasiões embicam com qualquer coisa, e nem sequer consentem, que no theatro se aqueçam os pés.

Isto vae tambem muito dos genios... e dos corações.

São como Deus os quer.

Valha-me Nosso Senhor Jesus Christo...

*

Mas, veja V. Ex.ª como eu perdi o fio ao discurso! Tudo isto veiu a lume, para dizer que o sr. Zagallo, na Camara, me lembrava a aula do Conego Vaz.

Eu queria-me safar, como disse, e, volta e meia, dizia ao Conego, levantando o dedo:

—Senhor Mestre, dá licença de ir lá fóra?

O Conego, ou dizia: vá,—ou:

—Está lá gente.

Mas aquillo tanto vez se repetia, que o Conego principiou a desconfiar que era doença, como teve o sr. Sampaio nas noites do cordão sanitario, doença que tanto dinheiro deu a ganhar á lavadeira...

Uma vez disse-me elle: Oh, senhor! Eu não sei para que cá vem. Nunca tenho a certeza se o senhor está fóra, ou dentro. Ao menos, quando sahir, deixe aqui ficar um papelinho.

E foi d’este papelinho que me lembrei, com os officios do sr. Zagallo.

*

Voltemos ao Justininho.

Justininho escrevia nas gazetas. Inventou o Mensageiro das salas, aquella interessante secção, que eu nunca deixo de ler, em todos os jornaes, porque é muito mais barato remedio, do que o Sedlitz Chanteaud.

Foi tambem elle, quem arranjou as seguintes classificações para as differentes posições sociaes:

Juizes integerrimos.
Delegados meritissimos e dignissimos.
Medicos habeis.[4]
Negociantes probos e honrados.
Bispos e Padres virtuosos prelados.
Proprietarios abastados.
Cavalheiros de fino trato.
Officiaes do exercito illustrados e briosos.
Galopins eleitoraes valentes candilhos.
Meninas galantes.
Noivas gentis e encantadoras.
Senhoras solteiras gentilissimas damas.
ditas casadas virtuosas esposas.
ditas viuvas inconsolaveis.
Quarentonas interessantes senhoras.
Jarrões respeitaveis damas.
Creanças que nascem robustos meninos.
ditas que vivem interessantes filhinhos.
ditas que morrem innocentes anjinhos.
ditas que, nem nascem, nem morrem, nem vivem mallogrados.[5]
Estudantes intelligentes e esperançosos.
Meninas... de fallar infelizes peccadoras.

Como V. Ex.ª vê, aqui ha para tudo.

É pedir por bocca.

Esta classificação teve voga. Foi adoptada em Monsão, em Caminha pelo sr. Ricardinho, em Cerveira pelo sr. Romeu, em Vianna pelo sr. Eugenio Martins, em Paris pelo sr. Xavier de Carvalho, etc.

Nas ilhas Sandwich é que eu não sei, mas vou sabel-o.

Ora, nós podiamos fazer um contracto com as redacções: abatiam uns tantos por cento nas assignaturas e mandavam depois, sem adjectivos, os Cavalheiros, os Padres, as Meninas... de fallar, etc., que a gente cá se punha... a dispôr os virtuosos e finos tratos.

Esta evidentissima e valiosa manifestação do progresso intellectual do nosso jornalismo deve-se, como disse, ao Justininho.

*

Justininho era correspondente de varios jornaes.

Tinha um estylo especial, caracteristico, archaico, indigesto, tirante a classico.

Por exemplo: se fosse necessario dizer n’um jornal, que a esposa do meu amigo Fabricio dera á luz um rapaz, e que já estava prompta para outro, eu empregaria, pouco mais ou menos, essas palavras.

Justininho diria:

Como prenoticiamos, a virtuosa consorte do nosso dilecto amigo Fabricio, probo e honrado negociante d’esta formidolosa Praça, deu á luz na preterita terça feira, um robusto e interessante menino, que presentemente é o enlevo dos seus tão extremosos, quão apreciaveis progenitores, e o encanto de todos os que hoje gozam a doçura ineffavel, d’aquelle pequenino ser.

A parturiente encontra-se já, graças ao Altissimo, liberta de perigo, devendo, tambem, a sua rapida convalescença ao desvelo e intelligentes cuidados do distincto e perito facultativo, o sr. dr. Pacheco. [6]

A suas ex.ᵃˢ endereçamos, em nome da redacção, os nossos emboras; e seja permittido ao auctor d’estas mal esboçadas linhas, incluir as suas cordiaes felicitações, que já algures exprimiu, como o mais obscuro, o mais somenos admirador das excelsas virtudes, que exuberantemente adornam suas Ex.ᵃˢ [7]

*

Ora aqui tem V. Ex.ª o que é uma imaginação fertil, e a triste figura que faz um pobre Fabiano, como eu, quando escreve nas gazetas.

O sr. Verissimo de Moraes, em tal caso, escreveria, ou não escreveria o mesmo.

Se fosse convidado para a festa do baptisado, usava exactamente d’aquelles termos, e accrescentava:

Todos os convidados d’aquella esplendurosa e inolvidavel festa se retiraram altamente penhorados, com a maneira fina e delicada, e inexcedivel amabilidade—que só a verdadeira fidalguia de sentimentos e nobreza de caracter podem conceder—com que o Ex.ᵐᵒ Sr. Fabricio e sua Ex.ᵐᵃ Esposa acolheram as pessoas, que tiveram a honra de entrar em sua casa.

Que perduravel ventura, e immensas felicidades, bafejem o berço do penhor de tantos affectos...

Se não fosse convidado, o parto e o baptisado seriam assim annunciados:

A esposa do sr. Fabricio deu á luz um rapaz, que hontem, ás seis e meia da tarde, foi baptisado na egreja parochial de S. Estevão.

E eu faria o mesmo, se tivesse jornal. A gente trata bem, quem bem a trata. Isto já era assim no tempo de Noé e ainda não havia gazetas.

N’esta classe de gazeteiros, quem rasoavelmente se distingue, é o Aurelio.

Tem um estylo á Victor Hugo e á Guerra Junqueiro.

Isso explica-se muito facilmente.

Está provado que a Materia anda n’este mundo, em constante giro; e que as moleculas, que actualmente estão no corpo A, podem muito bem estar, ámanhã, no corpo B.

E sendo assim, não admira que na massa cerebral aureliana, se anichem algumas cellulasitas vagabundas e patuscas dos grandes poetas.

Recordo-me, ainda, d’aquella grande questão, que elle sustentou, no Primeiro de Janeiro, contra o Exercito, por causa do Real d’Agua.

Ahi vae um trecho e diga-me V. Ex.ª, se lhe não parece que está lendo a Morte de D. João, ou a Legenda dos Seculos:

A lei é só uma com a espada da Justiça!

Palpitam corações nobres, sob as dobras da jaqueta,

Como palpitam e se orgulham debaixo da fardeta.

Quer se cinja uma espada, quer o cabo da rabiça,

Ha leis a obedecer. E com vontade, ou com magua,

Das batatas e do bacalhau que gastaes da Cooperativa,

Haveis de pagar, inteira, completa e positiva

A decima que todos pagam: os direitos do Real d’Agua![8]

Aurelio tem, tambem, incontestavel merecimento no theatro; mas nas doiradas espheras em que, entre nós, a Arte alli se expande e libra, nunca a minha nervosidade e a dynamica do meu espirito foram, tão extraordinariamente abaladas, como n’essa saudosa noite, em que aos meus olhos e sentidos, se patenteou a intuição artistica mais nitida, a percepção psychologica mais frisante, que tenho logrado admirar nos palcos dos grandes centros civilizados.

Alludo á magistral execução e genial relevo que, na Morgadinha de Val d’Amores, deram aos seus papeis, os meus amigos Machado e Romano.

V. Ex.ª deve recordar-se...

Representava-se o auto entre moiros e christãos. Figuravam reis, prophetas, anjos, princezes, pagens, donzellas, pastores e pastorinhas.

Das bandas do Oriente surgem: Manassés—o propheta, e Adonis—o princez.

As meias da sopeira, solidamente atadas, com tres voltas de fio de vela e nó cego, acima da articulação do femur com a tibia, desenhavam-lhes as linhas bamboleantes do pernil, escassamente roliço para despertar sensações eroticas; o pé, pequenino e adamado, encafuava se, gentilmente, n’um cambado sapato de entrada abaixo, com fivela doirada; o calção retesado limitava-lhes a curvatura das nadegas; dos hombros pendia-lhes graciosa quinzeninha de velludo defuncteiro; na cabeça, um carapucinho patusco, com o seu tope arrebitado.

Nas faces mimosas e assetinadas, espetára a mão endiabrada do Rocha ferozes matacões de caprina pellugem, e enfarruscára as sobrancelhas avelludadas, com repetidas fricções de rolha queimada, embebida no azeite do purgueira.

Marchavam com fronte altaneira, nariz repontante, seguidos pela sua côrte de paradas-velhas, ao compasso do hymno picaresco, que o meu amigo Argar, com a sua finissima intuição artistica, tão caracteristicamente soube conceber, adaptar e colorir.

Ao apparecimento de tão illustres personagens—um propheta e um princez—abalaram-se os alicerces do edificio, com a violenta expansibilidade dos applausos. Ao longo da medulla espinal, desde o bolbo rachidiano até á cauda equina, corriam-nos vibrações de enthusiasmo; as senhoras choravam; os homens arremessavam os chapéos; os paradas-velhas e esplanadas do loiceiro, impregnando o ambiente, no sonoro explodir do seu arrebatamento, de exhalações duvidosas e aromas assaz compromettedores, irrompiam em galhofeiras invectivas de affectuoso e intimo conhecimento, com os pagens e as donzellas da real côrte:

—Vira para lá a rabáda, oh Transmontana!

—Tens o rancho á espera, oh 35 da 4.ª

—Pica o pé, oh Estrella!

..............................

E na intima audição do meu espirito, entre os fulgores e as scintillações d’aquelle gloriosissimo triumpho, subjectivou-me, subito, o Senso:

Oh filho! Quanto póde a... Arte!

..............................

Mas... onde diabo está o Justininho?

*

Justininho era o fiel depositario, o mais denodado paladino das gloriosas tradições, que apresentam Valença, como a terra da provincia, em que ha mais convivencia, e em que as senhoras se apresentam, melhor, n’um baile. É uma superioridade, esta, como qualquer outra. Cornelia, Joanna d’Arc, Filippa de Vilhena, Deu-la-deu e outras matronas distinguiram-se a seu modo. São feitios.

Foi elle, tambem, o inventor d’aquella celebre phrase, ainda hoje acceite e adoptada, quando necessitamos occultar a nossa inercia, as nossas fraquezas, ou a nossa ingenuidade provinciana. Valença é madrasta para os seus e mãe para os estranhos.

Nunca pude comprehender o que Justininho, e outros sectarios da sua eschola philosophica, querem dizer na sua—n’uma terra, que não acceitou o legado do Conde de Ferreira, em que a Politica é o que sabemos, e em que os jovens engraçados, que hoje possue, se riem franca e desassombradamente, quando, nos bailes da Assemblea, uma senhora tem a infelicidade de cahir, ou quando, nos bailes de Tuy, onde são obsequiosamente acolhidos, mettem os cotovellos á cara dos infelizes pares, que de perto os seguem.[9]

São tambem opiniões... e feitios.

Ainda hei-de interrogar, sobre este ponto, os srs. Abreu e Oliveira, que são os homens que, por aqui, vejo mais nos casos de fallar de tudo e de todos, com auctoridade e competencia. Esses senhores devem saber muitas coisas e todas a fundo. Basta observar aquella constante concentração de espirito, e completa indifferença, com que encaram este mundo.

São cerebros, que, indubitavelmente, trabalham na resolução de grandes problemas sociaes.

Lembram-me tanto Mr. Prudhomme...

*

Justininho tinha muitos diplomas de Socio Honorario e de dito benemerito; tinha pennas d’oiro e de prata, etc. Era um perfeito rapaz de sala; recitava poesias; tinha album para ellas; conhecia uma infinidade de marcas no jogo do Senhor Abbade; e, para os rapazes, tinha uma grande habilidade: assobiava magistralmente.

Atacando um spartito de Mozart, de Verdi, de Gounod, ou a cadencia das valsas de Strauss, de Metra, ou de Waldteufel, aquelle assobio tinha a malleabilidade d’um rouxinol, a limpidez das notas da Patti, o crystallino da escala de Gayarre, ou do Masini. Quando, em noites de luar, Justininho passava na rua de S. João, todas as janellas se abriam para dar passagem, até aos leitos conjugaes, ás ondas sonoras, deslocadas pelo assobio.

*

Ora, como V. Ex.ª deve ter verificado, não lhe faltavam condições para inspirar sympathia e, certamente, vae ficar admirado, quando lhe disser, que havia quem embirrasse com elle!

Era o sr. Coronel Almeida. Chamou-lhe, por ironia, importante cá da terra.

Ignoro as razões, que originaram a antipathia de sua Ex.ª

Tambem por cá havia muita gente, que embirrava com o sr. Coronel. O Isidoro diz que elle era um homem muito fino; mas o Agostinho torce o nariz e Agostinho é homem, que se não engana, que é consultado pelas pessoas mais importantes da nossa terra, homem que sabe o que diz, e que não dá ponto sem nó.

Seria bom, ou mau, como quizerem. O que eu digo, é que era muito feio; mais feio ainda, do que o sr. dr. Salgado!

Devo ao sr. Coronel um grande serviço e um grande desgosto.

Conto o primeiro:

*

Eu tinha ido ouvir um sermão do Padre Capellão, em que sua Reverendissima, desviando-se, completamente, no estylo, na fórma, na sublimidade das ideas, na concepção das imagens, no arrojado da Phantasia, da vulgar Oratoria do Palmeirão e quejandos, me descreveu, d’uma fórma completamente original, intuitiva e concludente, em face da moderna Sciencia, a maneira como o animal homem appareceu n’este mundo.

Foi no Eden. Eva tinha ido aos grillos, mas estes, sahindo rebeldes á palheira e, como ella não conhecia ainda o outro meio natural de os fazer abandonar a toca, andou por montes e valles, cançou-se, e... adormeceu.

Veiu então Nosso Senhor, tirou-lhe uma costella, bufou-lhe e sahiu, já prompto e acabado, o nosso primeiro Pae.

Ora, isto satisfez completamente o meu espirito; dissipou todas as duvidas, porque é, realmente, uma das mais... respeitaveis e maravilhosas concepções dos livros sagrados.

Mas, passado pouco tempo, soube eu que, lá fóra, andavam ás turras differentes sabios por causa de novas theorias de evolução, selecção natural, transformismo, etc., sustentadas por Darwin e Lamark e combatidas por Linneu e Cuvier.

Alvoroçou-se a minha curiosidade e tratei de estudar a questão, com a attenção devida á sua importancia.

Durante muito tempo, nunca tirei o caso a limpo. Se passava por o sr. José Luiz,[10] dizia com os meus botões: vou com Darwin; se passava por o sr. Velloso dizia: vou com Cuvier.

Assim estive muito tempo, hesitando, e sem saber se, realmente, o meu coccyx foi sempre o extremo da columna vertebral, ou se em tempos remotos, esteve ligado a algum appendice, que hoje tem um nome muito sympathico ao sr. Marquez de Vallada.

Chegou o sr. Coronel a Valença e entrou a verdade no meu espirito. Fez-se a luz! Venceu Darwin.

Indubitavelmente, inquestionavelmente, o sr. Almeida não teve a mesma origem, que teve o sr. Velloso; a não ser, que se possa admittir uma hypothese, mas com essa nada tenho, porque não entra no meu programma. É questão de portas a dentro:—que houvesse troca nas vias da expedição...

*

Agora conto o desgosto:

Já lá vão quinze annos! Minha mulher andava, com licença de V. Ex.ª, no seu estado interessante.

Uma noite, para lhe combater a insomnia, li-lhe uma historia do Egypto, em que figurava o grande Sesostris, que morreu, como se sabe, ha perto de 4:000 annos e de que existe a mumia n’um museu qualquer.

Havia, n’essa historia, mortes, egypcios de barriga furada, pharaós com as tripas de fóra, creanças desventradas, velhos postejados—uma matança de arrepiar carnes e cabellos.

O livro tinha gravuras e n’uma pagina, via-se o grande Sesostris mumificado por aquelles processos, ainda hoje ignorados, dos antigos egypcios.

Minha mulher não gostou e affligiu-se. Fechei o livro e abri a porta, para ir cumprir uma necessidade urgente.

N’isto, passa na rua o sr. Coronel, e logo que minha mulher o vê, desata a berrar:

—Ai o Sesostris! Ai o Sesostris!

Teve uma syncope e, depois, dôres violentas.

D’alli a duas horas a sr.ª Maria do Hospital aproximava-se de mim e, com aquella amabilidade, delicadeza e fino trato que, infelizmente, lhe conhecemos, dizia-me estas terriveis e significativas palavras:

—Senhor, nada de affligir, porque a fabrica ainda cá fica; mas esta... deu-a para fóra!

..............................

Comprehendi. E no auge da minha dôr, para explosão da minha cólera, só pude exclamar:

Raios partam o Sesostris!

*

Deixemos coisas tristes...

Eu fallei no Velloso...

Este Candido Velloso, com os seus olhos negros, com o seu collete branco, o seu collar decotado, a sua perna bem lançada e elegante, o seu pequenino bigode á mosqueteiro, e com o oiro do seu uniforme, é o terror dos Paes de familia d’esta região peninsular.

João, é Candido e candido; meigo, carinhoso, delicado, para o bello sexo. Tem a sensibilidade d’um bardo; a alma sonhadora d’um menestrel; o espirito cavalheiresco d’um paladino; a pureza immaculada d’um Abeillard; o lyrismo d’um Romeu; a altivez d’um Quichote—todos os attractivos, emfim, d’um João com Dom e ás direitas.

Cinco seculos antes, e Velloso seria um dos onze companheiros de Magriço, n’aquella cavalheiresca aventura da côrte ingleza.

Apparece em toda a parte, onde ha senhoras. Corteja, sorri, offerece os seus serviços e conta coisas, que entretêm.

A sua organisação affectiva é poderosissima. Com o amôr, as contracções dos ventriculos, para a diastole e para a systole, realisam-se com uma força equivalente a 750 kilogrammetros por segundo.

O seu coração é um enorme caravanserail. Tem cem auriculas e cem ventriculos, com a capacidade de 64 metros cubicos cada um. Os amôres cabem lá dentro vestidos, calçados e com guarda-chuva aberto.

Cada um tem o seu quarto numerado. Ao levantar-se, Velloso, passa em revista todos os seus affectos e escolhe para o dia.

Não revela preferencias, para não originar baralhas. Ás vezes desapparece da circulação, porque os Papás valencianos e tudenses, aterrados, inquietos, vão ter com o sr. Silva Pereira e exigem-lhe a deportação do incendiario.

Lá vae para Castro Laboreiro. Quando é necessario por cá, basta pronunciar baixinho, esta palavra:—baile. No aureo tempo, em que João Morães era enthusiasta pelas danças e promovia aquellas apatuscadas reuniões-familiares, em que a gente ía á Assemblêa, para apprender a fazer meia, ou para ajudar a dobar maçarocas e novelos ás senhoras—acontecia ás vezes o seguinte:

João Morães lembrava-se d’um baile. Só no seu cerebro se definia essa idea. Matutava sobre o caso. Fechava-se no gabinete e, concentrando todas as suas faculdades, principiava o orçamento.

Calculava e annotava:

Chá (póde ser comprado aos homens do papel, que o vendem a 800, o kilo) $372
Assucar (Metade do pilé e metade do mascavado) $723
Pão para fatias (Cada peça dá 20, cada cornucho dá 12) 1$207
Manteiga para as tostas (Vende-a o Coisa a 200, o kilo, com ranço; póde ser misturada) $247
Carqueja e lumes de pau $015
Agua de Colonia para o toilette das damas (1 quartilho, de Tuy) $060
Pó d’arroz (e farinha) $030
Aluguel do Panorama, ao Albino $120
Illuminação (nas escadas póde ser de sebo) 1$473
Contracto com 3 cavalheiros para cearem em casa 3$900
Roscas de Tuy para os quatrocentos meninos e meninas, que costumam vir aos bailes 12$747
Gratificação ás amas, que tomem conta dos que ainda mamem 1$500
Piões e faniqueiras para os mais velhinhos se entreterem no salão $140
Musica de Ganfey para tocar á porta o hymno real, quando entrar o Representante do Rei, Nosso Senhor 6$000
Gratificação a 4 artilheiros para, armados, guardarem os taboleiros, na passagem do corredor 2$000
Brinde ao Aurelio para recitar uma poesia tragica: valor de $700
Idem ao Roldão para marcar as quadrilhas: valor de $720
Gratificação a 6 creados $300

Total 30 mil e tanto. Por cabeça—tanto. João Morães verificava. Tirava a prova dos nove. N’isto, batiam discretamente á porta. João abria e cahia-lhe o Velloso nos braços, offegante, pallido. Vinha do Castro Laboreiro a pé, a cavallo, no comboyo.

Sei que projectas um baile. Ahi tens a minha quota. Risca; e olha lá—oh menino—vê se arranjas isso depressa. Passam-se tão bem aquellas horas...

Este João deve ficar na terra. Deve ser expropriado por utilidade publica. Barcellos, que se arranje lá, como quizer. O Velloso Candido é que para lá não volta. D. Joões temos muitos por cá; agora, candidos, ha só um, que é elle; e esses, é que se apreciam, porque não fazem mal.

Velloso Candido! Trata de te matrimoniar, filho.

Oh diabo!... E a Mé...?

*

Em Politica, Justininho foi sempre, como eu—um desgraçado. O mais que podia conseguir, (e n’isso levou-me a palma) era um convite para fazer parte das mesas eleitoraes. Pois arranjou popularidade nas aldeias. Os lavradores respeitavam-n’o e affirmavam, que tinha lume no ôlho.

Em leis do Real d’agua e da Contribuição do Registro era um Salomão.

Ahi vae um exemplo:

Os guardas do fisco trouxeram-lhe, preso, um camponio, que tentára introduzir na villa, sem direitos, um garrafão com meio almude de vinho.

Perguntou o desgraçado quanto tinha a pagar e, aterrado com a multa e tantos por cento, nas barbas honradas da auctoridade, levou o garrafão á bocca e despejou-o d’um trago.

Nada se podia fazer, porque o Regulamento não previne esse caso.

Sahiu o homem, mas ao virar a primeira esquina, sentindo-se afflicto, levou as mãos á bocca e despejou o vinho.

Justininho vê isso e manda-o novamente prender. Intima-o a pagar direitos e multas correspondentes.

—Mas eu bebi o vinho, senhor!

—Bebeu, mas deixou-o ficar na villa, dentro de barreiras. Alli está, introduzido sem pagamento de direitos. Art. 1007.º do Regulamento de 6 de Maio de 1884. Pague!

—Mas eu esgumitei-o[11], senhor!

—O dito Regulamento, no seu paragrapho de isenções, não lembra esse caso. Pague!

E pagou, que não houve volta a dar-lhe. Nem sete doutores o salvavam.

*

Ora aqui está, o que pude apanhar ao Justininho d’outros tempos. Hoje está homem sério, como eu; já nem escreve nas gazetas, o que é realmente para lastimar, porque nem a gente sabe quantos robustos meninos, por ahi nascem.

Justininho,

boas noites.

Sinapismos

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