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I Guerra nocturna
ОглавлениеFoi há vinte mil anos.
O pólo Norte defrontava com uma estrela da constelação do Cisne.
Nas planícies da Europa, ia extinguir-se o mamute, as grandes feras emigravam para o pais da Luz; a rena fugia para o setentrião. O auroco[1], o uro[2], o veado apascentavam-se na erva das florestas e das planícies. O urso colosso, muitos tempos antes, havia já passado além da região das cavernas.
Os homens da Europa, os grandes dolicocéfalos[3], achavam-se então disseminados desde o Báltico ao Mediterrâneo, desde o Ocidente ao Oriente. Habitantes das{2} cavernas, mais relacionados que os seus avós da idade da pedra, mas sempre nómadas, a sua indústria elevava-se, a sua arte era graciosa. Esboços traçados a buril fraco, tímidos mas fiéis, representavam a luta do cérebro no encalço do sonho, contra a brutalidade dos apetites. Séculos depois, com a invasão asiática, a arte decairá, e o gracioso tipo daquela indústria só reaparecerá ao cabo de longos períodos.
Era no Oriente meridional, na estação em que as plantas abotoam.
A noite ia em dois terços. Na claridade cinzenta de um grande vale, reboavam as vozes dos animais carnívoros. Nos intervalos de silêncio, um rio cantava a vida dos fluidos, a eufonia das ondas. Os amieiros e os álamos respondiam em murmúrios, em harmonias intermitentes. A estrela Vénus engastava-se no Levante. A teoria das constelações imortais descortinava-se entre as nuvens erradias; Altaír, Vega, a Carreta rodeavam lentamente a Polar do Cisne.
Em quanto a vida palpitava nas trevas, feroz ou apavorada, arrojada às festas e às batalhas do amor ou da alimentação, veio juntar-se-lhe um pensamento. À beira do rio, no pontal de uma rocha solitária, um vulto ressaiu da caverna dos homens, e ficou imóvel, taciturno, atento, olhando a revezes a estrela do Levante. Algum devaneio, algum esboço de estética astral, menos raro entre estes avoengos da arte do que em muitas populações históricas, preocupava o madrugador. O vigor e a felicidade palpitavam nas suas veias; o hálito da noite perfumava-lhe o rosto; e ele, na plena consciência{3} da sua força, fruía, intemerato, os murmúrios e a calmaria da natureza virgem.
Entrementes, por baixo da estrela Vénus, transpareceu um pequenino clarão. O alfange da lua apontou, os seus raios estenderam-se pelo rio e pelas árvores, entremeados de longas sombras. O homem exibiu então as suas formas de corpulento caçador, de ombros cobertos de uma pele de uro. O seu rosto pálido, pintado com traços de minio, era largo, sob um crânio alongado e resistente. A sua zagaia, de ponta córnea, projectava-lhe no corpo sombras em ziguezague; e na sua mão direita firmava-se uma enorme clava de carvalho.
Ao estirarem-se os raios lunares, a paisagem entrou numa existência menos selvagem. Nos amieiros, havia frémito de asas dos elitros brancos; na planície, nesgas entreabertas de paraíso; em todas as coisas uma palpitação sensível; tímidos protestos contra os pavores da sombra.
O homem, fatigado da imobilidade, caminhava ao longo do rio, com o passo cauteloso de quem procura presa. A quinhentos cúbitos, parou, à espreita, de zagaia firme, na altura da testa. Pela orla de um bosquete de bordos, aproximou-se um vulto ágil, um grande veado de dez pontas.
O caçador hesitou; mas a sua tribo devia estar muito provida de caça, porque o animal, sem ser perseguido, foi-se afastando, projectadas sobre a claridade avermelhada as pernas delgadas, a cabeça repuxada para trás, todo o gracioso organismo em carreira.
—Lô! Lô!—disse o caçador, num movimento de simpatia.{4}
O instinto predizia-lhe a aproximação de inimigo feroz, algum potente felino, que andaria caçando. Efectivamente, meio minuto depois, surgiu da banda de além da rocha dos trogloditas um leopardo, aos pulos, ligeiro como um raio. O homem preparou a zagaia e a clava, atento, de nariculas latejantes e nervos inquietos. O leopardo atravessou o rio como uma porção de escuma, e imergiu nas sombras da perspectiva. E todavia o delicado ouvido do caçador ainda, durante alguns minutos, percebeu os passos da fera sobre a terra mole.
—Lô! Lô!—repetiu ele, levemente comovido, numa atitude de provocação grandiosa.
Decorreram minutos. As pontas da lua tornavam-se mais nítidas; pequenos animais agitavam levemente as moitas da ribanceira; grandes batráquios coaxavam sobre as plantas fluviais.
O homem libou a simples voluptuosidade de viver ante a magnificência das grandes águas, a mesclada difusão dos claros e dos escuros; depois, afastou-se de novo, à escuta, de olhos afeitos às penumbras, espreitando as ciladas da noite.
—Hoi?—murmurou ele interrogativamente, refugiando-se na sombra de um moitedo.
Um rumor de galope, vago ao principio, aproximava-se, evidenciava-se. O veado reapareceu, tão rápido mas menos exacto na direitura da carreira, suando, de respiração alta, ofegante. A cinquenta passos, o leopardo, sem fadiga, gracioso, já triunfante.
O homem admirava, desgostoso, a pronta vitória do{5} carnívoro, com um desejo crescente de intervir, quando sobreveio uma peripécia terrível. Lá em baixo, à orla da moita de bordos, em pleno luar, ressaía um vulto maciço, em que, pelo rugido cavo, pelo salto de vinte cúbitos, e pela farta crina, o homem reconheceu a quase soberana fera,—o leão.
O pobre veado, desorientado pela surpresa, deu uma volta precipitada e desastrosa, retrocedeu, e achou-se logo sob as garras cortantes do leopardo.
Luta rápida, sangrenta; o arranco do veado agonizante; e o leopardo, sobressaltado, ficou imóvel: o leão aproximava-se tranquilamente. A trinta passos, estacou, com um bramido, sem preparar assalto. O leopardo quaternário, corpulento, hesitou, furioso de se lhe ter malogrado o esforço, e pensando em aventurar-se a combater. Mas a voz do dominador, agora mais alta, reboou pelo vale, dando sinal de ataque, e o leopardo cedeu, afastando-se vagarosamente, de cabeça voltada para o tirano, com um miar de raiva e de humilhação. O outro despedaçava o veado; devorava, a grandes pedaços, a presa roubada, sem pensar no vencido, que prosseguia na retirada, devassando a penumbra com os seus olhos de oiro-esmeralda.
O homem, a quem a vizinhança do leão aconselhava prudência, aconchegava-se cautelosamente no seu abrigo frondoso, mas sem terror, disposto para qualquer aventura.
Depois de alguns instantes de deglutição furiosa, o leão interrompeu-se: perturbação, dúvidas, transpareceram em todo o seu aspecto, no tremor da juba, no{6} espreitar angustioso. De repente, com a força de uma convicção, tomou o veado, deitou-o para as costas e pôs-se em fuga. Teria andado quatrocentos cúbitos, quando junto a orla, onde ele tinha aparecido, surgiu um animal monstruoso. Intermediário ao leão e ao tigre no aspecto e na forma, mas mais colossal, soberano das florestas e planícies, era o símbolo da força, erecto, sob a vaporosa claridade. O homem tremeu, abalado no intimo das suas entranhas.
Após ligeira pausa debaixo dos freixos, o animal prosseguiu na caça. Devastador como um ciclone, abrindo caminho sem esforço, perseguia o leão em fuga para o Oeste, enquanto o leopardo, parando, contemplava a cena. Os dois vultos foram desaparecendo, e o homem pensou em deixar o seu retiro porque o leopardo o inquietava pouco, quando a cena se complicou: o leão regressava obliquamente, por ter achado algum obstáculo, pântano ou fosso.
O homem sorriu, chasqueando o leão, por não ter calculado melhor a fuga, e retraiu-se para o seu esconderijo, porque os dois colossais antagonistas vinham na direcção dele. Como era natural, retardado pelo desvio e pelo peso do veado, o fugitivo perdia terreno.
Que fazer? O caçador estendeu a vista em torno de si: para alcançar algum choupo era mister galgar duzentos cúbitos e, além disso, o espeleu[4] trepava às árvores.{7} Quanto à rocha dos trogloditas, ficava ainda a uma distância dez vezes maior. Preferiu sujeitar-se à ventura.
A sua hesitação foi rápida.
Em dois minutos, as feras atingiam a beira do seu retiro. Ali, o leão, vendo que a fuga era inútil, deixou cair o veado, e esperou. Foi um momento de tréguas, uma suspensão como a de há pouco, quando o leopardo segurava a presa. Em volta, o silêncio, a hora da anunciação, a hora em que os nocturnos vão dormir e os diurnos renascem para a luz. Claridades de sonho, cimos de árvores embebendo-se em algodoamentos pálidos, guarnições de graminias lanceoladas meneando-se ao sopro hesitante do Poente, e, por toda a parte, o vago, o confuso, a emboscada da natureza, feita de fronteiras arborescentes, de clareiras, de faixas cetinosas de céu.
Lá em cima, os astros despertos, o salmo da eterna vida.
Sobre um montículo, o espeleu recortava na claridade lunar o seu perfil altivo de dominador, a crina pendente sobre uma peladura mosqueada de pantera, a testa chata, as maxilas proeminentes,—rei outrora da Europa cheleana, em decadência hoje, reduzida a estreitas faixas de território. Mais abaixo, o leão, de respiração rouca, a pesada garra assente sobre o veado, hesitante em face do colosso, como pouco antes o leopardo diante dele, uma fosforescência nas suas pupilas, mesclada de receio e cólera. Na penumbra, já familiarizado com o drama, o homem.
Um rugido surdo se espraiou; o espeleu sacudiu a{8} crina e começou a descer. O leão, em recuo, de dentes descobertos, largou por dois segundos a presa; depois, desesperado, estimulado pelo orgulho, voltou com um rugido mais estrepitoso que o do seu adversário, e assentou de novo a garra no veado.
Queria dizer que aceitava o combate. O espeleu não obstante a sua força prodigiosa, não respondeu logo. Parado, acuado, examinava o leão, calculava-lhe a força e a agilidade. O outro, com a altivez da sua raça, conserva-se de pé, de cabeça erguida. Novo rugido do agressor, uma réplica retumbante do leão, e achavam-se a um salto de distância.
—Lô! Lô!—murmurou o homem.
O espeleu transpôs a distância, a sua garra monstruosa levantou-se ante as unhas do inimigo. Por dois segundos, a pata ruiva e a pata mosqueada defrontaram-se num armistício final. Depois, o ataque, uma confusão de crinas e maxilas, bramidos ferozes, enquanto o sangue escorria.
Ao principio, o leão dobrou-se, sob o tremendo assalto. Desembaraçado em seguida, fez um salto transversal, atacou de flanco e a batalha tornou-se indecisa, amortecido o arrojo do espeleu. De repente, o frenesim dos organismos, a agitação dos músculos de bronze, a indecisão de esforços malogrados, o revoltear das crinas ao clarão da lua, um despegar de carnes igual às palpitações de uma onda no mar, a escuma das goelas e a fosforescência das pupilas fulvas, bramidos semelhantes ao restrugir das tempestades nas franças dos carvalhos...{9}
Finalmente, o leão, ferido por um golpe terrível, caiu, rolando; e o espeleu, como um raio, atirou-se sobre ele e começou a rasgar-lhe o ventre.
Debateu-se o leão, rugindo medonhamente. Conseguiu porém levantar-se ainda, de entranhas pendentes e juba ensanguentada. Compreendendo não só a impossibilidade de fugir, senão também que o outro não se apiedaria dele, fez rosto sem fraqueza, e reentrou no combate com tal fúria, que, durante minutos, o espeleu não pôde dominá-lo.
Mas o desenlace aproximava-se, as forças do vencido decresciam rapidamente: dominado de novo, deitado em terra, veio o suplicio, o encarniçamento do mais forte, as vísceras do leão arrancadas, os seus ossos partidos entre arpéus poderosíssimos, a sua face triturada e disforme..., e os rugidos da agonia, repercutidos através do horizonte, cada vez mais roucos, mais débeis, transmudados logo em suspiros, em estertores, em tremor de vértebras... Enfim, uma convulsão de garganta, um arranco lamentoso, e o soberano animal expirava.
O espeleu encarniçou-se no cadáver, na carne ainda vibrante, com a voluptuosidade da vingança e o receio de uma ressurreição. Por fim, assegurando-se de que era infundado o receio, repeliu desdenhosamente o cadáver, celebrou com um rugido o seu triunfo e o seu repto às penumbras, com as espáduas e tórax sangrando de largas chagas.
Rompia a manhã. Ao fundo do horizonte, uma viva filtração de prata, o arco da lua esmaecendo, evaporando-se.{10}
O espeleu, depois de lamber as feridas, sentiu que a fome voltava, e caminhou para a carcaça do veado. Cansado, muito distante do covil, procurou um retiro, onde pudesse comer, à sombra. A moita próxima, em que se abrigava o caçador, atraiu o seu olhar, e cuidou de arrastar para ali a sua presa.
Entrementes, fascinado pela magnificência do combate, o homem contemplava ainda o vencedor, quando viu que ele se dirigia para a moita.
Um estremecimento de espanto e de terror lhe percorreu o corpo, sem lhe tirar o instinto da luta e do cálculo.
Pensou que, depois de tal combate, e ávido de descanso e de alimento, o espeleu não o inquietaria naquele retiro.
Entretanto, não tinha disso a certeza; recordava as lendas dos velhos, referidas em noites veladas, o ódio do espeleu contra os homens. O grande felino, raro já, em decadência contínua, parecia ter o instinto do papel dos primatas para a extinção do homem, e satisfazia o seu rancor desordenado, sempre que se lhe deparava um individuo solitário.
Ao tumultuarem-lhe no cérebro estas lembranças, o homem hesitava sobre o que, em caso de ataque, seria preferível: se o abrigo, se a planície rasa. Aquele amorteceria o ímpeto da fera; a planície tornava mais fácil o tiro da zagaia e os golpes de clava.
A hesitação não podia durar muito: o espeleu começava a afastar a folhagem da moita. Decidida rapidamente a escolha, o homem deu um salto, e saiu por{11} um atalho, em ângulo recto com a linha que o monstro seguia.
Ao agitarem-se os ramos, o espeleu inquietou-se, rodeou a moita, e, vendo surgir um vulto humano, rugiu. Ante esta ameaça, desvanecida qualquer tergiversação, o caçador, de músculos ágeis e destros, ergueu a zagaia e apontou. A arma vibrou, seguiu direita o seu caminho e foi cravar-se no pescoço do felino.
—Eô! Eô!—gritou o homem, brandindo a clava com ambas as mãos.
Depois, tornou-se imóvel, firme, belo gigante, herói das idades de luta, de olhar lúcido.
O espeleu avançou, calculando o salto. O homem, com uma destreza maravilhosa, fez um movimento obliquo, deixou passar o monstro, a sua clava desceu como um martelo formidável, e estalaram vértebras. Um rugido estrangulado de pranto, a queda, a imobilidade imediata do colosso; e o homem repetiu vitorioso o seu grito de guerra:
—Eô! Eô!
Continuava todavia na defensiva, temendo a repetição do ataque, contemplando a fera, os seus grandes olhos amarelos, abertos, as suas garras do comprimento de meio cúbito, os seus músculos enormes, as suas goelas escancaradas e ainda cheias do sangue do leão e do veado, todo aquele admirável organismo bélico, de ventre pálido, sob a pelagem amarela, mosqueada de negro...
Mas estava bem morto o espeleu, e já não tornaria a encher de pavor as trevas.{12}
O homem sentiu no peito um grande bem-estar, uma plenitude de orgulho dulcíssimo, uma dilatação de personalidade, de vida, de confiança em si, que o pôs nervoso e contemplativo, ante as flores que a aurora iluminava.
As musicas e a brisa da manhã ergueram-se ao mesmo tempo no horizonte. Os animais diurnos foram abrindo as suas pupilas, as aves pipilaram de encantadas, voltando-se para o Levante, entumecidas as suas pequenas cornamusas. Sob transparente névoa, o rio parecia de estanho levemente embaciado; depois, mergulharam nele os esplendores do vapor e nele se reflectiu um mundo de formas e matizes. Os cimos dos grandes choupos e das pequenas graminias da planície estremeceram, ao mesmo hálito quente de vida. O sol já se elevava acima da floresta distante, e os seus raios estiravam-se pelo vale, entremeados de sombras de árvores delgadas e intermináveis. O homem estendia os braços, numa religiosidade vaga, sem culto determinado, compreendendo a força e a eternidade do sol, e o efémero da sua personalidade. Depois, teve um grito, o seu grito de triunfo:
—Eô! Eô!—
E, à borda da caverna, apareceram os homens.{13}
[1] Espécie de uro. Os franceses chamam-lhe auroche, palavra alemã, de auer, planície, e ochs, boi. (N. do trad.).
[2] Espécie de boi selvagem. (N. do trad.).
[3] Homens de crânio oval. (N. do trad.).
[4] Corpulento animal felino dos tempos pré-históricos, felis spelaca.