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II A horda
ОглавлениеAos sorrisos da manhã, quando a aragem afagava, regeneradora e voluptuosa, o rio e a planície, os tições da primeira refeição extinguiam-se à beira da caverna dos homens.
A árvore-sepulcro[5] de cem cúbitos de alto, estendia os seus braços, cheios de esqueletos pálidos, de trogloditas extintos. Ao frouxo embate da viração, o ossário aéreo emitia cânticos suspirosos, eufonias silábicas; e um velho, apoiando o tronco em os calcanhares, punha os olhos présbitos em tais ou tais crânios que surgiam de entre as sombras ramusculares, reconstruía mentalmente os anais de tal ou tal caçador glorioso, de tal{14} ou tal companheiro da mocidade, devorado pelo nada.
A horda de Pzanns, espalhada, ressentia-se do encanto daquela hora. As crianças saltavam pelo campo, até à fronteira das águas; entre os salgueiros, misteriosamente, alguma rapariga semi-nua avivava a sua frescura e os seus enfeites, enlaçava as ondas fulvas dos seus cabelos; os homens compraziam-se em projectos de caça ou de trabalho, quase todos corpulentos e musculosos, de crânios alongados e cheios de energias belicosas. Em tigelinhas de sílex, alguns guerreiros moíam e misturavam o minio vermelho com medula de uro, e pintavam o rosto e o peito com um fino pincel de fibras: parábolas mal-feitas, fios entre-cruzados, vagas representações do natural, pequenos anéis, traços irradiantes. Outros prendiam aos joelhos, ao pescoço, à testa, aos pés, ornatos bárbaros, pingentes de caninos furados à nascença, (dentes de leão, de lobo, de urso, de auroco, de veado), vértebras de peixe, cristais com reflexos de ametista, seixos gravados, e a miúda joalharia marinha: a porcelana-lúrida, lapas, litorinas.
A horda representava uma humanidade já propensa ao ideal, industriosa e artista, caçadora mas não belicosa, que aceitava o mistério das coisas sem ter ainda conhecido culto, dominada apenas por vagos simbolismos. Eram filhos da grande raça dolicocéfala, dominadora da Europa quaternária, vivendo em paz, de horda para horda, estranhos à degradação da escravatura; caracterizava-os uma nobreza rude, uma grandeza e uma bondade que não mais se encontrarão no decurso da{15} neolítica[6]. Eram largos os seus campos e tão ricos de alimentos, que ainda não surgira o instinto de apropriação directa nem sombra de astúcia vil. Os condutores de tribo, sem autoridade efectiva, livremente escolhidos e seguidos, por virtude da sua seriedade e experiência, ainda não haviam entronizado o despotismo. Unicamente as questões de amor e rivalidade manchavam, algumas vezes, a terra com o sangue de homem, derramado por homem...
Terminada a refeição e dispostos os enfeites, começou o trabalho das mulheres e dos homens que não entravam na caça desse dia. Ah desde o sílex de Thenay[7], desde o taciturno antropopiteco, agora que no seio da fauna ia surgir o antepassado cheleano, quantas fronteiras ultrapassadas, dentro do universo cerebral!—divisão do trabalho, tradição de utensílios, soberania da natureza, organismo multiplicador das forças humanas, esboços artísticos...
Com delicada agulha, muitos cosiam pelicas, depois de abrir nelas pequenos orifícios com um punção de pedra; outros, com polidor e raspadeiras trabalhavam em peles frescas; alguns, em bancos de pedra ou de madeira, ao ar livre, martelavam, afiavam as machadas,{16} as facas, as serras, os burís. O corte, fazendo saltar pequenas estilhas, e feito com uma destreza e paciência admiráveis, deixava aparecer, lentamente, as lâminas e as pontas, e mui raramente o artista deixava de descobrir as direcções convenientes à percussão, familiarizado com a matéria, dotado da previsão que se adquire com a longa prática. Tarefa mais delicada ainda, contornavam outros as pontas, os anzóis, os arpéus de osso e corno, munindo-se de utensílios finos e perfeitos, tais que a humanidade não poderá excedê-los, senão em passando da pedra para o metal.
Sobretudo a agulha revelava uma engenhosa indústria: esquirolas arredondadas por meio de sílex denteado e com entalho; polidura e alisamento com grés fino; escavação do fundo na ponta curva, com uma lentidão calculada, com mil perigos de se partir a obra.
Em quanto os trabalhos começavam, um grupo de caçadores reunia-se junto da caverna.
Ao rochedo mais alto subiu um moço, de olhar penetrante, a explorar as perspectivas. À sua esquerda, sob reflexos de ametista embaciada, frouxa e vaga, a floresta esbatia-se no horizonte, prolongando-se até o rio. Em frente, os valeiros, as quebradas das estepes, a ondulação suave dos outeiros, oásis semelhantes a nenúfares num pântano, o espelho sinuoso das águas fecundas. Atrás, perdida na poeira da tíbia claridade das nuvens, a região das montanhas; e por toda a parte perfis diminutos de animais pascendo em planícies: o caçador contou uma horda de cavalos e um rebanho de uros.{17} Com uma voz atroadora, anunciou-os aos seus companheiros, traçando com o dedo a direcção da caça. Àquele aviso, todos tomaram as armas: o arco, o arpéu, a zagaia, a clava. Depois, no momento da partida, a velho chefe, lançando um olhar em roda, bradou:
—Vamiré!—
Então, no portal das grutas, apareceu o moço que vencera o espeleu. Hesitou entre o desejo de prosseguir na preparação da manta que talhara na pele do monstro e que começara na véspera, e o desejo da caça. Decidiu-o a mocidade, a atracção dos vales rejuvenescidos, as exclamações dos seus companheiros. Reentrou na caverna, e reapareceu logo, armado de arco e clava, e o bando pôs-se em marcha para o Norte. Cheios de vivacidade ao principio, excitados os cérebros bárbaros pela marcha e pelas belezas matinais, foram-se tornando depois silenciosos.
De súbito, um rebanho de uros apareceu-lhes no alto de uma colina. Os grandes herbívoros espalhavam-se em triângulo, em número de muitos centenares, numa área de dois mil cúbitos. Os toiros, de flanco leonino, crânio volumoso e pelo avermelhado, circulavam, a passos lentos, entre as fêmeas e os machos tenros. Aquele rebanho enorme realizava um esplendor de vidas tranquilas, de majestade pacifica e de força social. À voz do condutor, (um toiro colossal, postado no ângulo mais agudo do triângulo), os outros machos agruparam-se para o combate. Uma inteligência selvagem,—inteligência atrofiada, entre os seus irmãos da Ásia,{18} por uma servidão que já existia desde muito,—tornava-os aptos para a táctica, para a espontaneidade.
Os caçadores pararam. Encobertos por um cabeço, discutiam o plano de ataque. A configuração do terreno e a situação das feras davam lugar a duas alternativas: atacá-las, ao mesmo tempo, à direita e à esquerda, aproveitando a série de outeiros transversais, ou contornar a planície, e surgir lá de baixo, a duas léguas, de uma densa mata de figueiras silvestres.
Depois de alguns minutos, a maioria optou pelo primeiro método, porque o outro, embora mais produtivo em caso de bom êxito, era evidentemente menos seguro, podendo qualquer pânico afastar os uros, antes de serem assaltados.
O bando dos caçadores dividiu-se em dois troços, guiado um pelo velho que empunhava um bastão de comando com esculturas, e o outro dirigido por um colosso de idade madura.
De ambos os lados, a marcha foi organizada segundo as regras, utilizados sabiamente os acidentes do terreno; e a horda do velho, avançando rapidamente, aproximava-se, estava já a distância de tiro, quando o grande uro condutor pareceu inquietar-se. Erguendo a cabeça vermelha, constelada de luas brancas, farejou o horizonte, e ficou suspenso numa perscrutação profunda. Depois, a sua voz ergueu-se, bela e grave, como a voz dos leões. Os herbívoros dispersos assustaram-se, e concentraram-se. Um minuto de duvida; um estremecimento de espinhaço; a convicção enfim de que estava próximo o inimigo, o implacável inimigo{19} vertical, tão conhecido das feras; e logo o sinal de fuga, a partida inopinada da enorme caravana, acelerando-se num trote, que fazia latejar o vale.
Renunciando o ardil, os trogloditas subiram a cadeia de outeiros que os encobria, os mais ágeis apareceram na cumeeira; mais de dez tiros de arco os distanciavam dos retardatários do rebanho de uros. Estes andavam rápidos, sem estorvo dos novilhos; mas, desde o primeiro assalto dos caçadores, era evidente que a expedição chegava ao seu terreno. Os mais ardentes, verdadeiros bárbaros de raça vitoriosa, sem cálculo, empenhavam-se numa luta de emulação, insensíveis à palavra dos guias. Em poucos minutos, três de entre eles chegaram a menos da distância de um tiro, e as frechas silvaram, um toiro caiu, outro urrou formidavelmente.
—Eô! Eô!
Partiram outras frechas. Ficou estendido um toiro e depois uma fêmea; cinco caçadores tinham os uros ao alcance de tiro.
Então, sacrificando-se, dois dos bovídeos machos fizeram alto. Escarvando o solo por um minuto, e fixando no espaço os grandes olhos perturbados, arrojaram-se à luta, nobres protectores da sua raça.
Mais frechas; mais golpes profundos; mas as belicosas alimárias não pareciam senti-los, cada vez mais próximas sempre, sempre mais ferozes. Confiados nas pernas, os caçadores dispersaram-se, pela maior parte; mas dois moços, entre-olhando-se, e dominados por um orgulho de valentia e destreza, esperavam imóveis. Os outros então, facto curioso, fizeram semicírculo.{20}
O primeiro toiro, de cerviz baixa, e com uma velocidade terrível, correu directamente contra o mais alto dos moços caçadores. Este, com um movimento elegante, pôs-se de esguelha e cravou a sua lança na ilharga do toiro.
Sangrado, o animal parecia desfalecer, mas voltou de soslaio, menos ligeiro e mais cauteloso. Mas nem por isso evitou melhor o bote: a arma entrou-lhe de novo nas entranhas, mais penetrante, mais cruel.
Cambaleante, ajoelhado, o uro pareceu vencido, em posição de receber o golpe supremo.
Mas, no momento em que a lança se levantava de novo, ele ressaltou, e com o corno esquerdo levantou o homem. Levado na parte convexa daquele crescente e não na ponta, o guerreiro desembaraçou-se a tempo, e o seu terceiro golpe, decisivo, em pleno coração, assegurou-lhe a vitória.
—Terann matou o grande uro,—rugiu ele.
Ao lado, a luta empenhava-se de outra forma. Quando Terann aniquilava o seu adversário, outro toiro se arrojava contra o caçador da clava.
Postado em frente, temerário, o homem desceu a arma e julgou esmigalhar o crânio da alimária. Mas, vindo de lado, e por um desvio de cornadura, a pancada não sortiu todo o efeito; e o toiro, precipitando-se como um raio, arrastava o nómada pelo espaço de dez cúbitos.
Inerme, maltratado, espezinhado, viam-se já as entranhas do desgraçado, e ouvia-se-lhe o estalido dos ossos.{21}
Depois o sangue jorrou: feridas enormes esburacaram o peito; e, na perturbação dos caçadores, apenas algumas frechas soaram dos arcos, despedidas pelos melhores archeiros. Depois ainda, como o toiro se encarniçava no corpo do vencido, muitos arrojaram-se com grande clamor.
A monstruosa alimária não os esperou.
Convicta, talvez, de que morreria, mas desejando cair como guerreira, marchou altivamente contra os assaltantes. Nuvens de dardos foram embeber-se nos seus belos flancos, sem lhe sustar a velocidade, e prontamente atingiu um novo antagonista, um velho que fugia sem agilidade, e lançou-o por terra.
Baixando a cornadura, dispunha-se a arrebatá-lo, mas um tiro de zagaia nas espáduas do uro salvou o homem e o flexível perfil de Terann veio interpor-se.
—Terann! Terann!—clamaram os caçadores. Terann evitou o ataque do uro; mas o seu segundo tiro, mal dado, roçou apenas uma omoplata.
Por sua vez, rolou pelo chão; por sua vez, viu baixarem-se as agudas e velozes pontas da cornadura, e todos o julgaram perdido. Mas, de repente, ágil como o salmão que sobe um rio, apareceu, de clava erguida, Vamiré. Teve apenas tempo de retirar Terann e arrojá-lo ao acaso, enquanto os trogloditas bradavam:
—Vamiré é forte como o mamute!—
Com um aceno, Vamiré desviou qualquer auxilio. Depois, colocando-se a seis cúbitos do toiro, falou-lhe assim:
—Retira-te, valente..., tão digno de viver e de{22} conservar a grande raça dos uros, tão digno de pastar por muito tempo as boas ervas da planície.
Imóvel, o bovídeo fitava no caçador as suas largas pupilas azuladas; e uma piedade misericordiosa segredava, na alma de Vamiré, penas por aquela grandiosa alimária, sacrificada à fatalidade das lutas. Entretanto, triste, já sem arrojo e com as artérias exaustas, o toiro baixava ainda a cornadura, aguardando o ataque do homem. E Vamiré prosseguiu:
—Não, valente..., Vamiré não tocará no grande uro vencido... Vamiré sentiria que as planícies ficassem privadas do valente, que pode proteger a sua raça contra o leão e o leopardo...
Dobrado sobre os joelhos, o uro parecia escutar o caçador, num sonho dilatado e vago. Depois, a sua cabeça oscilou, um eco débil de rugido estremeceu-lhe na garganta... O toiro prostrou-se, as suas pálpebras entrecerraram-se, e o seu último alento exalou-se sobre as gramíneas.
Assim findou a caça, numa grave tristeza; e os cinco uros, que jaziam dispersos na planície, haviam custado a vida a um filho dos homens, porque se viu que Vanhab, filho de Djeb, acabava de restituir o seu ser às coisas. E os guerreiros Pzanns ainda uma vez reconheceram a força e a coragem do uro; mas, por um sentimento de indefinida discrição, sentiam agora mais amargura que cólera. Associados às últimas palavras de Vamiré, sabiam que a existência do herbívoro é necessária à dos homens; e é por este profundo sentimento que eles, muitos milhares de anos antes da domesticação{23} da alimária, tinham aprendido a dispor moderadamente de qualquer vida, salvo da dos carnívoros e parasitas, e a mostrar-se generosos com os uros valentes, para que as hordas de veados, os rebanhos de bovídeos e as caravanas de cavalos estivessem fortalecidas contra as grandes feras.{24}{25}
[5] Refere-se o autor à árvore, que os nómadas escolhiam, para nela dependurar os esqueletos dos seus mortos. (N. do trad.).
[6] Segundo período da idade de pedra, chamado também idade da pedra-polida.
[7] Os sílex de Thenay são os primeiros e os mais grosseiros vestígios da indústria humana, atribuídos a uma espécie de homem-macaco ou antropopiteco, precursor do nosso antepassado da época cheleana.