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IV A ilhota

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Vamiré, filho de Zom, não obstante a sua juventude, era o assombro da horda dos Pzanns. Caçador experto e valente, belo de estatura e forte como o auroco, possuía também os dons misteriosos da arte. As formas do animal e da planta cativavam a sua imaginação.

Era daqueles que divagam sozinhos sobre as colinas e que cruzam a floresta, ou vogam pelo rio, ou se embebem nas trevas, pelo jubilo de surpreender as coisas secretas.

De homens tais não motejavam os dolicocéfalos da Europa, antes estimavam profundamente Vamiré, porque sabia manejar o buril que grava no osso e no corno, e o cinzel, e o formão que desbasta a madeira e o marfim.

Apaixonado pela sua arte, tornara-se o mais famoso dos artistas entre as tribos que, na primavera, chegavam ao Oriente meridional.

Durante dias e semanas inteiras, saía do meio dos{30} seus companheiros, explorando solidões, trabalhando em algum retiro longínquo; e os artefactos que ele trazia das suas excursões eram o espanto da sua horda. Nem Zom seu pai, nem Namir sua mãe, se inquietavam muito com essas ausências, porque muito fiavam da fortuna do filho.

Ora, um dia de manhã, embarcou ele, e foi, rio abaixo, na sua pequena embarcação, que estremecia à menor ondulação das águas, cortadas pelo remo.

À proporção que ele perdia de vista a caverna dos trogloditas, o rio era mais largo e menos profundo, e grandes pedaços de rocha dificultavam a navegação, vestidos de musgos e líquenes. Havia ali o hino das águas extensas, o baixo grave da corrente, os rumores da pedra batida da água, um encanto de ressonâncias, às vezes penedos dispostos com simetria arquitectural em galerias abertas aos quatro ventos, nas quais soluçavam vozes de abismo.

Até às margens virgens chegava a floresta, orlada de salgueiros frágeis, povoada de choupos grisalhos, freixos plangentes, bétulas nos cabeços; atrás, a população de árvores gigantes, o cosmos dos cipós e das plântulas em briga, o mistério da natureza criadora, forças livres, a renascença sobre o hino milenário, numa penumbra de templo e de emboscada, onde palpita eternamente a alegria, o terror e o amor.

Vamiré largou os remos, dominado pela solenidade do espectáculo, encantado pela vacilação das sombras das árvores sobre a água, pelo perfume agreste da paragem, enquanto por entre varas e ervas iam passando{31} focinhos de herbívoros, e bandos de esturjões subiam a corrente, roçando os penedos erráticos.

Entrementes, apareceu uma ilhota.

Vamiré pôs-se a remar, e foi amarrar a canoa numa angra, entre salgueiros, no limite meridional da pequenina ilha. Batráquios, galinholas, e um adem espantaram-se. Vamiré desviou a folhagem e achou-se numa clareira, onde a terra parecia calcada e as ervas silvestres mondadas intencionalmente.

Sorrindo ligeiramente, Vamiré meteu a mão na cavidade de um ameeiro, e tirou de lá raspadeiras, lâminas, pontas de sílex, pedaços de osso, de corda, de madeira de carvalho.

Ficou por um instante em contemplação diante de uma estatueta, indecisa ainda, cuja cabeladura, testa e olhos estavam quase concluídos; e deixou-se tomar de uma beatitude religiosa, estética:

—Estará concluída, antes da lua cheia.—

Depois, arrojou o manto, foi à canoa buscar os dentes e os ossos que tinha levado, e, por muitos minutos, hesitou sobre se continuaria a estatueta, ou se trabalharia em gravuras.

Tentavam-no principalmente os caninos do espeleu. Pegou neles uma e muitas vezes. Piscando os olhos e apertando os lábios entre os incisivos, esboçou com a ponta do buril de sílex contornos imaginários. Depois, espalhando a vista em redor, e passeando pela ilhota, pareceu buscar algum modelo,—árvore, ave, peixe.

Apanhou numa enseada um grande ranúnculo aquático de corola pálida, e examinou-o atentamente.{32}

Uma doçura inteligente, a subtileza de estar em contacto cerebral com a natureza, uma concentração de artista, avincavam-lhe a fronte e as pálpebras. Grandes pétalas de verniz suave, anteras tenuíssimas, pedúnculo matizado de rosa, tudo isto ele apreciou, como amante da forma, com a sua retina voluptuosa, mas principalmente as linhas terminais, os contornos que o seu buril poderia reproduzir, as fronteiras da flor.

Fixando-a no solo e escorando-a com ramúsculos, tentou restituir-lhe a posição natural e aguçou o seu utensílio.

Finalmente, tomando um dos caninos do espeleu, e profundamente absorto, gravemente apaixonado, começou a traçar um ligeiro perfil, um esboço do ranúnculo.

Firme, e de bom tacto, a sua mão musculosa de atleta prestava-se ao trabalho artístico; entreviam-se já uns traços graciosos, o desabrochamento das pétalas, os pontos das anteras sobre as débeis hastezinhas.

Comovido, Vamiré quedou-se, de olhos meio cerrados e lábios mais nervosamente apertados entre os incisivos: os minutos foram bem empregados; a flor aparecia belamente sobre o fino marfim.

O homem riu-se em voz baixa e cruzou os braços sobre o peito. Em seguida porém, descontente de alguns traços, apagou-os com a raspadeira, recomeçou-os, até que surgiu a contrariedade, a luta, o momento em que o trabalho se torna pesado, eivado de cólera. Com gestos de criança-colosso, exprobrações à matéria, descaídas de braços ao longo do tronco, duas ou três vezes largou o buril.{33}

Mas a obstinação da sua raça fazia-o retomar o trabalho, até que terminou o esboço, corrigindo as linhas imperfeitas.

Cansado, então, ergueu-se, e não quis olhar mais para a sua obra. Abatido diante da natureza, sentiu que a melancolia lhe invadia o cérebro.

Demorou-se largamente à beira do rio. Era a grande estação fecundadora: as águas enchiam-se de uma nuvem de animais inferiores, muitos dos quais vinham do mar, subindo as correntes. As enchentes do equinócio haviam cessado mais de um mês antes, e raramente se avistavam ramos e troncos de árvores desarraigadas.

Chegou o meio dia, o grande sol, as sombras diminuídas, o ar trémulo de calor, colunas de ar ascencionais; mas, na lentura da ilhota, debaixo dos salgueiros e ameeiros frescos, era deliciosa aquela hora.

Além, na margem distante, mostrou-se um grande animal cornígero, em que Vamiré reconheceu o auroco. Vamiré adiantou-se, sem pressa, até à beira do rio ao longo de uma espécie de molhe.

O coração do caçador palpitou, à vista do enorme mamífero. Admirou-lhe a cabeça larga, inclinada sobre o rio, as pernas altas, o peito musculoso:

—Eô! Aqui está Vamiré!... Vamiré!—gritou ele ao animal, com voz retumbante.

O auroco levantou a cabeça, assombrado, e o nómada repetiu:

—Vamiré consente que vivas!—

O auroco, acabando de beber, afastou-se.

Vamiré tinha levado, para conservação sua, uma{34} posta de uro, previamente assada. Deglutiu-a, estendeu-se no chão e adormeceu.

Passado tempo, um rumor acordou-o em sobressalto. Vamiré viu fugir meia dúzia de ratos aquáticos.

Levantou-se de um salto, estremunhado, e pensou logo na gravura incompleta do canino. Quando a retomou, foi agradável a sua surpresa: em vez do esboço duvidoso que ele imaginava, era um bosquejo firme, exacto, de linhas elegantes.

Pegou no buril, aprofundou cuidadosamente os contornos; depois, fazendo um buraco para suspensão, na raiz do dente, sorriu de alegria diante do seu novo e belo artefacto. Apenas, por aquele dia, o seu poder criador achava-se esgotado: tentou em vão retomar a estatueta: um enfado invencível, uma desabilidade contínua, acompanhavam cada um dos seus esforços.

Descoroçoado, repôs os seus materiais e os seus utensílios na cavidade do ameeiro e ergueu a vista ao firmamento, para calcular a hora. A noite vinha ainda longe, o sol ia a meio caminho do Poente, se bem que a fresquidão se sentia já no prolongamento das sombras.

Os nemóceros zumbiam em colunas, e por cima da floresta iam-se formando nuvens translucidas.

Então um aborrecimento pesou no coração do dolicocéfalo,—um aborrecimento de saúde opulenta, de força acumulada. Esvoaçaram no seu crânio desejos indefinidos, desejos de caça, de trabalhos perigosos, de procriação.

Tentavam-no as regiões de além, a jusante do rio. Desconhecidas pelos da sua raça, excitavam-lhe a curiosidade{35} rude, audaciosa e pueril. Porque não havia de ir vê-las? Na sua juventude intrépida, propensa a ásperos empreendimentos, acostumada aos errores solitários, no seu cérebro de artista, de imaginação ardente, aquele desejo engrandeceu-se, definiu-se.

Inspeccionou então cuidadosamente as suas zagaias, a sua clava, o seu arpéu duplamente denteado; assegurou-se de que nenhuma veia de água ameaçava a sua canoa, e, retomando o remo, embarcou de novo.

À proporção que ele se adiantava remando, a floresta tornava-se cada vez mais densa, as margens menos definidas, formadas de humo viscoso de aluviões movediças, de escombros silvestres. A água, mais escura, era também mais vagarosa; os penedos já não apareciam; velhas árvores de mil anos erguiam-se de espaço a espaço; grandes répteis dormiam nos promontórios; e a gritaria dos papagaios encobria os murmúrios augustos da vida.{36}{37}

Vamiré

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