Читать книгу Mulheres e creanças: notas sobre educação - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 16

IV

Оглавление

No meio do desalento profundo, da inconsolavel tristeza, que n'esta época parece obumbrar de espessas nuvens a alma do homem, e como que vencer-lhe as aspirações e as energias, erguemos a voz desauctorisada e humilde para apontar algumas das causas que produzem effeitos tão deploraveis.


Temos visto a desharmonia que existe no lar domestico, e encontramos como unico motor de tamanho desastre a desigualdade intellectual que a educação estabelece e nutre entre os dous sexos.


Mas não se trata sómente de observar as causas e os effeitos, trata-se de pensar n'um remedio que seja efficaz para este estado de cousas, que a prolongar-se indefinidamente produz a dissolução social nos seus aspectos mais dolorosos e mais repellentes.


Se a sociedade e a civilisação requintada e corrupta dos nossos tempos ainda não ensinaram á mulher o caminho verdadeiro e util que tem a seguir, antes d'elle a teem afastado mais e mais, ella póde ainda erguer-se do marasmo intellectual em que se compraz, e mostrar ao homem que é digna de coadjuval-o na sua obra de reedificação, digna de acompanhal-o na realisação pratica do que para elle, desajudado e só, não tem passado d'uma bella concepção theorica onde ás vezes transluzem não sei que visos de chimera.


Todos os seculos teem mais ou menos acceitado a herança dos seculos precedentes.


Ao nosso cabe porém a gloria de ter renegado muitos erros do passado, de ter proclamado a sua independencia, de ter produzido um reviramento absoluto n'esse conjuncto de idéas, de conhecimentos, de aspirações e de theorias que constituem o ideal humano.


O que hoje se exige da mulher é positivamente o contrario do que a sociedade antiga affeiçoada por moldes diversissimos exigia até agora.


Este ponto d'uma importancia capital precisa de ser esclarecido a fundo.


Á escravidão absoluta a que o nosso sexo se curvou sob o imperio de religiões extinctas, á bruteza dilacerante em que elle viveu submerso entre as sombras das idades barbaras, succedeu—e succedeu providencialmente—a apotheose da mulher divinisada pelo christianismo, aureolada por aquella poesia artificial, exageradamente requintada e platonica dos trovadores da Edade media, e aquella abnegação amorosa e idealista dos paladinos da cruz!


Essa transformação radical no destino da mulher fez sentir a sua influencia até hoje, em phases e gradações successivas e diversas.


Á castellã de repente acordada do seu lethargo mental, pela tiorba namorada do pagem, ou pela supplica ardente do cavalleiro, succedeu a rainha das côrtes de amor, a que erigia em dogma ideal o adulterio, a que proclamava em sentenças preciosas a quebra de todos os laços da familia, a que via no amor requintado, falsamente seraphico, um direito superior a todos os direitos e deveres domesticos. Veio depois a gentil pagã da Renascença, a inspiradora dos artistas, a amante dos papas, a musa dos loucos poetas, a princeza dos festins, erudita, apaixonada, intelligente, cheia de phantasias superiores, que se era virtuosa se chamava Victoria Colonna, e se era dissoluta se chamava Lucrecia Borgia.


A esta que correspondia ao seu meio social, que cumpria uma missão civilisadora, que tinha o seu destino marcado, e a sua orbita descripta succedeu a mulher de sala do seculo XVII e do seculo XVIII, de que hoje só temos a descendencia amesquinhada, decadente, anachronica, e, o que é peor de tudo, inutil quando não é funesta, ridicula quando não é tambem perniciosa, o que lhe succede quasi sempre.


O homem que muitos seculos considerou a mulher um animal inferior e mal domesticado, fez d'ella movido por influencias que não podemos historiar aqui, o seu luxo, a sua poezia, o enlêvo das suas horas de ocio, depois novamente a escrava dos seus vicios ou o instrumento dos seus prazeres, e por fim um mero ornamento social, um brinquedo sem importancia, uma creança indocil, ante a qual se curvava, não porque a respeitasse mas porque n'esta falsa e mentida submissão encontrava novos requintes de prazer.


Não comprehendeu porém que era victima da sua propria injustiça, que a corrupção da mulher se convertia para elle em gangrena, que o seu amesquinhamento se lhe communicava em villeza, que a sua ignorancia o fazia tambem retrogradar, que ha relações reciprocas que não podem quebrar-se, e influencias mutuas a que os dous sexos ao mesmo tempo divorciados e unidos, não podem por mais que queiram furtar-se.



Hoje uma corrente de ar puro, a corrente das idéas democraticas, purificou a atmosphera viciada onde uns poucos de seculos haviam deixado os vestigios das suas paixões insalubres.


Tudo se transfigurou sob esta influencia benefica. Fez-se uma grande claridade na alma dos povos e na dos individuos, o pensamento reconquistou a sua independencia perdida, e uma voz firme e poderosa bradou bem alto:


—Não se tracta de continuar no caminho que iamos trilhando, tracta-se de procurar uma nova direcção que nos conduza á verdade.


Ouvir esta voz é renunciar aos erros do passado, e cumpre que nós mulheres renunciemos a elles, para não caminharmos por uma estrada opposta áquella por onde vão subindo fortes, illuminados, convencidos, os nossos paes, os nossos esposos, os nossos irmãos.


Não é a uma penna tão obscura como é a minha que pertence dar leis absolutas sobre um systema de educação diverso do que hoje está geralmente adoptado.


Limitar-me-hei rapidamente e apenas animada com a força da consciencia, consultando o bom senso que é apanagio dos mais humildes, e a observação que póde ser partilha dos mais pobres, a indicar alguns dos obstaculos que nos separam moralmente d'aquelles de quem sômos companheiras e de quem devemos ser auxilio e complemento.


A vida da sociedade é uma vida toda de egoismo e de vaidade, a vida de familia uma vida de renunciamento e de abnegação.


Para viver na sociedade a mulher só precisa de ser exteriormente agradavel, para viver na familia a mulher precisa de ser forte.


O mundo exige as graças, as garridices, as subtilezas do espirito, as louçanias do tracto; a familia sem prescrever inteiramente aquellas, exige acima de tudo a consciencia firme, a idéa clara e definida dos deveres, o espirito do sacrificio, e aquella energia branda que resiste ás tentações dissolventes do peccado.


Entendemos pois que os esforços de todos os educadores, de todos os que se preoccupam com o futuro da sociedade devem convergir para annullar a mulher dos salões, e para crear e fortalecer a mulher da familia.


Não nos revoltamos contra as graciosas futilidades que hoje constituem a educação feminina, não as condemnamos a um completo ostracismo, desejamos simplesmente vel-as collocadas no lugar que por sua natureza lhes compete. São simples ornatos decorativos, como taes os applaudimos e os queremos, não como fundo solido e base de todo o cultivo intellectual da mulher.


Tambem não pedimos para o nosso sexo a emancipação, essa utopia de que hoje se falla tanto e com tantas banalidades impensadas.


O que nós desejariamos era vêr na mulher uma personalidade robusta e consciente, inaccessivel ás chimeras da sentimentalidade, solidamente e despretenciosamente instruida, tendo todas as noções praticas necessarias para subordinarem o seu destino ás leis do bom senso, ao alcance de todos os descobrimentos e de todas as conquistas do seu tempo, comprehendendo o bello debaixo de todos os seus aspectos; prompta para perdoar o mal mas não para transigir com elle; sabendo resistir-lhe mas sabendo explicar as circumstancias que o attenuam ás vezes.


Tendo acima de todas as religiões a religião do Bem, sacrificando-se aos seus affectos, mas sacrificando-se principalmente aos seus deveres.


Laboriosa como condição indispensavel da propria dignidade.


O trabalho é a redempção.


Não ha mulher que não tenha conhecido mais ou menos fugitivas, mais ou menos traiçoeiras, mais ou menos perigosas, essas horas más chamadas tentações. O trabalho é a salvaguarda para essas horas.


Os espiritos ociosos são os espiritos accessiveis.



No dia em que este novo ideal tiver tomado uma fórma tangivel até para os mais humildes e para os mais ignorantes a familia estará salva, porque terá por esteio a moralidade.


Até então ha de haver as incertezas, as duvidas, as vacillações, os desalentos que tornam esta hora da vida das nações, uma hora contradictoria, estranha, profundamente dolorosa, que já não tem raizes no passado sem ter ainda um ficto no futuro.


Trabalhem todas as mães n'esta obra sublime, e como a mythica Minerva sahiu armada do cerebro olympico de seu pae, assim a mulher sahirá do ninho em que se educou, já prompta para receber a pé firme o embate tempestuoso das paixões, que se a vencem a inutilisam e a degradam.



Mulheres e creanças: notas sobre educação

Подняться наверх