Читать книгу Mulheres e creanças: notas sobre educação - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 19

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Para se saber quanto o luxo corrompe e adoece um paiz bastar-nos-hia apontar para a França de Luiz XV e para a França do segundo imperio.


A historia e as chronicas d'esses dias de ominosa memoria revelar-nos-hiam de um modo bem claro e bem frisante quanto é escorregadio o declive que do luxo exagerado conduz á immoralidade, ao impudor da mulher e ás deshonestas transigencias do homem.


Não queremos, porém, n'este estudo despretencioso evocar a historia, nem revolver o lodo das passadas corrupções.


Queremos simplesmente fallar ao bom senso das leitoras, e queremos fallar chãmente, simplesmente, sem declamações, nem idéas preconcebidas.


Todos sabem que o nivelamento das classes, a livre divisão dos bens, a democratisação das fortunas, se teem conseguido debellar muitas e crueis injustiças sociaes do passado, teem sido tambem a destruição das colossaes fortunas de outro tempo.


Hoje, quando essas fortunas por acaso existem, são creadas pelo trabalho em grande escala, pelas importantes emprezas commerciaes, pela actividade devoradora de homens privilegiados.


Já se não fundam como antigamente em direitos estaveis e indestructiveis. São ephemeras, contingentes, dependem de muitas causas com que se não póde absolutamente contar.


Uma crise financeira, uma guerra européa, uma quebra importante, um abalo qualquer de credito, e eis por terra um edificio assombroso e complicado que parecia dever resistir ao embate de todas as tempestades, e que um sôpro logra alluir!


Ora, se isto tem relação com as grandes fortunas, se nem ellas podem contar com o dia de ámanhã, que farão os que não possuem mais que o necessario, os que ás vezes nem isso possuem?


Antigamente, no modo por que estava constituida a hierarchia social, uns tinham todos os bens, e outros soffriam todos os males; hoje como todos teem eguaes direitos, todos querem ter eguaes regalias.


Seria isso muito bom, se a egualdade que existe entre as prerogativas podesse existir tambem entre as riquezas, se em vez de haver pobres e ricos, houvesse sómente ricos, cousa a que nem os mais exaltados socialistas se lembraram ainda de aspirar.


Ora, se está sobejamente provado que, principalmente no nosso pequeno paiz, ha uma minoria pequenissima que é rica, ha uma maioria enorme que é miseravel, e ha, entre os dous extremos, uma classe, a mais importante—no fim de contas, visto que tem a superioridade da educação e da intelligencia, que é simplesmente remediada, porque é que não havemos de sujeitar o nosso regimen social ás exigencias e necessidades d'essa classe, que é a predominante, senão pelo numero, ao menos pela influencia que exerce?


Essa classe póde conhecer as distracções de uma agradavel intimidade, mas não as pompas decorativas, as ceremoniosas galas de uma vida de salão apparatosa e futil.


Se os filhos d'essa classe olhassem para baixo e vissem as privações, as luctas, as miserias dos que só conseguem com o suor do rosto ganhar um pedaço de pão duro e cobrir pobremente o corpo emmagrecido, de certo que se sentiriam felizes, triumphantes, dignos de inveja, na sua mediocridade aurea, na modesta fartura da sua vida domestica, nas distracções intimas de um circulo affectuoso e limitado.


Mas não! Olham para cima, vêem os ricos, os potentados, os dominadores do seculo, ouvem nas tentações febris das suas noites o tilintar magnetico do ouro, vêem passar no fundo dos seus ligeiros coupés, pallidas e desdenhosas mulheres, que medram como flôres exoticas de fulva folhagem metallica na estufa das suas salas opulentas, sentem em si o desejo insaciado de todos os prazeres que não teem, e sem prudencia, sem pudor, sem dignidade, atiram-se ás especulações vergonhosas, transigem com a sua propria probidade, vendem, desde os bens que herdaram de seus paes, até á consciencia que lhes veio de Deus, e quando conhecem que n'esta lucta ingloria, n'esta lucta impossivel só podem ser vencidos, já não é tempo para retrocederem no funesto caminho encetado!


E que não ha parar n'esta ingreme descida.


Teem-me dito por varias vezes que eu sou feroz para com o sexo a que pertenço; que accuso com muita injustiça as mulheres de todos os males que teem succedido, que succedem ou que estão para succeder no nosso mesquinho planeta.


Ora eu, pelo contrario, estou convencida de que o meu orgulho, de que a minha vaidade feminil me levam a dar ás mulheres uma importancia que mais ninguem lhes quer reconhecer.


Eu digo que d'ellas provéem todos os males, porque estou convencida—talvez sem razão—que d'ellas podiam provir todos os bens.


Ainda no ponto de que se tracta é d'ellas toda a culpa, no meu humilde entender.


Sim, porque no fim de contas, não são os pobres maridos que mais desejam figurar nos bailes e nos saraus, e que de boa vontade sacrificam a commoda poltrona em que podiam dormir a sesta, o bom e saboroso jantarinho que podiam comer, o livro util e proveitoso que comprariam, para gastarem esse dinheiro n'uma toilette falsamente luxuosa, n'uma soirée ridiculamente burgueza, n'um jantar de ceremonia cujos acepipes, na opinião do conviva mais guloso, seriam só dignos de figurarem n'um banquete de theatro com pratos de... papelão.


São as mulheres que teem sempre a louca ambição de figurarem ao par de outras mais ricas, embora n'essa lucta desigual só consigam tornar bem visivel e bem grotesca a sua derrota!


São as mulheres que consideram os prazeres mundanos como o indispensavel elemento para a sua completa felicidade.


São ellas que arrancam ás primeiras necessidades do ménage, á carne que os filhos devem comer, ás roupas brancas da familia, aos abafos do inverno, á lenha do fogão das noutes frias, á mobilia commoda e confortavel das casas, ao peculio das doenças, ao asseio e ao conforto domestico, o dinheiro com que adquirem esse luxo ridiculo, esse luxo de pacotille que não illude, nem excita a commiseração de ninguem.


E quando ellas percebem no olhar e na bôcca dos que assistem a essa lucta absurda, um sorriso malicioso, uma faisca de ironico desdem, são ellas que irritadas, desvairadas, fóra de si, arrastam o marido á extravagancia, á dissipação, á prodigalidade, ao crime, e arrastam os filhos á miseria e á desolação!


Nada mais funebre, mais triste, mais sombrio do que o interior de uma d'essas casas, em que o necessario é sacrificado ao superfluo, em que o real é sacrificado ás apparencias, em que o conforto intimo é sacrificado ao apparato exterior.


As criadas sujas, despenteadas, petulantes; as creanças pallidas, anemicas, sem educação e sem solas; com os dentes podres e nodoas no vestido; os moveis indiscretos na mal disfarçada miseria, uma unica casa elegante—a sala—falsa taboleta de uma vida de imposturas; a roupa branca do marido encardida e grosseira, a toilette da mulher vistosa e mirabolante. As côres tapageuses, substituindo a qualidade fina e solida; a multiplicidade dos arrebiques, substituindo a simplicidade opulenta do trajo.


Quem depois de conhecer dous annos estas galés conjugaes, se resigna a viver n'ellas?


Os pequenos preferem o collegio sordido e brutal; o homem foge para o botequim ou para outros sitios peiores; a mulher vive na rua, na modista, no theatro, nas salas do seu conhecimento, no passeio, na ociosidade e depois Deus sabe em que!


Eis a vida creada pelo immoderado amor do luxo.



Afastemos porém os olhos d'estes quadros sombrios e que no entanto, leitora querida, tu bem sabes que não são carregados.


Imagine-se que transformada a sua educação, a mulher se formava unicamente para o interior da sua casa.


D'essa casa não fugiriam de certo os amigos fieis e dedicados, não se excluiam as pequenas reuniões intimas, a musica, as conversações artisticas, as leituras agradaveis, os alegres e joviaes serões.


O que se excluia sem appellação eram os inuteis apparatos.


Como a mulher tinha em mira ser só agradavel aos seus, deixava logo de armazenar todas as suas armas—o espirito, a graça, o sorriso, a amabilidade—para distrahir os estranhos, para agradar aos indifferentes.


Como desejava fugir ao tedio, á melancolia, ás enervantes tristezas da solidão, aprendia a dispensar as companhias banaes, fazendo seus companheiros, os melhores, os que nunca atraiçoam, os livros, a musica boa, as flôres, o trabalho.


Logo que, em vez de se enfastiar em casa, ella se, divertisse e se achasse bem junto dos seus, elles começariam mesmo involuntariamente a sentir-se aquecidos por essa boa e salutar influencia.


Ninguem póde estar aborrecido ao pé de uma pessoa que se diverte francamente.


O marido por mais que os negocios de fóra o preoccupem e enfadem, por mais que as luctas da arte, do commercio, da politica, da industria, o cansem e mortifiquem, ha de sentir forçosamente um raio de bom e salutar contentamento ao pé da esposa que volitar em torno d'elle viva e chalreadora como um pardal, fresca como uma flôr, animada, activa, cheia de invenções felizes, e de sincera e desaffectada alegria!


E depois, eliminado o luxo exagerado da existencia de qualquer familia, eliminam-se ao mesmo tempo os cuidados mais lancinantes, as preoccupações mais absorventes, as luctas mais dolorosas, os despeitos mais corruptores.


Temos visto varias vezes o seguinte: O homem trabalha para dar o bem-estar á mulher, e rouba para lhe dar o luxo!


É que—note-se isso bem—o luxo quando não é a atmosphera natural em que se nasceu e se tem sempre vivido, uma cousa que á força de estar identificada comnosco, nós já nem se quer percebemos—o luxo quando é o fim a que aspira a nossa desenfreada ambição, torna-se um elemento profundamente desmoralisador.


Enerva o corpo, excita fatalmente a imaginação, aggrava a insaciabilidade natural aos desejos da mulher, dá-lhe a idéa de requintes romanescos, de aventuras, de amores vedados, attrahe um cortejo de voluptuosas tentações.


A vida das salas é a consequencia inevitavel do amor do luxo que devora a mulher de hoje.


Não a mulher de uma certa e determinada classe, a mulher de todas as classes sociaes.


A esposa do alto financeiro, do colosso da industria, deseja vestir-se de um modo que logo de uma vez córte pela raiz na alma ainda mais ambiciosa o desejo de a vencer.


Ora, como este desejo se nutre de difficuldades, todas as que estão no mesmo caso d'ella travam a lucta e empregam os mais loucos esforços para lograrem a palma.


As raras flôres da nossa velha aristocracia, não querendo ser desthronadas pelos potentados modernos, entram, já se vê, no combate com grave transtorno das bolsas de seus respectivos maridos.


A nenhuma d'ellas cabe completa victoria; se as rendas de Bruxellas que guarnecem o vestido d'esta são mais preciosas, os diamantes que enfeitam o collo e os braços d'aquella são mais raros; se a traine de velludo d'est'outra é mais distincta, a tunica de setim e ouro da outra é mais singular.


E o combate recomeça mais feroz, mais acceso, mais desapiedado.


Cá em baixo a lucta toma as mesmas fórmas. É a lucta da falsa riqueza, a lucta das pedras que fingem brilhantes, das imitações que fingem rendas, dos vestidos concertados que fingem vestidos novos.


São mais profundos ainda os despeitos, é mais desesperada ainda a energia que se gasta!


Quem vive esta vida ardente, inflammada de ambições insalubres, exaltada de mesquinhas invejas, corroida de miseraveis tricas, não póde, não sabe, não tem forças para ser boa esposa, boa mãe, boa dona de casa!


Pintámos em traços rapidos a vida das nossas mundanas; procuraremos desenhar, se tanto nos fôr possivel, a vida que ambicionamos e desejamos para a mulher de familia.


No dia em que ella a quizer adoptar, reconquistar-se-ha a serena dignidade, a tranquilla doçura do lar domestico, que pouco a pouco se vae tornando desflorido, melancolico e deserto.

Mulheres e creanças: notas sobre educação

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