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II
PINTORES PORTUENSES
ОглавлениеJULIO COSTA
Convidado a delinear um artigo sobre o pintor portuense Julio Costa, pensei primeiro esquivar-me a tal empreza porque me julgo insignificantemente pequeno para fallar d'este artista.
Julio Costa
Mas, antepondo a esse primeiro impulso a amizade que lhe dedico, resolvi acceitar o encargo, e, tal como posso, desempenhar esta missão.
Será um artigo despretencioso, sem preoccupação do estylo ou requinte de forma, um artigo modesto como eu e como o temperamento do pintor illustre de quem me vou occupar.
Não conheço escolas, não discuto artistas, não cito nomes estrangeiros, nem rebusco particularidades de metier.
Quando me occupo da pintura e de pintores nacionaes digo simplesmente, indiscretamente, a impressão que os quadros me deixam. Nada mais. E hoje, ao traçar estas linhas a respeito de Julio Costa, não venho, acreditem, fazer a apreciação, pretenciosa ou sabia, da obra d'esse pintor; venho simplesmente deixar-lhe, sob o seu nome já aureolado pela critica consciente, o laurel amigo da minha admiração.
E posto este preambulo, ahi vae o que me parece dever dizer do Julio Costa.
Portuguez de nascimento e condição, alma que se espande na mais suave de todas as alegrias—a familia—Julio Costa vem, de ha tempos para cá, vivendo quasi exclusivamente para os seus parentes, para os seus discipulos e para os seus trabalhos.
Conselheiro João Franco julio costa
É um d'estes homens com quem, mesmo sem fallar, se sympathisa logo á primeira vista.
É lhano de trato, affavel, de maneiras delicadas, cavaqueador emerito, tendo sempre um dito alegre para retorquir a um remoque que se lhe atire. Nunca deixa de chalacear, a não ser quando tem algum dos seus doente. Então, sim, então abate-se todo na dôr d'aquelle que soffre e deixa-se levar n'essa corrente de magua que o subjuga brutalmente.
É uma luminosa alma dada ao bem e a tudo quanto é bom, e d'ahi a uncção deliciosa e meiga com que elle concebe os seus quadros de genero.
Hoje, posto em foco, pelo brilhantismo dos seus ultimos trabalhos, deve orgulhar-se de ser um dos pintores preferidos nas commemorações aos homens notaveis do nosso paiz.
O retrato é inegavelmente o genero que Julio Costa mais accentuadamente trata e que mais em evidencia o tem collocado.
O retrato de El-Rei pintado para o salão do Tribunal da Relação, os retratos de Oliveira Martins, Dr. Ricardo Jorge, João Ramos, Dr. Eduardo Pimenta, Conselheiro Campos Henriques, Conselheiro João Franco, e muitos outros, são affirmações publicas do que digo.
O primeiro, é largo de ideia, magestatico de pose, tocado de iriadas côres, pois assim o pedia o grande do personagem. Collocado no amplo salão do Tribunal toma um aspecto soberbo, que nos infunde respeito.
Oliveira Martins—julio costa
O segundo, em que a figura de Oliveira Martins, essa imagem de santo e de philosopho, se nos apresenta sentada em larga cadeira de espaldar, em posição natural de quem entretem uma conversa, ao contemplal-o, como que se escuta a sua voz de mestre, que discreteia sabiamente sobre os intrincados problemas economicos do nosso paiz, ou sobre os notaveis factos da nossa historia.
E todos os outros, todos, são verdadeiras obras primas.
Não esquecerei fallar do seu ultimo trabalho, do retrato do Conselheiro João Franco, o homem forte e duro que emprehendeu, n'um arranco de verdadeiro portuguez, remodelar, n'um molde novo e n'uma nova orientação, a marcha dos negocios publicos.
D'esse retrato já eu disse, quando tive occasião de o ver pela primeira vez, o seguinte:
«É grande, na magestade da sua tela ricamente emmoldurada, o retrato do snr. Conselheiro João Franco.
«Absorve por completo a nossa attenção. Está executado n'um correctissimo desenho, tocado d'uma distincta tonalidade de côres, n'um flagrante de pose e de semelhança. Ao retrato do Conselheiro João Franco só lhe falta fallar para ser o proprio.
«Quanto mais o contemplamos, mais correcto e mais perfeito achamos este trabalho. A figura parece que se destaca da tela, tal é a perspectiva que Julio Costa lhe deu; ás vezes como que a vemos mexer-se. Depois, ha um não sei que de vida, que nos faz imaginar que os olhos se movem, que os labios se vão descerrar para fallar.
«E as roupas, que delicada feitura, que nuances de verdade! Na facha que ella ostenta, vermelha, ha reflexos de moiré.
«O retrato em questão não é simplesmente um retrato; é mais do que isso:—é um quadro».
Todos estes seus trabalhos nos encantam e deslumbram, porque Julio Costa sabe apanhar tudo quanto vê em volta de si. Sabe ver, que é o essencial. D'ahi o colher a expressão da Impressão. Mas a Impressão escolhida, não da natureza selvagem, mas sim da natureza civilizada e culta.
Julio Costa é um civilizado! É um delicado! É um raffiné (desculpem o francez).
E é esse effeito de raffinerie e essa predilecção pela impressão escolhida que elle transporta aos seus retratos.
Elle conhece bem o indefinivel e delicado interesse que se desprende das linhas d'um rosto.
Elle sabe que nada é tão impressionante, para nós que contemplamos os quadros, como essas figuras immoveis e mortas... mas que estão vivas!...
E os seus retratados vivem nos seus retratos.
Em uma palavra, Julio Costa não pinta um retrato do seu modelo... pinta o retrato.
Cada uma das nossas sensações, das nossas emoções, dos nossos sentimentos, cada um dos nossos desejos, das nossas esperanças, dos nossos pensamentos secretos altera constantemente a nossa physionomia.
A cada minuto, a cada segundo, qualquer de nós se transforma, e deixamos de ser então semelhantes a nós mesmos. Mas, Julio Costa sabe discernir n'essas fugitivas transformações aquelle momento, que é sempre da nossa figura, sabe fixar na mobilidade imperceptivel das linhas d'uma physionomia o seu aspecto caracteristico. Sabe reunir n'um gesto a multiplicidade das nossas attitudes.
E é por isso que Julio Costa, ao pintar o retrato, tem uma grande preponderancia sobre outros artistas.
Demais a mais elle possue o que falta a muitos outros, uma bella correcção no desenho.
Que o desenho não é só como muita gente pensa o esqueleto da pintura.
Não, o desenho é uma parte integral d'ella, o desenho é a propria pintura.
Já um celebre pintor francez, cujo nome não recordo agora, dizia dos seus desenhos—A côr dos meus desenhos... como se o desenho não fora unicamente uma apresentação do claro escuro.
Mas é que a pintura sem um bom desenho, onde se definam os tons e meios tons, onde se delineem as distancias e as perspectivas, seria uma coisa chata, sem vida, sem relevo.
O Soler architecto, esse bello rapaz cheio de talento que a Morte avidamente nos levou ha um bom par d'annos, dizia-me uma tarde em que me fazia uma prelecção sobre as vantagens do desenho:—«Olhe, se você quizer um bom quadro desenhe-o primeiro em todas as suas minudencias, com todos os seus effeitos de perspectiva, com todos os seus claro-escuros e, depois, a esmo, cubra isso com as tintas d'uma paleta e terá um bom quadro. Olhe que n'isto de pintura o desenho é tudo».
E de facto assim é: para se poder pintar bem o que é preciso primeiro é saber desenhar. E Julio Costa sabe desenhar. D'ahi o elle dar aos seus trabalhos uma corecção distincta.
Mas, Julio Costa não é só notavel no retrato. Julio Costa é-o tambem em outros generos de pintura. No assumpto religioso deu este artista provas indiscutiveis das suas aptidões.
O Calvario, que elle pintou para a egreja do Bomfim, é o melhor attestado do seu savoir faire. D'essa obra prima, que veiu abrir uma polemica entre um critico da Palavra e o conego Alves Mendes, dizia este ultimo no seu opusculo—A
O Calvario—julio costa
crucificação de Jesus:—Outros quadros de egual natureza adoecem de monotonia e languidez. Este não. É tal a firmeza do desenho, tal a riqueza das tintas, tal e tanta a genial inspiração artistica, que a gente admira irresistivelmente e applaude enthusiasticamente esta magistral pintura de Julio Costa.
Que melhor e mais auctorisada opinião que a d'este pintor da oração, este artista genial da palavra, que desenha com o seu verbo inexgotavel os mais fulgurantes e mais flagrantes quadros? Como consagração a um artista não as tenho visto melhores nem mais perfeitas.
Quando Julio Costa se entretem a fazer o quadro de genero, tambem, n'esses momentos, não deixa o seu nome em má posição. Ahi, como nos outros trabalhos, elle sabe dar aos seus typos e aos seus assumptos o quer que seja de suggestivo, de impressionante.
Não é cousa simples enumerar a sua obra, porque ella não é uma insignificancia.
No entretanto, como é do meu desejo levar o mais longe possivel a resenha dos seus trabalhos, ahi vae o titulo d'alguns d'elles, que mais se notabilisaram nas exposições onde teem apparecido.
Em primeiro logar colloco eu o No Vago, uma pastoral
A Ti Anna—julio costa
de côr, como lhe chamou Oliveira Alvarenga. Era uma larga tela que resumia um delicado poema d'amor. Em plena primavera, sob a luz do lindo sol, uma moçoila trigueira e forte, de seios proeminentes, encostada a um pedaço de terreno alto e florido, sonha n'um vago presentimento triste. Ia para os trabalhos do campo, levava a sua foice, o seu cesto vindimeiro, o seu chapeu de palha; marcára ao namorado uma entrevista, na esperança d'um doce idyllio, mas o tempo passa, o namorado não vem, e ella, na sobrexcitação do seu amor e do seu ciume, vae desfolhando malmequeres que ora lhe dizem sim, ora lhe dizem não, e, por ultimo, como que adormece n'uma febre d'amor, olhos semi-cerrados, com o pensamento esvoaçando no vago... Eis o quadro, que figura lá fora, em Berlim, para onde foi vendido.
Não esquecerei a Romeira, uma fresca rapariga que, em descantes alegres, parte para a romaria.
E uma Cabeça de estudo, que appareceu na exposição de Arte de 1894, uma linda cabeça de rapariga de olhos vivos, labios de coral e com o seu lenço de xadrez multicor, que é um encanto!
O retrato do Quinsinho Souto Mayor, é um estudo de creança finamente trabalhado com o seu vestidinho de velludo, onde assenta uma romeira de renda, tão bellamente pintada, que dava a perfeita illusão de que eram rendas que alli estavam collocadas sobre a tela.
O Vencido, que é um bom trabalho tambem, consiste em um rapazito que, após uma refrega com outros, sae com um braço deslocado; que suavidade de côr, que tristeza nos olhos humidos!
O retrato da Ti Anna, essa velhita encarquilhada que, no fundo do seu casebre, junto da lareira, vai fiando a loira estriga a pensar no tempo lindo que passou, quando era rapariga e cantava ao desafio nas esfolhadas e nas espadeladas, é soberbo. Hoje, a pobre velha canta as tristes canções com que embala os netos, e fia o linho com que veste os filhos, que outras, que são novas, vão espadelando a rir e a cantar. E tudo isto se traduz n'aquelle quadro, e todo este romance se vê alli representado n'uma sentida impressão e n'uma ideal concepção.
O Costume dos arredores do Porto, é tambem um lindo quadro—uma cabecita de rapariga do campo cheia de vida e de frescura.
E a Mimalha e a Varanda dos Mangericos e mil outros trabalhos d'elle?...
Ah! mas vae muito longo este artigo e o leitor não tem obrigação nenhuma de estar infinitamente a ler-me; por isso, ponto.
Julio Costa é para mim um pintor que sabe muito da sua arte, digam lá o que disserem, e se, dentro da sua modestia, não gostar do que eu agora digo d'elle que me perdoe porque eu só sei dizer o que penso, e isso muito rudemente ainda.