Читать книгу Cartas sobre a educação da mocidade - Antonio Nunes Ribeiro Sanches - Страница 18
§. Continûa a mesma materia
ОглавлениеO Fundamento da Religiaõ Christaã, he aquella charidade, aquelle amor do proximo que obriga por preceito divino, nam só a perdoar as offensas, mas ainda soccorrer e fazer bem a quem offendeo. He certissimo que a Igreja fundada por Christo, e os seos Apostolos tem jurisdiçaõ sobre as consciencias, sobre todas as acçoens mentais, do mesmo modo que a jurisdiçaõ civil tem todo o poder sobre todas as acçoens exteriores humanas. Esta sagrada jurisdiçaõ deu Christo aos seos Apostolos, dizendo-lhes[22]: Andai e ensinai todas as Naçoens, e tambem as bautizareis en nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo, ensinandoas a observar tudo o que vos ordenei. Vé-se claramente que toda a jurisdiçaõ que Christo deu á sua Igreja, se reduz a ensinar os preceitos do seu Evangelho, e a administrar os Sacramentos, incluindose todos na base delles, que he o bautismo. Mas esta jurisdiçaõ toda se redûz aos bens espirituais, á graça, á santificaçaõ das almas, e á vida eterna; porque Christo declarou elle mesmo que o seu Imperio nam era deste mundo, nem sobre as acçoens exteriores dos homens. Recuzou ser arbitro entre dois Irmaõs que queriaõ repartir a sua herança, dizendo: E quem me autorizou a mim para vos julgar[23]. Deu tambem auctoridade aos Apostolos de absolver os peccados, e de negar a absolviçam aos peccadores impenitentes[24]. Esta he a base e o fundamento essencial da Religiaõ Christaã. Se os Ecclesiasticos conservassem esta santa doutrina, se considerassem que o seu poder se reduzia todo dentro da Igreja sobre os Fieis que espontaneamente queriaõ participar aos Mysterios divinos, jamais pensariaõ castigalos com penas corporais, como se tivessem cometido crimes contra o Estado civil: disproporcionando o castigo, contra o que Christo e os seus Apostolos ensináraõ taõ clara e taõ evidentemente: confundiraõ os peccados do Christaõ com os crimes do Subdito: os peccados de Christaõ saõ culpas mentais contra a fé, contra a esperança e contra a charidade christaã, que Christo ordenou se castigassem sómente com penas espirituais, isto he a penitencia ecclesiastica ou a privaçaõ da Congregaçaõ Christaã e divinos Mysterios: estas acçoens peccaminosas saõ mentais, e o seu castigo ha de ser espiritual. Pelo contrario os crimes do Subdito do Estado civil saõ acções exteriores, como matar e roubar, saõ acçoens que perturbaõ o vinculo do Estado civil, e o castigo proporcionado ha de ser nos bens, na honra e na vida. Mas esta santa policia ecclesiastica logo se alterou tanto, que Constantino Magno e os seos successores deraõ jurisdiçaõ aos Bispos, e dotáraõ as Igrejas com bens moveis e de raiz: tanto que lhes concederaõ ensinar publicamente nas escolas do Estado, logo tomáraõ a si a reforma dos costumes da Republica, e todo o ensino da Mocidade. Mas quem dissera no principio do IV seculo que do Sacramento da penitencia havia de sahir aquelle poder dos Ecclesiasticos que fundáraõ pouco a pouco até o seculo XII hũa Monarchia dentro do Estado civil? Quem pensaria entaõ que do mesmo Santo Sacramento haviaõ de sahir os abuzos das Indulgencias, as Romarias, as Cruzadas, para conquistar a Terra Santa, as Ordens Militares, os desterros, excommunhoens, com aquellas terriveis clauzulas, confiscaçam de bens, incapacidade de servir cargo publico, nota de infamia, prizam, relaxar ao braço ecclesiastico? Mas qual seria a causa porque os Principes consentiraõ a tanta usurpaçaõ da sua auctoridade e jurisdiçaõ? Permitame V. Illustrissima, indagar com algum cuidado, as cauzas de taõ notaveis alteraçoens no Estado civil e na policia Ecclesiastica desde o seculo IV até o XII porque me parece necessario estejaõ informados d'ellas naõ só aquelles que haõ-de executar as Ordens de S. Majestade em consequencia do seu Alvará sobre os Estudos, mas taõbem os que haõ de estudar o que n'elle se ordena. Todos confessaõ pellos monumentos que temos na historia, que o Imperio Romano foi subjugado e despedaçadopelas Naçoens Barbaras do Norte, e que destes destroços se formáraõ as Republicas de Italia, e as Monarchias de França e Espanha. A politica destas Naçoens, antes da Conquista, e depois que fundáraõ os seos Estados, se reduzia a premiar o mais valente e o mais ouzado com os primeiros cargos do exercito, com propriedades de terras, e com as primeiras honras daquellas Monarchias; estas Naçoens por natureza caçadoras, viviaõ do roubo e de rapina; naõ conheciaõ a agricultura, o comercio, as artes, nem as sciencias como base do Estado civil: estas Monarchias se governavaõ como hum exercito sempre acampado, prompto para acometter, subjugar e conquistar, porque a sua conservaçaõ e o seu augmento dependia do que conquistavaõ sobre as Naçoens vencidas, que eraõ aquellas que dependiaõ do Imperio Romano: assim a valentia e o esforço, era a sua base fundamental. Todas as suas leis e costumes tendiaõ para conservar e augmentar aquella força e aquella ouzadia, para vencer e conquistar. Depois de feita a conquista, tinhaõ seos concelhos gerais que chamavaõ Parlamentos, que em Espanha se chamáraõ Cortes, nas quais tinhaõ assento os Generais e os Officiais da primeira distinçaõ. Ali se repartiaõ as terras, as Provincias, as Comarcas, as Cidades, e as Villas, com os seos termos, pelo Monarcha e pelos Generais. Pelas leis decretadas n'aquellas Cortes, ao Senhor da terra ou Cidade se dava poder soberano nos povos que a habitavaõ: tinhaõ a Jurisdiçam de vida e morte, na honra e nos bens; de tal modo que ficava despido o Monarcha de toda a Jurisdiçaõ que devia ter naquelles Subditos; que vemos ainda hoje em França de algum modo, e em Castella e Portugal ainda se conserva o nome Senhor de baraço e cutello. Davaõ estas Cortes aquellas terras em Feudo, que quer dizer que o Possuidor seria obrigado em tempo de guerra vir em pessoa á servir com os seos villoens no numero, á proporçaõ das terras de que era Senhor: sómente os descendentes Varoens depois de fazer nova omenagem ou obediencia, podiaõ possuir estas terras. Ellas eraõ consideradas pertencerem ao Estado; e pagavaõ somente no serviço da guerra; e nenhũa outra decima, peita, nem sisa pagavaõ ao Monarcha, nem ao Estado. A nossa Ley Mental teve aqui a sua origem: só permittia possuirem as terras da Coroa, aquelles que podiaõ servir na guerra; depois por graça e favor dos Reys, veyo o sexo a gozar destes dons da Coroa, como os Varoens. Os Bispos e os Prelados os possuem hoje sem irem á guerra, como hiaõ até o anno 1400; e ainda naõ pagaõ couza algũa estas terras ao Estado. Os costumes destes Imperios Godos todos se reduziaõ a fazer o corpo robusto pela caça, por escaramuças, alcancias, torneos e justas, festas onde a ambiçaõ de ser applaudido pelo sexo teve muita parte: naõ necessitava a constituiçaõ do Imperio simplesmente militar, naquelles tempos sem polvora, e sem fortificaçoens regulares, de outra sciencia, mais do que do valor e da força; e para adquirir estas qualidades se empregava toda a Mocidade: naõ sabiaõ ler nem escrever, e desprezavaõ todas as sciencias: as superstiçoens, os agouros, os vaõs prognosticos da Astrologia, como prosapia legitima da ignorancia, occupava geralmente os animos do povo e da Nobreza, apezar de tantos Concilios que prohibiraõ todos estes abusos. He hoje maxima incontestavel «que os bons ou maos costumes de hũa Naçaõ, a sua sciencia e valor dependem das leis da Monarchia, do trato e do emprego dos Grandes, e da Corte que os domina». Muitos destes Monarchas, logo no principio da conquista do Imperio Romano, abraçaraõ a Religiaõ Christaã; pelo discurso do tempo todas estas Naçoens Barbaras, que ou eraõ Gentias, ou infectadas com a heresia de Arius, vieraõ Christaãs Catholicas; como dominavaõ e governavaõ aos Christaõs antigos, entravaõ a possuir os cargos da Igreja, sem repugnancia dos Bispos; todos eraõ Christaõs, e hum Bispo Godo ou Clerigo, era de taõ bom sangue, como um Italiano ou Castelhano. Mas os Bispos, os Clerigos e os povos conquistados tomáraõ os costumes dos Monarchas e dos Grandes daquellas Monarchias. Os Bispos tiveraõ taõbem terras do Estado em lotaçaõ, e taõbem muitos Prelados de Conventos; tinhaõ a jurisdiçaõ ou mero Imperio, sobre os seos villoens, do mesmo modo que a tinhaõ os Nobres: tinhaõ taõbem assento em Cortes porque eraõ Senhores de terras e souberaõ nellas adquirir o primeiro assento; vieraõ Condes e Duques, como se vé hoje em Allemanha, e no Conde d'Arganil Bispo de Coimbra; vieraõ os Bispos e os Prelados Guerreyros, porque aceitavaõ os Senhorios com essa condiçaõ de servir pessoalmente na guerra com os seos villoens, o que compriraõ até anno 1400; as suas terras naõ pagavaõ couza algũa ao Estado, naõ porque pertenciaõ á Igreja; mas porque eraõ dadas com obrigaçaõ de servir na guerra o Possuidor, do mesmo modo que os Senhores Seculares as possuiaõ. Vieraõ os Bispos e os Prelados caçadores, dissipadores, banqueteando, sustentando Cavallos, conservando numerosa familia; e como lhes era preciso fazer frequentes jornadas, hũas vezes para assistir nas Cortes, outras nos Concilios, que até o anno 800 se celebravaõ cada anno, e as vezes duas, no mesmo espaço de tempo conforme o primeiro Concilio de Nicea no principio do IV seculo, á tal excesso dissipáraõ os bens da Igreja que tinhaõ em feudo, ou por esta obrigaçaõ de fazer jornadas, ou pela vida dissoluta militar, que foi prohibido por Concilios que os bens da Igreja fossem inalienaveis, e desta origem he que veyo aquelle destrutivo invento para o Estado de se estabelecerem os Morgados, cujas terras applicadas a hũa capella saõ inalienaveis, como as dos Cabidos e dos Conventos. A ignorancia destes Monarchas na politica, considerando todos as Naçoens vizinhas por inimigas, e naõ conhecendo nenhum Direito das Gentes; a ignorancia dos Generais, e dos seos Conselheyros naõ conhecendo principio algum do Estado civil, nem das obrigaçoens da Sociedade, naõ sabendo ler, nem escrever, se espalhou pelos Ecclesiasticos; ficáraõ estes por tanto com os conhecimentos necessarios para administrar os Sacramentos, ensinar os povos na doutrina christaã, e ensinar nas Escolas das Sés, e dos Conventos; isto he que sabiaõ ler, escrever; e aquella lingoa latina corrupta, que se extendeo até o anno 1440; porque nesta se escreviaõ até o anno 1220 todas as resoluçoens das Cortes, todos os processos, e demandas; e el Rey Dom Dinis foi o primeyro Rey de Portugal que ordenou se processasse em Portugues, e naõ na lingoa latina. Esta superioridade no saber, ainda que mui limitada, comparada com o saber dos Reis e dos seos Grandes, valeo aos Ecclesiasticos serem Senhores de todas as disposiçoens das Monarchias em França, Italia e Espanha, e mais particularmente, porque tinhaõ Escolas donde toda a Mocidade era educada. Vejamos os rodeos que fes nestas Monarchias o viciozo circulo da ignorancia, e naõ nos admiraremos entaõ do atrevimento que tiveraõ os Ecclesiasticos de dominar os Reis e de depólos. Como nestas Monarchias cada anno se celebravaõ Cortes, e como nellas se deliberava o que era necessario para conservalas e augmentalas; como ali se nomeavaõ os Embayxadores; se despachavaõ as graças, se resolviaõ os castigos, eraõ necessarios Conselheyros, Secretarios e outros cargos que soubessem ler e escrever, e aquellas leis e costumes que se observavaõ naquelles Imperios. Mas entre todos os que tinhaõ assento naquellas Cortes, somente os Bispos, e os Prelados, porque sabiaõ escrever, podiaõ servir estes empregos: daqui he que vemos aquelles Concilios de Toledo, de Sevilha e de Milaõ, serem hũa compilaçaõ de leis civis e ecclesiasticas; porque os Bispos eraõ os unicos que redigiaõ por escrito estes actos; nada se fazia sem seu parecer, e tudo se publicava e decretava pelo seu voto e approvaçaõ[25]; mas naõ somente nas Cortes tinhaõ o primeiro logar e voto os Ecclesiasticos, elles eraõ os primeiros Conselheiros nas Cortes dos Reis, os Chanceleres, os Juizes, os Medicos, os Embayxadores; os Clerigos eraõ Secretarios, os Notarios publicos, os Advogados; emfim tudo o que era necessario escrever nestas Monarchias até o seculo XII o administravaõ e executavaõ os Ecclesiasticos. No Concilio de Toledo terceyro celebrado no anno 589, no tempo del Rey Recaredo, se ordena que os Bispos celebrem hũa vez por anno Concilio, e que nelle assistaõ os Intendentes del Rey, para aprenderem da boca dos Bispos, como deviaõ governar os povos, e que elles seriaõ os Inspectores[26]. Como era costume d'aquelles tempos mandarem os Reys criar seos Filhos nos Conventos dos Frades, já se sabe que os Filhos dos Cortezoins teriaõ o mesmo ensino e educaçaõ; e como toda a Nobreza por costume, por vangloria, e sobre tudo por interesse, imita com gosto, ainda os mesmos vicios dos Monarchas, bem se pode considerar, que se reputâriaõ felizes os Nobres que tiviessem aquella educaçaõ: já vimos assima o que se ensinava nestas Escolas: no tempo de Carlos Magno e de seos Filhos estava tanto em voga o Canto Gregoriano que nelle se consumia a mayor parte do tempo; houve repetidos dezafios entre os Musicos Italianos e Francezes[27], e naõ se desprezáraõ os Reis entrar nesta contenda, porque a sua educaçaõ tinha sido a mayor parte neste exercicio. Entaõ he que vieraõ os Reis e as suas Cortes ignorantissimas, crueis, falsas e supersticiozas: o ensino naõ tinha sido mais, que fazer o corpo robusto e ouzado; e as potencias da alma embebidas somente para venerarem os Ecclesiasticos que tinhaõ sido seus Mestres; estes ja ignorantes, como vimos, ja soberbos, poisque eraõ e que viviaõ como Senhores, já Senhores das resoluçoens das Cortes e de todas aquellas que occorriaõ em todo o Reyno, bem podemos ver claramente a origem de todas aquellas contendas que houve entre os Ecclesiasticos, e os Reis e Imperadores até o anno 1350. Deploremos com o Imperador Diocleciano[28], o Estado dos Reis que tem maos Conselheiros, mas ainda muito mais aquelles que tiveraõ somente por Mestres os Ecclesiasticos naquelle tempo que haviaõ de aprender a obrigaçaõ de Rey e de Subdito.