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V.

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—Se sou poeta!...—disse Pires, enviezando para o estuque do firmamento olhos de lastima.—A poesia é flôr muito delicada, que o primeiro vendaval do coração desfolha. Desfolhada a primeira flôr, o vaso que fica não tem seiva para outra: é como a terra ferida de maldição.

—Isso é triste—acudiu Silvina, tregeitando com a cabeça e olhos umas gaifonas piedosas.

—Tristissimo, minha senhora!

Agora eram de victima os ares do Fausto da Maya, e a dama já pedia a Deus que não viesse para junto d'ella a prima, com medo de espirrar uma d'aquellas casquinadas de riso, que a mais sisuda prudencia não refreia.

Jorge Coelho, no entanto, sem bem saber o que o impacientava, não podia tolerar a detença do amigo. «Se eu soubesse dançar—dizia de si para si o academico—teria feito o que fez Pires... Será de mim que elles estão fallando? É natural, porque a vejo fitar-me com attenção... Se me eu avisinhasse, daria melhor occasião a Pires de me apresentar...»

E, obedecendo á hypothese, deu alguns passos; mas tão a medo o fazia, que antes parecia querer que o não vissem. N'isto, já o amigo o andava procurando, e Silvina, vendo a direcção errada de Pires, acenou-lhe de longe, indicando com disfarce onde estava Jorge.

O pobre moço tremia quando viu que era procurado. A sua primeira idéa foi fugir da sala, e não duvidamos crêr que fugiria, se Pires lhe não trava do braço, dizendo:

—Olha lá como lhe fallas: a mulher tem espirito, e é um genio.

Isto foi peior.

—O meu amigo Jorge Coelho que eu tenho a honra de apresentar á exc.ma snr.ª Dona...

Pires estacou. Silvina sorriu-se. Jorge corou, baixando os olhos.

—Não sabe o meu nome? isso não importa disse a dama.—Eu me apresento. O meu nome é Silvina. Tenho a gloria de ser tambem aldeã. Nenhum dos tres póde rir dos outros. Então o snr. Jorge não dança?

—Não, minha senhora, eu não sei dançar—disse Jorge com infantil ingenuidade.

—Não sabe, porque não ama a dança, não é assim?

—Em minha casa ninguem aprendeu a dançar. Minha mãi foi educada n'um convento, e de lá sahiu para ser esposa, e governar sua casa n'uma terra onde nunca se deram bailes. Eu sahi da minha aldéa ha menos d'um anno, e tenho consumido todo o meu tempo no estudo...

Estava Silvina gosando sem motejal-a a simplicidade de Jorge, ao passo que Pires lamentava as pueris historias do seu acanhado amigo. Como quizesse salval-o, o imaginoso academico interrompeu-o com não sabemos que espirituosa semsaboria, que Silvina atalhou logo:

—Deixe fallar o seu amigo que me está encantando com a singelesa do que diz...

—Eu retiro-me, minha senhora—disse Pires, arqueando-se—porque estou compromettido para a seguinte polka.

—Tambem eu...—disse Silvina, já quando o par se avisinhava, ao qual pediu desculpa, de não dançar, por causa de uma forte dôr de cabeça. E voltando-se para Jorge, que não soubera avaliar a fineza do fingido incommodo:

—Tem aqui esta cadeira... Sente-se, e conversemos da sua familia, porque talvez precise desafogar saudades d'ella em coração que o comprehenda.

Jorge cobrára alento com este ar de familiaridade. Fez-se para elle profundo silencio em todo aquelle borborinho da sala.

Era a primeira vez que se via em face de uma mulher, que lhe não chamava irmão ou filho; e, todavia, tanta ingenuidade fraterna respirava o rosto de Silvina, que, por encanto, o timido moço, sem forcejar contra o enleio da alma, tirou de lá expressões de sorte affectuosas que nem os mais destros comicos de sala as diriam assim.

—Tem muitas saudades dos seus, snr. Jorge?—disse Silvina com brando mimo.—Está ancioso por chegar aos braços de sua mãi?

—Quizera que v. exc.ª a conhecesse—disse Jorge maviosamente.—Havia de amal-a... que minha mãi está tão longe d'este mundo brilhante, vive d'um modo tão differente do das pessoas educadas como ella foi, que me faz dó o que era e tem sido ha vinte annos, contando hoje apenas trinta e seis, n'uma aldêa, sem outra convivencia senão a de seus filhos, e sempre magoada das saudades de meu pai... Ha duas horas que penso em v. exc.ª e n'ella...

—Em mim?—atalhou Silvina, com sorriso de bondade—lisongeia-me infinitamente a companhia que me deu no seu pensamento; mas poderá dizer-me que analogia de imagens achou entre mim e sua mãi?

—Immensa, e não sei dizel-a. Se eu podesse bem interpretar este sentimento mysterioso, diria, d'outro modo, que hoje, pela primeira vez, se espelharam em minha alma duas imagens de mulher. Até ha pouco, havia lá a de minha mãi sómente, e os traços informes, a sombra, o indefinido do ser que vaga entre o céo e a imaginação do poeta. Agora...

—Essa segunda—interrompeu Silvina com uma gravidade impropria de sua idade e modos usuaes—não poderá jámais deslumbrar a de sua mãi, porque os entes de imaginação, visualidades passageiras, nunca usurpam a posse aos entes que a natureza nos está dando todos os dias em realidade de amor e carinhos. E depois, snr. Jorge, verá que é inutil esperar aquelle puro original da cópia que a sua phantasia vai debuxando, em quanto o coração novo e enganado lhe empresta as côres do céo. Affirmo-lhe, senão authorisada pela experiencia, amestrada pelo exemplo e confissões sinceras das minhas amigas, affirmo-lhe que o seu indefinido de poeta nunca lhe ha-de avultar em corpo e alma, se os olhos descerem do céo a procural-o na terra. Guarde, pois, com extremosa avareza a imagem de sua mãi, e não consinta que outra lhe dispute o exclusivo amor que lhe dá.

Disse.

O academico ouvia, pela primeira vez, a expressão floreada, a linguagem musical, o periodo arredondado, como de folhetim ambicioso, na bocca de mulher. Achava elle certa incongruencia entre as feições menineiras da provinciana e o tom sentencioso do discurso. Relanceou-lhe subito na memoria o meu nome, segundo me elle contou depois. Lembrou-se d'aquelle meu estirado discurso, na sua aldêa, dezoito mezes antes. Tropeçou na hypothese de que o singelo exterior da palavrosa menina mascarava um coração desbaratado por desenganos, e engenhoso de armadilhas a corações noviços. Alguem diria que o silencio de Jorge, seguido á ultima expressão de Silvina, era acanhamento. Já não: era a duvida.

—Ficou tão pensativo, snr. Jorge—tornou Silvina.—Está pesando no seu juizo a verdade das minhas palavras? Impressionaram-no tanto!...

—É verdade, minha senhora; estava pesando as palavras de v. exc.ª com outras que me disse um homem de trinta annos.

—Contrarias ás minhas?

—Semelhantes na intenção; mas muito mais desconsoladoras na fórma. Disse-me elle que ha muitas mulheres que matam, e uma só que salva.

—Mas affirmou-lhe haver uma que salva?

—Sim, minha senhora.

—E quantas vezes lhe disse elle que podia ser victima de sua devoção e generosidade a mulher que sente em si o coração salvador?... Creio que me não fiz comprehender...

—Comprehendi, minha senhora. Pergunta v. exc.ª se a mulher capaz de erguer a alma despenhada de sua grandesa, não se despenhará ella mesma n'essa generosa tentativa;

—Entendeu.

—Não sei responder, snr.ª D. Silvina. Eu não sei nada do mundo. Ignoro os precipicios em que póde cahir o homem, e não sei tambem a que alturas póde levantal-o o amor. Já imaginei o mundo mais agradavel: começo a dar cem illusões por cada realidade. Não cuide v. exc.ª que eu fiz pé atraz á vista da verdade despoetisada, e feia como dizem os pessimistas que ella é, vista á luz da razão pura; vejo, porém, que se vão fenecendo as flôres da minha imaginação á maneira que escuto e pondero, com religiosa crença, as palavras que v. exc.ª me diz, e as que me disse o bom ou funesto despertador da minha razão, que dormia acalentada nos braços da poesia. De que serve o desengano antes que a fatal experiencia no'l-o dê?! Para que me diria v. exc.ª, com ar de tanta verdade e segurança, que eu nunca encontrarei o puro original da cópia que a minha phantasia entrevê?!

—Diz bem! atalhou Silvina meigamente triste, ou adoravelmente dramatica—diz bem! Arrependo-me da injustiça que fiz ás mulheres, e mesmo da crueldade com que me tratei a mim propria. Fallei pela bocca da sociedade, snr. Jorge Coelho. Tenho ouvido, e lido nos romances as palavras geladas e desanimadoras que lhe disse, com o immodesto animo de distinguir-me a seus olhos. Menti-lhe, e menti ao meu coração. Não se desalente ao entrar na vida, e nunca de mim se lembre como de fada má, que lhe fadou a desventura. Espere, creia, e obedeça aos impulsos do coração, em quanto a peçonha da mentira o não contaminar. No mundo deve existir a imagem da mulher digna de senhorear-lhe a alma com a de sua mãi, cuja face eu beijaria, hoje, se podesse, com respeito e ternura de filha. Quando estiver nos braços d'ella, diga-lhe que encontrou no Porto, e n'um baile—onde raro sentimento grave entretem por momentos o espirito—diga-lhe que encontrou uma mulher que lhe manda n'esta rosa um beijo de sympathia e veneração.

E, dizendo, tirou do decote espeitorado do vestido a rosa, chegou-a aos labios, e deu-a com gracioso ademane a Jorge, que lh'a recebeu com mão tremente.

—Cumpre o meu pedido? tornou ella.

—Pergunta-me se cumpro? É este um encargo doce que v. exc.ª faz ao meu coração. Farei que minha mãi receba nos labios o beijo que vai n'esta flôr. Depois, pedir-lhe-hei que m'a ceda, que eu possa chamar-lhe minha, enthesoural-a como se ella para mim cahisse da grinalda d'um anjo... Se ha no coração poesia mais sublime que a da saudade...

—Ha, sim... a da esperança...

—A da esperança!... balbuciou Jorge, levando machinalmente a rosa aos labios, e córando da irreflectida acção que se lhe afigurou menos respeitosa.

(Oh santa innocencia! não sei se és mais tola que santa!)

Desculpem o parenthesis que desfeia um pouco o bello e harmonioso da fórma dialogal. Guarde-me Deus de motejar com insulsas facecias a candura, o rubor, a timidez encantadora dos vinte annos de Jorge. Invejo-lhe o que já não posso haver nem sequer com grande esforço d'arte; mas rio-me d'elle e de mim, quando as galhofeiras memorias do que fui, ha hoje quinze annos, sahem d'entre as flôres mirradas da minha primavera, e vem cá a este glacial dezembro da vida fazer-me assuada e zombaria, para que eu me dôa e corra das criancices de então. Pois rio-me com effeito, que é para isso a cousa, e riam-se, á vontade, os que de mim souberem que muitas vezes todo eu me incendiava em carmim e rosa, quando o olhar logrativo da mulher me alvoroçava o pudor a ponto de afeminar-me, e fazer de mim uma menina que... Quasi me escorregava agora dos bicos da penna uma necedade das que se não desculpam á propria santa innocencia que, repito, não sei se é mais santa que tola.

Vamos á historia com ajuda da providencia dos romancistas, a qual providencia, muitas vezes, abre mão d'elles, e deixa-os para ahi parvoejar que é mesmo cousa de peccado.

Silvina deu fé do rubor de Jorge, e...—querem saber a verdade inteira?—não gostou. É um segredo da essencia mulheril o dissabor que a molesta, a seu pesar... (vá, diga-se a seu pesar) quando o homem se amulherenga ao pé d'ella, e lhe não deixa o exclusivo de mulher. Receios de desmerecer em graças quando lhe é força ser mulheril? Consciencia ingrata d'uma superioridade que a desenfeita? Recursos que perde de captivar pelo mimo, com a brandura caridosa, por estremecimento do pudor, toques do pejo virginal, que ora lhe transluzem nas faces, ora lhe cerram os labios? Não sei se é tudo, ou alguma cousa, ou nada d'isso. A verdade é que a mulher não gosta de homens que coram, de homens que choram, de homens que... não são homens, está dito tudo, e n'isso ficaremos, se acham que está discutida a materia. Materia... que aleivosia! Isto é espirito o mais espiritual que póde ser. Espirito transcendental, d'aquelle que devia andar na mente de muito casquilho, paralta, janota, ou como é que se chama a tal alimaria, que se desentranha em lufadas de cynismo nos botequins, e vai ao pé das costureiras tartamudear jaculatorias de ternura.

Fica, pois, justificado o desgosto de Silvina, quando viu Jorge córar, por ter beijado a flôr, onde os labios da peregrina minhôta haviam imprimido o beijo de encommenda para a provincia.

—Agora, disse ella; são dous os beijos que leva a sua mãi, em uma só flôr. Queira Deus que o halito dos labios do filho não tirasse o perfume ao dos labios da amiga.

—Creio que sim—disse Jorge corando outra vez—creio que sim...

—Porque?!—atalhou Silvina com despeito mal comprimido.

—Porque sinto no coração o perfume do seu beijo.

Sahiu-se melhor do que eu pensava. É aquella uma das respostas que costumam ir de casa gizadas; mas creio no improviso. E assim, explicado o segundo accesso de escarlate, desvaneceu-se o desaire em que estava Jorge na opinião caprichosa da dama, que replicou muito requebrada:

Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento

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