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PRIMEIRA PARTE.
I.

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«Em quanto ao fogo d'aquelle meu phantasiar de genio, fadado para desgraças, encendrei as imagens das formosas apparições da terra, as creações do meu espirito eram magnificas e brilhantes como as myriadas do céo estrellado.

«Eu tinha horas de tão dôce scismar! O ideal de Fausto, a melancolia do poeta d'Elvira, os coriscos de Byron, as satyras mordentes do Diabo-Mundo, as facecias elegantes de Fielding, e as vaporosas subtilesas de Senancourt! Ai! havia de todas essas feições do genio um traço de cada uma, no meu espirito.

«Mas, n'aquelle dia, á entrada do meu caminho, n'aquella noite calmosa, quando o sangue estuava nas arterias, quando as azas do coração, como as da aguia ferida, baixavam á terra, aquella mulher...

«A mulher fatidica! O despertar do sonho de dezoito annos. A Beatriz, a Laura, a Leonor, vingando-se na essencia d'uma, porque eu ousára crêr e dizer que mentira Tasso, e mentira Petrarcha, e mentira Dante.

«Que mulher! Bella? Ai! não, não é essa a palavra. Bella como a filha do anjo rebelde, a quem Deus vingativo dera o dom de crear a formosura que mata, o olhar das chammas magneticas do crime, a fascinação do abysmo onde o cahir é perder-se o homem para si, para a humanidade, e para Deus.

«Eu era poeta.

«Com que enthusiasmo eu pedia o meu quinhão na herança das celebradas agonias de tantas victimas de si, mansissimos cordeiros immolados no calvario do talento!

«Este augusto titulo, mercê do céo, rubricado por sello divino no coração do homem, tornou-se epitheto ridiculo ou injurioso.

«Gela-se-me o sangue, quando a ignorancia petulante faz um tregeito de menospreço ao talento, e diz: poeta!

«Mal sabeis que brutal atrevimento, ha ahi no tom de escarneo com que as bestas-feras insultam a intelligencia!

«Um bando de collarejas abrias, atirando-me em injurias a lama que lhes extravasa da alma, seria para mim harmonioso cantico das graças, comparado ao sorriso affrontoso do nescio que me diz: poeta!

«Ha ahi um rir do vulgacho, que dá em terra com a alma. Oh! o rir da gentalha maltrapida é menos fulminante que o escarneo da plebe engravatada, de todas as escorias sociaes a mais alvar e incorrigivel!»

Parou de escrever o meu amigo, quando eu entrava no seu gabinete de trabalho.

Este nosso amigo... Consinta o leitor a apresentação, e de amigo logo, porque eu sei que elle o é de conhecidos e desconhecidos, tirante os estupidos maus.

Este nosso amigo é uma afflicção permanente, um como pelicano que se está continuo espicaçando o peito para alimentar do sangue proprio seus filhos insaciaveis, suas imaginações escandecidas.

Entrou na vida pela porta do inferno. Os olhos da alma abriu-lh'os uma paixão das que alumiam a carreira do crime até á morte moral. A consciencia de sua individualidade, desunida das mil formosas existencias que se identificára, deu-lh'a o ser mais poetico da terra, a soberana da creação—a mulher!

Aos dezoito annos expulso do paraiso pelo anjo a quem dobrára o joelho!

Até então, Jorge Coelho amou sua mãi e irmãos, flôres, estrellas, fontes murmurosas, os pinhaes rumorejantes, o céo azul e as nuvens abertas em coriscos, os repiques festivos do campanario da sua aldêa e o dobre de finados, a cantilena da pastora e o gemer convulsivo da viuva e da orphã.

Tudo lhe era n'este mundo poesia, desde a grinalda de flôres da esposada até á baeta negra do esquife.

Não sou crendeiro em horoscopos de epiderme; todavia, tres rugas que lhe avincavam a testa entre as bossas frontaes, impressionaram-me. Um poeta, da alteza d'elle, diria que semelhantes vincos eram vestigios da vara com que a mão de um genio funesto o ferira, no berço. Moço de dezoito annos, que sobe ao empinado das serras, e circumvaga os olhos lagrimosos pelos confins dos horisontes, e me diz:—«a minha alma não cabe aqui» esse tal é de crêr que se fine na flôr dos annos, depois de haver experimentado as dôres todas de longa vida.

«A minha alma não cabe aqui»—disse-me elle, sentado no tôpo de um fragoedo, com a arma caçadeira encostada ao peito, e afagando com a mão o focinho do galgo que a lambia.—«Nasci hontem, e já me cança a vida. Sou um como hospede, que se sente ebrio antes de assentar-se á mesa do festim. Meus irmãos estão contentes ao pé de minha mãi. De manhã são abençoados e beijados; á noite vão restituir-lhe o beijo com a face alumiada de santa alegria; recebem a segunda benção da virtuosa, e vão dormir serenas horas, em quanto eu, fechado com os meus livros, tento debalde entreter o espirito nos deleites da poesia, ou subjugal-o ás paginas graves da philosophia que me disputa á fé, e da fé que me arranca aos tedios indigestos da philosophia.»

—Nunca sahiste d'aqui?—interrompi, suspeitando da candura de Jorge n'este tecido de palavras presumidas.

—Nunca sahi d'aqui. Fui litterariamente educado por um tio frade, que, ha um anno, me entregou ao ensino de minha mãi, dizendo que a semente da sciencia não podia germinar em terreno, onde faltava o amanho da boa educação religiosa.

Minha mãi não me entendeu melhor que o frade. Fallou-me do temor de Deus como principio da sabedoria humana. Eu tenho um Deus que não temo, porque o amo e adoro com espontanea devoção, porque o vejo luminoso em todas as minhas creações impalpaveis, porque o respiro e converto em seiva da minha alma, que tanto mais se amplia quanto mais se engolfa na immensidade divina.

Minha mãi é uma virtuosa senhora que só acha digna de Deus a linguagem dos psalmos penitenciaes, e os actos contrictos de peccados imaginarios. O circulo, que ella traça ás minhas aspirações, é estreitissimo. Para ella, o futuro é a successão dos dias travados uns nos outros, iguaes e serenos, como os viveram meus avós, e como ella pretende herdal-os a seus filhos. O futuro para mim é o grandioso imprevisto, é a vida com os seus desertos e oasis, é o oceano com as suas calmarias e borrascas, é a peregrinação do israelita, agora perseguido nas aguas do mar vermelho, logo alumiado pela columna de fogo.

Que sinto eu aqui?—proseguiu elle, pondo a mão na testa, cujos vincos se afundavam—Será o pensamento confuso do girondino á vista da guilhotina? Será o abutre gerado n'um sangue que, cedo ou tarde, tem de trazer-me a congestão ao cerebro?... Não sei...

—Porque não será a alma que geme solitaria como a rôla, que, além, no ramo secco d'aquelle azevinho, está chamando o companheiro que ha-de vir?—disse eu em phrase lyrica para não destoar da linguagem levantada de Jorge Coelho.

—Não creio—acudiu logo o meu amigo.—Eu tenho lido o amor dos livros, o amor dos romances, o amor da historia, o amor da poesia. Não me inquieto, nem me acho n'esse sentir. O que não entendia aos quatorze annos, não o entendo hoje melhor. As impressões que então recebi, recebo-as agora semelhantes. Os quadros de Dido e Eneas, de Helena e Páris, são duas telas borrifadas de sangue. O amor não póde ser aquillo. Paulo e Virginia, Julieta e Romeu são duas catastrophes que apertam a alma entre a admiração e o dó. A felicidade não está n'esses amores tão celebrados. Werther e Carlota, Chatterton e Kit-Bell, com o anjo inexoravel da virtude entre si, ao despenharem-se um apoz outro no abysmo da morte, para se salvarem do abysmo da perdição, são dous entes desamparados do anjo bom que nem sequer já serve para galardoar heroicos martyrios. Pois não irão mais longe os meus anhelos de gloria?

A região da felicidade estará delimitada pelas raias do amor, que o romance, e a historia, e a epopea me pintam, glorificado por lagrimas e sangue?

—Mas ha um amor—redargui—que não é o amor da historia, do romance, e da epopea. É amor reflectido de mais alto amor, que as almas adivinham e não entendem. É amor, preludio da bemaventurança, e prelibação da ambrosia celestial.

—É o amor do romance, esse, creio eu...—interrompeu Jorge Coelho sorrindo.

—Não é, meu amigo; e, se me contradizes n'essa idade, inculcas baixeza de affectos, que eu não posso acreditar, por honra da especie humana. O que te authorisa a desmentir um homem de trinta annos, que por sua honra te jura que esse amor existe? Queres achar Vestigios dos trabalhos e calamidades que me custou a descobril-o?

Repara nos meus cabellos brancos.

Colombo achou curtas as fadigas, que lhe deram o novo mundo, e a perpetuidade do nome d'elle, mais valioso que o novo mundo. Experimentaria Colombo as vertigens de prazer, que me endoudeciam, quando encontrei a mulher mais perfeita que os primores da minha phantasia?

Não te allucines, porém—prosegui, vendo nos olhos de Jorge a lucidez do enthusiasmo, accusando o proposito de se abrasar no primeiro amor, que lhe deparasse o acaso.—Não te allucines em presença de qualquer mulher com sorrisos de Virginia, que tanto servem de elogio ao pudor como de epitaphio da innocencia. Não respires com sofreguidão o aroma das primeiras flôres, que encontrares. Lirios e mandragoras são bellas flôres, que matam, se as não lançares de ti, aspirados os primeiros effluvios. Ha mulheres como as flôres venenosas: se te detiveres com ellas mais tempo que o necessario para lisongeares a sensação, e regalares a phantasia, sentir-te-has tomado de um marasmo de espirito, em que serão delidas as tuas mais nobres faculdades, e, a mais válida de todas, o mais nobre apoio da tua dignidade de homem—a liberdade. Esta doença, no começo da vida, deixa achaque para sempre; é como a bala recebida em pleno peito e lá encerrada: o ferido vive; mas, a revezes, a dôr lhe está lembrando que a bala pesa sobre o derradeiro fio da vida. Mulheres, que matem corações generosos, ha muitas para cada homem. Mulher, que salve, ha uma só.

A minha vida é uma elegia continuada desde o berço até esta ante-camara do tribunal da morte, onde estou esperando que me chamem: não tem romance: são desastres concatenados, sem intermedios d'esse contentamento vulgar, que os fortunosos denominam amargura. Todavia, se tivesses mais doze annos, Jorge, seria eu o teu conductor pelos infernos d'este mundo, que Dante não cantou de preferencia aos do outro, porque a civilisação da idade media não tinha em si os supplicios d'esta sociedade em que vaes entrar.

E que lucrarias tu, ouvindo a minha historia? Vêr-me-ias longo tempo enredado na torpeza, na irrisão, e na brutalidade dos differentes algozes, que me suppliciaram a alma. Se quizesses que te iniciassem no segredo de sondar a perversidade dos corações, não poderia eu, porque a aspide, que te mede o salto do seio da mulher, só vibra a farpa mortal depois que varas em terra embriagado de aspirar o aroma do ramilhete, que a esconde.

A sombra da mancenilha é grata como a de todas as arvores; suave é a viração que lhe estremece a coma; o sol nem sequer mosqueia o chão em que refazes os membros lassos; mas agonia mortal será o teu despertar se a formosa folhagem distillou sobre o teu corpo um sumo corrosivo que te faz morrer em acerba palpitação de todas as fibras. Conheces tu a mancenilha n'este deserto, que vaes palmilhar, encalmado das ardencias do coração? Saberás tu, aos dezoito annos, distinguir a mulher, que mata, da mulher, que salva? Os trinta abysmos, d'onde me eu levantei, com as faces a escorrerem sangue, estarão cobertos de flôres para ti? Eu creio que o poeta é um condemnado, a sua patria primitiva um outro mundo, este, em que nos encontramos, amigo, o purgatorio. Que montam os suffragios do padecente experimentado para te remir? Nada. Cumpre a sentença, porque é intransitivo o calix...

Decorrido um anno, encontrei Jorge Coelho, não vos direi aonde, porque ha repugnancia em deslocar uma scena, quando a verdade não póde, por motivos sagrados, ser dita á curiosidade malevola.

Encontrei-o escrevendo os periodos iniciaes d'este capitulo. Outros de igual azedume, assignados por elle, me haviam denunciado a residencia d'esse moço, na terra, em que eu, de passagem, assentára a minha barraca de bohemio.

Reconhecendo-me, ergueu-se, abraçou-me com expansiva vehemencia, e proferiu aquellas ultimas palavras do estirado discurso do anno anterior:

Cumpre a sentença porque é intransitivo o calix.

—E muito amargo? perguntei eu.

—Amargo, e nauseabundo. Fel e lama. O insulto e o aviltamento. Adormeci debaixo da mancenilha, meu amigo; e acordei nos paroxismos de que não posso morrer. Achei uma das mulheres, que perdem. A sociedade applaudiu-a, quando eu cuidava que a indignação do mundo me vingaria. Ajuntei á minha dôr o que devia ser pejo, deshonra, e remorso n'ella. Quiz desafiar a piedade do mundo com o paciente silencio da minha desgraça. O mundo viu-me passar de olhos baixos para esconder as lagrimas, e fez da palavra «poeta» um synonymo chocarreiro de insensato.

Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento

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