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DISCURSO PROEMIAL.

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Altissima é a missão do escriptor, e a do romancista principalmente. O mestre Ignacio da cartilha velha, amoldurada ás necessidades do seculo, é o romancista. Mal hajam os sacerdotes das letras derrancadas que vendem peçonha em lindos crystaes, e desfloram as almas em luxuriante florescencia da sua primavera. O mau romance tem afistulado as entranhas d'este paiz. Não ha fibra direita no coração da mulher que bebeu a morte, e—peior que a morte—algumas dezenas de gallicismos no que por ahi se escreve e copia. O anjo da innocencia foge de certos livros, como os editores de certos authores. A candura virginal de uma menina de quinze annos é a cousa mais equivoca d'este mundo, se a menina leu cousa em que os pedagogos do coração a ensinaram a conhecer-se, antes que a experiencia a doutrinasse.

Para cumulo de infortunio, Portugal é um paiz onde se está lendo muito.

Acontece aos estomagos famintos, quando se lhes depara alimento bom ou mau, assimilarem-n'o com tamanha sofreguidão, que o encruamento do bôlo, e o marasmo são inevitaveis. Assim e por igual theor, quando os Lucullos e Apicios das letras expõem á voracidade publica as suas iguarias estragadas, a fome de aprender a vida nos romances locupleta-se com tamanha intemperança, que o resultado e as dispepsías espirituaes, tormento de angustias vomitivas, que fazem descer o coração ao lugar do estomago, e subir o estomago ao lugar do coração.

Eu tenho assistido a esta deslocação de visceras com lagrimas nos olhos, enxutos para tudo o mais. Muitas vezes tenho perguntado ás velhas se isto assim era no tempo d'ellas. Faz dó vêr a consternação com que algumas expedem um gemido, unisono com o assobio da pitada! Compunge vêr rolar a lagrima preguiçosa do olho desvidrado d'outra, que se recorda da honestidade com que foi amada pelo seu quinto amante!

Ha cincoenta annos que as senhoras não liam romances, por uma razão cujo descobrimento me custou longas vigilias:—não sabiam lêr. Algumas, rebeldes á vontade paternal, conseguiam soletrar e escrever á tia uma carta em dia de annos, copiada do Secretario portuguez de Candido Lusitano. Os paes aceitavam com repugnancia aquelle abuso de intelligencia, e castigavam a filha, forçando-a a um trabalho litterario semanal: escrever em cada segunda feira o rol da roupa. Este systema penal tinha só a vantagem de tirar ao vicio os enfeites da intelligencia, reduzindo-o á essencia bruta de sua nudez primitiva. Já não era pouco para exemplo e edificação das almas. O melhor moralista será aquelle que despir o delicto do coração das galas que lhe veste o desejo, e o cobrir de farrapos repulsivos.

Por esses tempos, e nos dez annos sequentes, os propagandistas da corrupção tentaram exercitar o seu maleficio, vertendo para pessima linguagem portugueza novellas francezas, que transpozeram as fronteiras no couce da bagagem do Junot.

Em 1814, a immoralidade, até esse anno sopeada pela impertinente virtude das novellas, taes como A virtude recompensada e o Escravo das paixões, quebrou as ferropeas, e despejou do regaço dissoluto a versão de Tom Jones, o Sophá, o Candido, e quejandas faúlas incendiarias, que pegariam nos corações, se a manteiga e o paio das tendas não esfriassem a força comburente d'essa droga, que acirrava os paladares anthropóphagos d'aquelle festim de 1793.

Bemdita e louvada seja a ignorancia! Os romances francezes, até 1830, encontraram as almas portuguezas hermeticamente calafetadas. Ate esse anno infausto, a mulher era o anjo caseiro, a alma da despensa, a providencia da piuga, e sobre tudo, a femea do homem, qual Jehovah a fizera d'uma costella do mesmo.

O salão era um como trintario cerrado, onde, a espaços, uma gosmenta matrona espirrava, e a sociedade, a cabecear de somno, surgia estremunhada, dizendo: Dominus tecum. A menina casadeira não se erguia de ao pé da mãi. O noivo mirava-a de longe em fellina beatitude; e, no auge da sua casquilha audacia, piscava-lhe a furto o olho, onde reslumbrava a paixão.

Não havia então d'estes homens mulherengos, que alambicam a parlenda assucarada, coando por ouvidos incautos o veneno do estilo, que é o mais corrosivo de quantos ha na toxicologia do amor. A mulher actual é quasi sempre victima da rhetorica requentada do romance, que esteril peralvilho lhe encampa como cousa de sua alma. Algumas conheço eu que resvalaram ao abysmo da perdição pela rampa de um adverbio euphonicamente intruso n'um periodo arredondado. Este sortilegio da linguagem, que enfeitiça e dá quebranto ás mulheres, é apanhado no romance. O coração de certos individuos acha-se, muitas vezes, a paginas tantas de tal novella. Sem figurinos e romances, não haveria corpos apresentaveis nem espiritos insinuantes.

Muita gente se espanta das gloriosas aventuras de alguns sujeitos pyramidalmente tolos. Eu não. Tal ha que se vos afigura mazorro d'alma, e, não obstante, ao lado de mulheres, dispara descargas de phrases amorudas que é um pasmar. Asneira, dita em nome do coração, não ha uma só que não seja laureada. Cada Petrarcha lorpa tem, a final, o seu capitolio.

A mulher, por via de regra, é de seu natural tão boa, sensivel e generosa, que chega a recompensar a pertinacia do homem que, primeiro, a nauseou: o segredo d'este paradoxo está na influencia contagiosa da tolice. A mulher que fez chorar o tolo, e viu rebentar lagrimas de uma cabeça de granito, cuida que fez o milagre de Moysés na rocha de Horeb. Alliciada pela serpente da vaidade, succumbe como Eva.

Que mudanças!

D'antes o caixeiro principiava sempre a carta de namoro por: Meu amado bem! Agora já diz: Anjo! ou Seraphim! Era d'antes a phrase sacramental do exordio: Vêr-te e amar-te foi obra de um momento. Agora não é raro encontrar d'estes arrojos: Amar e morrer é meu destino!

E, depois, o maleficio do romance não está sómente no plagiato irrisorio; o peior é quando as imaginações frivolas ou compassivas se entalham os lances da vida phantasiosa da novella, e crêem que a norma geral do viver é essa.

Em quanto a mulher estuda sómente a phrase que applica, bem ou mal, quando a enlouquece a vaidade de parecer o que não é, bem vai. Dá-se um exemplo: A apaixonada de um amigo meu, ao recebêl-o, pela primeira vez, em sua casa, no patamar da escada, antes de deixar-se beijar a mão, estendeu o braço direito em magestosa attitude, deu á frente a regia altivez de uma Phedra de aguas-furtadas, e disse em tom cavo e solemne: Juraes levar-me ás aras? O meu amigo, que balbuciava um prefacio de longo estudo, soltou um frouxo de insolente riso, e desceu as escadas, por não poder com o espectaculo da dama corrida do insulto. Eis-aqui uma que os romances de Arlincourt salvaram; quantas, porém, perdidas por guardarem as phrases ridiculas para o final?...

Grande mal é o identificar-se o espirito ás visualidades do romance. Quando a leitora se ri das crendices da sua infancia e dos absurdos principios que lhe apoucaram o imaginar e o voar do espirito, vem-lhe os enfados, o escutar as mentiras do coração que se emancipa, o crêr que a vida passada foi apenas um vegetar do vulgo, e que o viver da alma assim, será como o do arbusto bravio que dá flôres sem aroma, e fructos sem sabor.

Seja, outra vez, bemdita e louvada a ignorancia de nossas mães, e nossas irmãs, e nossas esposas!

A vida caseira, esta deliciosa monotonia, que a poucos é já saborosa no viver intimo, requer muita estupidez, muito somno a toda a hora, um estomago exigente e forte, muita digestão soporosa de substancias pesadas.

Esta bemaventurança ha-de restaural-a a ignorancia supina, não hão-de ser as palavrosas theorias de Michelet ácerca do amor e da mulher. Comecem os paes de familias por circumvalarem suas casas de um cordão sanitario contra a peste do romance, que não se abonar com a promettida pudicicia d'este, e de outros com que o author, coração aberto a todas as chimeras, e de entranhas lavadas, tem querido enxertar no tronco carcomido da humanidade toda a casta de virtude.

Vou lembrar um alvitre, cuja adopção poderia ser momentosa na regeneração dos costumes.

As reliquias das velhas virtudes portuguezas, se as ha, acham-se nos velhos, que beberam ainda as escorralhas dos seios puros do seculo passado. O Porto, de preferencia, graças á força refractaria da sua organisação, encerra boas quatro duzias de archontes dignos da Grecia antiga. Fôra facil eleger de entre estes—(abstenho-me de os nomear, porque a modestia n'elles dóe de insoffrida como ulcera em lombo de muar, e não é raro responderem ao elogio com o couce)—eleger d'entre estes, digo, uma corporação censoria, encarregada de examinar os livros, que giram no mercado, e referendar os que a juventude feminil podesse lêr sem deterioramento da innocencia. D'esta arte, os anciãos não restringiriam a sua egoista virtude á missão balda de condemnarem o vicio da mocidade inexperiente. O exemplo dão-no optimo; a doutrina é a que nós sabemos; mas não os devemos desquitar de se constituirem entulhos contra a torrente do vicio, desviando-a de levar ao regaço das futuras esposas e mães o romance peçonhoso.

Pelo que, d'aqui já sotoponho este livro á censura, e assim dou publico e voluntario testemunho de quanto venero as cãs e as virtudes. Fadario triste! A minha sina capricha, até hoje, em fazer-me malvisto d'esses que eu mais quizera bemquistar, ainda á custa de um panegyrico á corrupção senil dos raros que desgarram da trilha austera por onde a virtude os vai guiando ao céo, no qual os proprios anjos se espantam das colonias que vão d'aqui.

Porto—1858.

Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento

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