Читать книгу Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - Camilo Castelo Branco - Страница 8

III.

Оглавление

Índice de conteúdo

Entrou Jorge Coelho nos salões da «assembléa,» e julgou-se em regiões de houris. Durou-lhe alguns minutos o atordoamento da primeira impressão. Não o enleava esta ou aquella physionomia; eram todas. N'aquella harmonia do bello, até as senhoras feias—se ha senhoras feias, vistas á luz do coração—recebiam homenagem do extatico moço. No espasmo delicioso do academico, se algum amor influia, era de certo o amor da especie, porque seus olhos não haviam ainda estremado o individuo, que os olhos d'alma entreviam no todo.

Do cisco lucido, que volita no ar, faz douradas palhetas o raio do sol coado pela fresta. Na dourada lucidez que Jorge via por magico prisma, não haveria muito cisco, muito atomo de poeira humana, que sómente refulge aos reverberos dos lustres, consoante o variegado das côres? Decidam os que lá andam.

Aquietado dos alvorotos da surpreza, o estudante sentiu o vacuo, porque se viu sosinho alli. O apresentante doudejava no redemoinho das danças, e raros intervallos perdia, perguntando ao condiscipulo se estava contente.

Jorge não sabia dançar, porque não tivera tempo de aprender esse appendiculo grutesco da boa educação. Muitas vezes lhe dissera o tio padre, authorisado pelo oratoriano Manoel Bernardes, que danças eram ansas do demonio armadas á alma.

Não se glorie, porém, o crendeiro egresso de ter instillado no animo do sobrinho o horror das mazurcas. Jorge não dançava porque não sabia se quer a nomenclatura d'essa galharda tolice de que por vezes impende o accesso ás almas, e o passar-se uma noite menos tediosa n'um salão em que o espirito se retouça em piruetas, mais ou menos ridiculas e parvoinhas, da materia.

Á meia noite, Jorge procurou o seu condiscipulo para dizer-lhe que se retirava. Atravessando uma sala, quasi despovoada, viu duas senhoras reclinadas n'uma ottomana, em postura de fatigadas ou aborrecidas. A mais velha não excederia vinte e cinco annos; a outra, que teria dezoito, foi a primeira que prendeu o exclusivo reparo de Jorge, senão antes uma contemplação absorta em que ellas mesmas repararam.

O academico devia captivar a attenção das duas senhoras, melancolicas por indole ou artificio. Tinha elle um semblante de si tão meigo e affectuoso, que as pessoas tristes sentiam-se melhorar em suas magoas, pensando que outras acaso maiores e mais carecidas de lenitivo denotava o brando olhar do moço. Estava, por ventura, este condão sympathico na magresa do rosto, cujo pallor mais era signal de compleição mimosa, que effeito de vigilias e desperdicios de vida com que muitos conhecidos nossos se recommendam ás senhoras idealistas, affectando langores e martyrios de alma, dos quaes a victima principal é, em verdade, o corpo.

—Sympathica physionomia!—disse a mais velha das duas senhoras.

—Conheces?!—perguntou a outra sem fugir os olhares de Jorge, o qual, por mero disfarce, encarava objectos, que realmente não via.

—Não o conheço, nem me lembra de o ter visto em parte alguma.

—Tinha curiosidade em conhecer... Não achas n'aquelle rosto um não sei que de distincção?

—Tem alguma cousa não vulgar...

—Uma tristeza insinuante, achas?

—E não sei que de magoa supplicante...

—É verdade... e as supplicadas somos de certo nós...

—És tu, Silvina... és tu a examinada com um ar de espanto ou ternura que compromette. Olha um grupo de homens, que nos observam e mais a elle...

—Não olhemos mais. Elle já sabe que o vimos e discutimos. Achamol-o sympathicamente triste, e bem póde ser que seja um tolo com bastante coragem para nos dizer que o é... Mas quem será?!

A curiosidade das duas damas é menos racional que a dos leitores que desejam conhecel-as.

A mais velha é a snr.ª D. Francisca da Cunha, creatura galante, com quanto morena, grandes olhos pretos, sobrancelhas travadas e negras, opulentos cabellos, e espirito de improviso bastante a fingir illustração. Pertence a uma familia heraldica da provincia de Traz-os-Montes, e veiu ao Porto com seu pai, fidalgo arruinado pela politica e pelas proprias dissipações, com o fim de acirrar a cobiça de um noivo conveniente, cujos paes almejam por enxertal-o no nobilissimo tronco dos Cunhas. Tem esta menina genio exquisito e romanesco. Por muitas vezes tem mallogrado os esforços casamenteiros do pai, mofando da figura e palavriado, um pouco para rir, do noivo. Á força de ser má, conseguiu fazer-se anjo no conceito do mal-fadado que espera em ancias ser marido d'ella. Maravilhada do poder que tem na alma do capitalista, com desdens e despresos, espanta-se do presumido dominio, que poderá ter sobre o homem a quem der os sentimentos embrionarios no seu coração. Para experimentar, sem risco da sua nomeada, recebe cartas de varios oppositores á sua alma, e responde regularmente a umas com idéas respigadas nas outras. Nos grupos, que se vão formando na sala, em que está com Silvina, sua prima carnal, avultam quatro dos seus correspondentes activos, e dous, que obtiveram promessa de resposta, e alguns, que esperam aso de solicitarem aquella gloria, no entender de cada um negada a todos, chegando a fazerem-se a mutua justiça de julgarem-se parvos uns aos outros.

D. Silvina de Mello, prima de D. Francisca, é tambem provinciana, e veiu de uma aldêa do Minho a banhos do mar, convidada por sua prima, de quem é hospeda. O que ella aprendeu em quatro mezes de convivencia é possivel que o não acreditasse quem lhe visse o rosto de anjo, olhares de innocente acanhamento, sorrisos de escrupulosa timidez, palavras desanimadas e preguiçosas, e, no todo, uma despresumpção de maneiras, que fazia suppôr grande limpeza d'alma e de... de intelligencia!

Fôra D. Silvina da sua aldêa para o Porto com uma paixão por um morgado, que a não seguira por fortissimos impedimentos. O pai do morgado tinha feito extraordinarias despezas na construcção de uma eira, na reedificação da capella solarenga, no muramento de algumas cortinhas, que comprara, não fallando já nas desastradas mortes de um macho, que tinha trinta annos de bom serviço na casa, e duas juntas de bois atacadas de epizootia. O moço pedira debalde soccorros, fingira-se mesmo epileptico para que o cirurgião da terra lhe receitasse banhos salgados; o velho, porém, passaro bisnau, e avesso á inclinação do filho, deu grandemente louvores a Deus por propiciar-lhe ensejo de acabar-se um namoro inconveniente, attenta a mediocre legitima de Silvina. Facil foi a D. Francisca obliterar no coração da prima a imagem do seu primeiro amor, zombeteando-a á proporção que a ingenua provinciana lhe ia mostrando as cartas do saudoso morgado.

Não podémos averiguar porque traças o morgado de Santa Eufemia arranjou dinheiro com que foi ao Porto, tres mezes depois que Silvina cessára de responder-lhe ás cartas, tanto mais irrisorias quanto a paixão as dictava em estilo talhado para matar paixões. O certo é que o allucinado homem chegou ao Porto na vespera do baile da assembléa, e alcançou cartão de convite. A sua idéa era encontrar Silvina.

Todo sorvido na ancia de vêl-a e fulminal-a com olhadura terrivel de accusações, o morgado de Santa Eufemia não cuidou, com tempo, de mandar fazer casaca. A que trazia na mala era dos figurinos de Guimarães, e, posto que em bom uso, era anachronica na gola, nas lapelas, na largura e comprimento das abas, na pequenez dos botões, e rebordo dos punhos. Consultou a pessoa, que lhe alcançára o convite, ácerca da casaca; mas, desgraçadamente, a pessoa consultada era um d'aquelles individuos de juizo, que não tiram o monge pelo habito, e reprovam que seja sacrificada aos caprichos da moda uma casaca de bom pano, farta e commoda, sómente porque alguns casquilhos perdularios, ou alfaiates especuladores, inventam feitios novos.

Concordou o morgado, e foi ao baile com a casaca velha. Melhor lhe fôra ter morrido da epizootia! A sua entrada na primeira sala foi um acontecimento. As petulantes lunetas saudaram-n'o, e seguiram-n'o com insultuosa curiosidade até ao salão da dança. As senhoras, em regra, pouco curiosas do trajar dos homens, não repararam na casaca, mas não podiam deixar de vêr o collete e a gravata. Era esta descommunal na altura, atravessada por um laço, cujas pontas, como orelhas de lebre morta, cahiam caprichosamente sobre os hombros. A côr verde da gravata contrastava com o encarnado-ginja do collete de uma abotoadura e colchetes apertados até ao pescoço, e acairelado na abotoadura e bolsos com vivos roixos. Sobre isto cahiam as lapelas enxovalhadas da casaca, com as quebras e vincos dos apertos que soffrera na mala em que viera, para irrisão e descredito de Freixieiro, cujo elegante era.

Desconfiou o morgado de Santa Eufemia de alguns indiscretos que o seguiram, desde o vestibulo da assembléa. Viu, depois, que as damas se trocavam olhares suspeitos, que o não impediam de procurar Silvina com aspecto entre o furioso e o comico. A obstinação, porém, dos chasqueadores era inexoravel, e o morgado teve um intervallo de lucidez, em que olhou em si, e se viu ridiculo. Do fundo de sua alma deu, então, graças á Providencia, se Silvina o não tinha visto; mas o derradeiro olhar, que lançou aos descaridosos mofadores, era provocador.

Resolveu, pois, retirar-se, maldizendo o velho amigo de sua familia, que o demovera do proposito de fazer roupa nova. Quando ia sahindo, atravessou por engano a sala em que se achavam D. Francisca, D. Silvina, e Jorge Coelho. Os grupos de homens, que por alli estanciavam, deram com elle de cara, seguido d'um cortejo de folgazãos, que tinham passado da zombaria cautelosa á risada descomposta.

Silvina corou até ás orelhas, quando Francisca exclamou:

—Oh! que original! Repara, prima, tu não vês aquelle homem?!

A este tempo o morgado estava em meio da sala, e fazia machinalmente uma cortezia ás damas.

—Aquillo será comnosco?!—dizia, com desdenhosa zanga, D. Francisca.—Conheces aquelle phenomeno?! Olha que elle está esperando que o comprimentemos... Conheces, Silvina?

—Conheço...—balbuciou Silvina, acaso tão afflicta como o desastroso morgado, que estava alli chumbado ao pavimento.

—Quem é? é da tua terra?—tornou Francisca já envergonhada de que julgassem ser ella a causa da attentiva paragem de semelhante entrudo.

Silvina ergueu-se, tomou o braço da prima, e disse:

—Vem, que eu te contarei tudo.

Sahiram.

Jorge Coelho foi o unico dos circumstantes que examinou com seriedade o morgado. Achava estranho o personagem; mas dizia-lhe a boa alma que o insulto era improprio de pessoas bem educadas como deviam presumir-se aquellas, que estavam alli representando a melhor sociedade.

O fidalgo de Freixieiro sahiu com os olhos a marejarem lagrimas. Foi ainda Jorge quem unicamente viu este signal de afflicção; e, sem saber o porquê, sympathisou com a dôr do homem, que levava de poz si o escarneo de tanta gente, e na alma a certesa de que viera dar-se em espectaculo aos olhos da mulher, que nunca lhe perdoaria o ser ridiculo. Pobre criança! como vivias enganado pelas maximas dos teus romances francezes! Não sabias tu que ridicula, sem rehabilitação, é só a pobresa.

D'ahi a uma hora, Francisca e Silvina desciam do toucador para o salão do baile. A primeira compunha o semblante ainda descomposto das gargalhadas com que recebera a revelação da prima. Esta, mortificada pelo amor proprio, se não antes vexada pela indecorosa eleição d'um amante chulo, captivava lastimas com a tristesa que devêra acarear despreso. Despreso! Talvez piedade, que a situação era digna d'ella, por que é a mulher, quem mais a si se mortifica, se a consciencia a accusa d'uma escolha, que não só lhe não disputam, se não que, peior ainda, lhe injuriam com motejos. O morgado de Santa Eufemia, até á noite infausta do baile, era uma recordação, se não saudosa, ao menos magoada. D'ahi em diante, pelo menos n'aquella hora, causava-lhe tedio, e forçava-a a participar da zombaria.

Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento

Подняться наверх