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II.

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Contou-me Jorge Coelho a sua historia. Foi assim:

Sahira, pela primeira vez, da sua aldêa para cursar a universidade. A mãi, abençoando-o, ungira-o de lagrimas, e lançara-lhe ao pescoço um crucifixo.

O tio egresso, vencido na resistencia que fizera á sahida de Jorge, mostrara-se a final condescendente, e introduzira nas malas do sobrinho alguns livros de moral religiosa, que ambos sabiam de cór, um á força de repetil-os, outro de ouvil-os em discursos hebdomadarios, que principiavam sempre com a epigraphe:

Initium sapientia est timor Domini—O temor de Deus é a base do saber humano.

Jorge deu de si boa conta no primeiro, anno, cursando as aulas preparatorias para a faculdade de jurisprudencia. Contou elle que, durante esses oito mezes, apenas sentira o coração na dôr da saudade de sua mãi, de seus irmãos, do tio padre, das suas montanhas, e das sombras dos seus arvoredos. Consolava-o o prazer de uma carta de casa, todas as semanas, em que a expressão maternal pintava o anceio com que lá se contavam os dias, na esperança d'aquelle em que seus irmãos iriam buscar ao caminho o mano doutor, como elles já o denominavam.

O anjo da poesia dos dezenove annos povoava-lhe então a phantasia de ridentissimas imagens. Mezes antes, abafava no extenso horisonte, que descobria do topo das serras onde trepava para dar á sua imaginação sedenta a vaga imagem da immensidade. Agora, parecia-lhe que á sofreguidão da alma lhe bastaria a soledade, o silencio, a tristeza dôce dos saudosos ermos da aldêa, que conheciam o seu poeta desde os onze annos.

Anteviu os tres mezes de ferias como quadra de contentamentos novos. Tudo eram promessas de infantil ledice aos seus arrobos de saudade. Imaginava-se sosinho ao pé da arvore conhecida, em cujo tronco uma vez entalhára a ante-data de seis annos, com uma interrogação ao lado, e como se perguntasse o segredo do seu destino á sibylla dos seus queridos bosques.

O anno assignalado era esse em que estava. A resposta aos vagos presentimentos dos quinze annos ia dal-a agora, mais anhelante e auspiciosa de venturas certas do que elle a previra ao deixar o encargo de responder a mal-agourados futuros.

«Quão longe eu estava da verdadeira felicidade, minha querida mãi!—escrevia elle na primavera de 1855, quando as margens do Mondego reverdecidas lhe festejavam as saudades e as esperanças maviosas. A imaginação enganou-me. Cuidava eu que o coração de minha mãi faria o milagre de communicar uma faisca do seu amor ao seio de cada pessoa que eu encontrasse fóra da nossa aldêa! Pensei que a imaginada formosura da natureza começava áquem dos horisontes, que eu descobria do alto das montanhas. As impressões novas antecipavam-se-me cheias de espiritual deleite, e abundantes da vida que me lá faltava ao pé de pessoas vistas a todo o instante, com o sorrir da amisade, e ao pé das arvores, vistas em cada primavera, com as mesmas grinaldas, e em cada inverno com a mesma nudez funerea, que me confrangia o espirito.

«Castigou-me o desengano, quando dobrei a ultima collina, d'onde via o cume da serra em que tantas vezes me assentára, ideando ao longe o caminho da minha imprevista felicidade. Era tudo estranho para o meu coração. O vento do outono despia as arvores da sua folhagem; mas a poesia melancolica e contemplativa d'essa transfiguração, qual a eu sentia na minha aldêa, convertera-se agora em profundo aborrecer-me, em cerração d'espirito, em arrependimento doloroso.

«A duas leguas de nossa casa, minha boa mãi, quiz retroceder: reteve-me a vergonha. Depois de ter passado uma noite—primeira de minha vida—fóra do meu quarto, n'uma estalagem, ergui-me com proposito de vencer o pejo, e ir lançar-me chorando em seus braços. Conteve-me ainda o receio do ridiculo, palavra e sentimento terrivel, que, ha dez mezes, me foi entalhado no coração por um homem, onze annos mais velho que eu, propheta do meu destino, tão verdadeiro como terrivel propheta, que me vaticinou a sensibilidade immensa do poeta, e as lagrimas inexhauriveis do incessante desengano.

«Já verti as primeiras; essas, porém, são talvez uma puerilidade que o mundo escarneceria, por que, bem averiguada a causa da minha tristeza de seis mezes, encontra-se um bom coração de filho e irmão, a nubelosa saudade dos dezenove annos, e o pesar de haver com tanto afan rebatido o parecer de meu tio, que me quiz demover da tenção de estudar em Coimbra.

«Eu prometti-lhe, minha mãi querida, a noticia exacta das minhas impressões.—Descreve-me ao menos a bellesa dos abysmos como ella se afigurar á tua imaginação—foram as suas palavras. Não posso descrever-lhe nem, se quer, as formosas miragens do meu deserto. Se deponho com fastio os livros, que só abro por obrigação, interrogo de novo o meu espirito, tento sondar a indole mysteriosa da minha vontade oscillante, e encontro sempre enigma. Quer-me, ás vezes, parecer que estou em vesperas de uma grande transfiguração no meu modo de ser e pensar; escuto o surdo rumor das idéas, que ameaçam rebellar-se contra a moderada esperança em que minha alma se acalenta; sinto-me impellido á vereda de angustias desconhecidas, ao passo que as suspiradas alegrias da vida serena no seio de minha familia se me varrem da imaginação como as copas de flôres desmaiadas, que o nordeste sacudiu e dispersou.

«Deverei occultar-lhe alguma das minhas visões, querida mãi? Não posso. A confidencia é a respiração das almas; é, mais ainda, é a supplica do conselho e do remedio para as tribulações, ou de estimulo e fé para crer na felicidade sonhada, se ella um dia me vier provar que não eram mentira os meus delirios dos dezoito annos.

«Ha entre mim e o indecifravel do meu futuro uma imagem como elle indelineavel. Não sei a qual hora da vida acharei a sombra real d'esta idealidade, que se fez corpo e alma, impressão e sentimento para a minha phantasia. Tenho querido collocal-a ao pé de minha mãi, como reflexo do seu amor. Quando assim consigo aproximadas, tambem consigo explicar a influencia, que ha-de ter na minha vida essa imagem, descerrada a nuvem que m'a envolve pela mão luminosa da Providencia. Será a realisação do infinito amor, porque entre Deus e minha mãi falta um élo. Creio que não usurpo a minha mãi o vago affecto dedicado a essa alma estranha, que me visita nas horas de intimo recolhimento e scismadoras saudades de não sei quê, como se do céo perdido nos ficassem saudades para reconquistal-o á custa de lagrimas. Isto que sinto não póde ser, como me dizem os livros sentimentaes, os alvoroços precursores das primeiras devoções, o subir para o altar dos cultos fervorosos e apaixonados. É mais.

«Entrevejo na escuridade do porvir uma scintilla, que me banha de festiva luz o espirito, aspiro o aroma de celestial flôr, que me delicia e adormece em dôces lethargias, tenho um despertar alegre e sereno, como o do homem incapaz de ir abraçar-se á realisação de seus ambiciosos sonhos pelos caminhos travessios da improbidade e do mal-fazer.

«Assim pois, minha mãi, contente-se a sua boa alma de se vêr assim reflectida na do filho, que d'ahi sahiu agourado por tão maus prophetas. Não abordei esses abysmos seductores, que o meu bom tio excommungava de lá, e contra os quaes me premuniu com cabedal de philosophia christã, bastante para defender das tentações todas as nações da Biblia, exterminadas por causa do peccado.

«D'aqui a tres mezes, deporei no regaço de minha mãi o coração inexperiente com que de lá sahi. Dar-lh'o-hei mais rico de contentamentos puros, e desejos de ser bom filho; e, se assim não fosse, iria agora fortalecel-o em seu seio das virtudes, que ainda me faltam.»

Três mezes depois, Jorge Coelho, convidado por um seu condiscipulo das visinhanças do Porto, passou no Porto, quando recolhia a ferias, e alli se deteve, para assistir ao ultimo baile annual da Assembléa Portuense.

Jorge nunca vira um baile, nem ante-gostára pela imaginação o prazer de encontrar duzentas damas reunidas á competencia de formosura e pompas.

Dizia-lhe o condiscipulo, já gasto para as commoções dos bailes (tinha vinte e dous annos, e passára desapercebido em todos os bailes) dizia-lhe o condiscipulo que o coração nascia de improviso no primeiro baile, e muitas vezes lá morria. Contava-lhe, em testemunho de verdade, a sua historia, que era uma historia negra, passada ao clarão de centenares de lumes, nas salas da Assembléa Portuense, no baile carnavalesco do anno anterior. Com quanto nos seja sempre ingrato violentar as glandulas lacrimaes dos leitores, e sacudir-lhes com patheticas descargas electricas os nervos engelhados, não nos abstemos de contar em poucas linhas a historia negra do snr. Pires, condiscipulo de Jorge, em geographia e historia.

Parece que o snr. Pires chegára de Coimbra a ferias de entrudo, e conseguira ser convidado para o baile. Alugou um dominó de seda, entrou nos salões, e remoinhou longo tempo por entre centenares de pessoas desconhecidas. Dizia-lhe a consciencia que era um tolo, por não buscar ao acaso uma particula da felicidade, que brincava nas physionomias de toda a gente, ao passo que das d'elle apenas escorria o suor debaixo da mascara suffocante.

Deliberado a demonstrar a si proprio que não era absolutamente nescio, dirigiu-se a uma dama de aspeito melancolico, e disse-lhe «que os anjos do céo, quando cahiam cá em baixo na morada dos homens, ficavam tristes como ella.»

Ora, um maganão, tambem mascarado, que por alli gravitava em redor do mesmo astro, disse ao estudante, radioso da feliz amabilidade, «que não só aos anjos do céo acontecia ficarem tristes e atordoados quando cahiam cá em baixo, mas tambem acontecia o mesmo aos gatos, quando cahiam de um terceiro andar á rua.»

Ficou fulo de raiva Pires. A melancolica dama levou o leque ao rosto para esconder o riso.

O estudante, voltando-se para o entremettido, replicou-lhe que era de pessimo gosto a chufa, e o gosto da senhora não era de melhor quilate festejando com riso complacente tão deslavada semsaboria. Redarguiu o incognito mascarado, perguntando-lhe se tinha duvida em sahir fóra das salas para lhe estender uma orelha de modo que por ella o conhecessem todos, visto que elle tivera a habilidade de a esconder no capuz do dominó. Trocaram-se algumas finezas mais d'este tomo, até que um homem de porte grave travou do braço ao snr. Pires, e, levando-o ao salão menos frequentado, perguntou-lhe que motivos se haviam dado para desavença tão impropria de cavalheiros. Pires, querendo dar ao successo, uma causa digna de transmissão, contou que merecêra lisongeiro acolhimento da senhora com quem estava trocando as phrases previas de uma paixão, que rebentára subita e reciprocamente, quando o indiscreto e villão interventor lhe dirigira palavras descomedidas, que denotavam o ciume d'elle.

—Pois aquella senhora, a quem o dominó allude, trocava com v. s.ª as phrases previas de uma paixão?—perguntou o interlocutor do estudante com sorriso de affectada serenidade.

—Sim, senhor, respondeu o outro emproando-se.

—Antes de dizer-lhe que mente, preciso vêr-lhe a cara.

Dito isto, o sujeito, que era o marido da dama, arrancou a mascara ao snr. Pires; e, vendo um rosto imberbe, e acerejado, chamou o escudeiro, que passava com bandeja de dôces, e disse-lhe: «Dê a este menino dous bolinhos, e mande-o embora.»

Eis aqui a historia negregada do snr. Pires, a qual, contada por elle, era muito mais dramatica e engraçada, visto que terminava por dous duellos mallogrados, um com o rival, outro com o marido, e por tres desmaios da dama, um no salão, outro na carruagem, e o ultimo em casa, na presença do marido, que, pelos modos, a quizera enforcar.

E, como as lagrimas d'este acerbo conflicto cahiram todas no coração do snr. Pires, o resultado foi afogarem-se lá os embriões da sua felicidade, e ficar aquella viscera árida e resequida como enxundia secca de gallinha.

Ouvira Jorge Coelho estas calamidades com a respiração suffocada, e teve instantes em que duvidou do bom siso do seu amigo;—tão descozido lhe parecêra o conto, e tão ineptas as consequencias.

Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento

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