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IV.

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Estava Jorge, outra vez, defronte das duas senhoras. Sentia-se outro. Já tinha interiormente um mundo, uma imagem reflexa do mundo exterior a remuneral-o vantajosamente da insulação em que se via no meio de tantos indifferentes á sua tristesa. A todo homem esta mutação tem acontecido, uma vez na vida. O baile é triste para quem leva da soledade do seu quarto o coração de lucto; porém, áquelle mesmo conforta, ás vezes, uma chimera, lá onde menos a esperança lh'a promettia. Chimeras são que desbotam, como as flôres dos enfeites, ao repontar da manhã; mas Deus sabe quantas almas se retemperam nas illusões de um baile, e que horas de abençoado engano lá divertem as tristesas dos mais desenganados!

Não era assim que Jorge Coelho scismava comsigo—que a aurora do seu breve dia de fé e amor principiava alli—quando o amigo Pires, lançando-lhe o braço em redor do pescoço, lhe disse:

—Que fazes aqui parado? Contemplas aquellas duas Evas, mal assombradas de gesto, como se tivessem comido a fatal maçã?

—Contemplo uma, e acho-a celestialmente formosa.

—A côr de cêra?

—Sim.

—Eu gosto mais da morena. Nigra sum sed formosa. Aquillo sim que é mulher para incommodar a fleuma d'um sceptico!... Queres ser apresentado?

—Pois tu conheces?

—Não, nem preciso. Vou tiral-a para a primeira quadrilha, apresento-me, e depois tenho a honra de ser o teu apresentante. O estilo, cá na boa roda, é este.

—Mas a quem me has-de tu apresentar? é necessario, a meu vêr, que ella te diga quem é.

—Pois não lh'o pergunto eu?! Essa reflexão é piegas. Se queres ouvir o que eu digo, colloca-te ao pé de nós, e escuta-me nos intervallos das marcas.

O snr. Pires não reconsiderava uma tolice, nem tolerava replicas.

D. Silvina, vendo um sujeito conversar com Jorge, olhou-o curiosamente, para, se acaso visse pessoa de suas relações com elle, podesse, de conhecido em conhecido, chegar a colher alguma informação do seu mysterioso observador. Mais propicia do que ella ambicionava, lhe foi ao encontro a fortuna protectora de sua innocente curiosidade. Pires, com elegante desembaraço, solicitou de Silvina uma contradança: esta, com adoravel aprazimento, aceitou logo o braço do cavalheiro porque se estavam alinhando os pares.

Aqui, porém, falhou uma vez a felicidade a um tolo. Esquecera-se Pires de procurar vis-á-vis, e era já fóra de tempo o procural-o. A dama deu primeiro pela falta, e o academico fez-se da côr do rabano. Silvina relanceou os olhos supplicantes a D. Francisca, e esta, chamando o primeiro cavalheiro conhecido, deu-lhe o braço, e entrou no lugar fronteiro á prima.

—Esta falta, disse Pires, retesando no pulso a luva até a rasgar, deve-se ao enthusiasmo com que eu pedia a v. exc.ª esta contradança.

—Enthusiasmo?! Ora!... parece-me que queria dizer distracção, respondeu Silvina ao adiantar-se para executar a primeira figura.

Chegado o grande intervallo, Jorge Coelho quizera ir postar-se perto de Silvina; mas um burguez intolerante, zangado da pertinacia do moço, que envidava os recursos todos da delicadesa e do encontrão para romper a barra compacta dos olheiros de espadoas nuas, chegou a dizer-lhe, franzindo a testa:«O senhor não cabe? se quer passar espere que acabe a polka!» O bom do burguez não sabia ao certo se era contradança ou polka o que se estava dançando.

No entanto, o nosso amigo Pires, com quanto pesaroso de que Jorge alli não estivesse, para maravilhar-se dos recursos da eloquencia afeita ás difficuldades do salão, conversava assim com a senhora attenciosa:

—Quando tive a honra de impetrar de v. exc.ª a graça d'uma contradança... (Silvina poz o leque diante dos labios) acabava eu de dizer a um amigo meu que o olhar contemplativo, la réverie, com que elle fitava v. exc.ª, era merecida, justificada, e...

—Muito agradecida;—atalhou Silvina, tregeitando com o leque e a cabeça uma evolução de movimentos indescriptiveis—mas eu não reparei bem no amigo de v. s.ª, que me distinguia de modo tão lisongeiro.

—Se v. exc.ª tem a bondade de olhar em frente, ha-de encontral-o extasiado...

—Extasiado?! Ora isto parece-me que vai passando da lisonja á galhofa!

—Oh! minha senhora... Isso offende-me e punge-me, acudiu Pires com o mais comico azedume.

Silvina relanceára a vista como quem não via, e voltando-se para o cavalheiro, disse:

—É do Porto aquelle senhor?

—É da provincia, minha senhora, estudante de Coimbra, meu condiscipulo, chama-se Jorge Coelho, pertence a nobilissima familia, e assevero a v. exc.ª que é um coração virginal, intacto, fervoroso, sentindo hoje pela primeira vez os impetos juvenis do amor.

—Não admiro, porque é muito novo.

—Muito novo! oh! minha senhora! Quantos velhos n'aquella idade! Aqui estou eu, de pouca mais idade que elle, e me considero já desillusioné, decrepito.

—Realmente?!... Perdoe-me a curiosidade—disse Silvina, com muita graça de fina ironia, sustentada com imperturbavel seriedade.—Queira dizer-me em que romance poderei encontrar o seu caracter, já que não devo esperar uma revelação das tempestades que o fizeram tão cedo naufragar!

—O meu caracter ainda não está escripto!—respondeu Pires, avincando a testa, e fitando-a de esguelha.

N'este comenos entraram os pares latentes em movimento, e a phrase ficou engasgada até ao proximo intervallo. Enganou-se, porém, o sceptico. Silvina, como esquecida da suspensão da lugubre narrativa, perguntou ao cavalheiro:

—O seu amigo demora-se no Porto?

—Não são essas as intenções d'elle, minha senhora; mas é de presumir que um aceno de v. exc.ª o faça esquecer a familia carinhosa que o está esperando.

—V. s.ª depois que envelheceu—replicou Silvina cortando as palavras com frouxos de estudado riso—julgou salutar cousa o distrahir-se da sua gotta moral zombando das pessoas que ainda crêem e esperam alguma cousa d'esta vida?!

Acudiu Pires:

—Eu que digo isto é porque sei o que v. exc.ª é para Jorge. Respondo gravemente ás suas facecias adoraveis. Sei que as virtudes de v. exc.ª...

—V. s.ª conhece-me? perguntou Silvina de golpe, e formalisada.

—Não tenho essa honra, minha senhora.

—Quem lhe disse que ha em mim virtudes?

—Rosto angelico e véo translucido: homem experimentado adivinha o coração do anjo.

Pires ia dizer mais quatro aforismos do seu uso, quando terminou a contradança. Conduziu a dama á sua cadeira, e disse-lhe:

—Eu queria ter a felicidade de apresentar a v. exc.ª o meu amigo Jorge Coelho; porém, rogo-lhe me diga se devo procurar alguem que me apresente a v. exc.ª

—Não tenha esse incommodo. Fico sabendo que v. s.ª é um cavalheiro da boa sociedade, e tanto basta. Sei tambem que é academico, e sympathiso com essa qualidade porque tenho em Coimbra dous irmãos no seminario, e não sei que analogias me fazem presar os estudantes.

—Direi mais, acrescentou o academico, enclavinhando os dedos para ajustar as luvas, e tirando pelas lapelas da casaca a puxões de gentil effeito—direi mais a v. exc.ª que me chamo Leonardo de Sousa Pires e Albuquerque, a minha casa é na Maya, e costumo passar as ferias no Porto, porque sou avesso á vida pastoril, e não tenho senão mediocres tendencias para admirar a natureza bruta...

—Não é poeta?—interrompeu Silvina, ageitando o lindo rosto a um ar de zombeteira admiração.

Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento

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