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VII

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Frei Januario, dormida a sua regalada sésta, dispoz-se a fazer horas para a ceia, indo communicar ao fidalgo a grande nova das disposições de espirito, suspeitas e subversivas, em que encontrou o filho mais velho.

Ainda D. Luiz meditava nas mudanças que ia soffrer o regimen economico da casa e nas mais ou menos provaveis consequencias d'ellas, quando a voz fanhosa do padre procurador se fez ouvir á porta, articulando o costumado—licet?—E sem esperar resposta o padre frei Januario foi entrando.

—Ainda ás escuras, snr. D. Luiz?!

—Nem sempre temos para nos alumiar luzes tão bellas como esta; respondeu o fidalgo, designando o luar que já lhe inundava o quarto.

—Quer não; isto de luar não é lá das melhores coisas e depois o ar da noite…

—A noite está que parece de maio.

—Sim? mas sempre os vapores dos campos… Eu acho mais prudente accender luz e fechar as janellas.

—Não me opponho, frei Januario, até porque temos que fallar.

—Sim? Tambem tenho que communicar a v. exc.ª

—Pois, muito bem. Vamos a isso.

Fecharam-se as janellas, vieram as luzes e dispoz-se tudo para a conferencia.

D. Luiz exigiu que frei Januario fallasse primeiro.

—Visto isso, principiarei, e o que sinto é que seja para dar a v. exc.ª noticias assustadoras—preludiou o egresso.

—Assustadoras! Que é a final? Alguma insolente exigencia de credor.

—Nada, nada; a coisa é outra. Tracta-se do filho de v. exc.ª

—De Mauricio? Que fez elle?

—Não, senhor; não é do snr. D. Mauricio, que eu fallo.

—Então? É de Jorge?

—Justamente. Eu conto a v. exc.ª

E frei Januario principiou a expôr ao fidalgo os pormenores da discussão que tivera com Jorge ao jantar e a commental-a com reflexões proprias. Horas antes, esta communicação teria talvez produzido o effeito estupendo, que o egresso calculára; mas a prévia entrevista de D. Luiz com os filhos tirára toda a importancia á revelação. D. Luiz apenas franziu o sobrolho á parte mais demagogica das doutrinas do filho, mas esse mesmo signal de desgosto foi passageiro, e quando o procurador acabou a sua estirada confidencia, em vez da indignação e do espanto, com que esperava vêl-a acolhida, apenas escutou estas simples palavras, pronunciadas com a maior fleugma:

—E então que pensa d'isso, frei Januario?

Lá de si para si o padre replicou á pergunta com a sua expressão favorita de desapontamento—Lérias!—mas em voz alta não foi tão expressivo, e respondeu em phrase mais parlamentar:

—O que penso? Que hei de eu pensar? E v. exc.ª o que pensa? Eu por mim penso que anda aqui febre liberal; o veneno já está no sangue. Tão certo! Aquillo dá logo signal de si. Em elles principiando a cantar-me ladainhas a S. Trabalho, eu digo logo com os meus botões: «Pois sim, sim, estás arranjadinho.» O snr. D. Jorge conversou por ahi com algum mação. Quem sabe? Alguns d'esses engenheiros que estão na estalagem do Manco. Isto de engenheiros é gente que se não confessa; ou então são coisas do hortelão, que eu não seja quem sou se ainda não ha de dar que fallar n'esta casa; mas o certo é que lhe metteram na cabeça essas caraminholas e se v. exc.ª não olha por isso, eu lhe protesto que dão com o rapaz mação, o que é uma pena, porque é um bom rapazinho. Mas quando elles me vem com as nobrezas do trabalho aos contos, torço-lhe logo o nariz.

—Parece-me que d'esta vez são sem fundamento os seus receios, frei Januario. A final, pondo de parte alguma expressão menos sensata, e que o verdor dos annos desculpa, as ideias do rapaz são razoaveis.

—Razoaveis?

—Pois porque não? Que quer elle? Occupar em alguma coisa o tempo, que perde na ociosidade. Está cançado da vida de rapaz. É natural e é louvavel. E em que quer elle empregal-o? No que ámanhã será constrangido a fazer, com peior resultado; no que eu devêra ter feito na idade d'elle; em trabalhar, em gerir os bens da sua casa. Mais vale então que principie já, frei Januario, sob a guia dos seus conselhos, do que tarde, ás cegas e sem uma pessoa de confiança a encaminhal-o.

—Pois é verdade, mas…

—Elle fallou-me n'isso ha pouco.

—Ah! pois sempre fez o que disse?!

—Fez, sim, e fez bem. Achei que o rapaz tinha pensado maduramente no caso e dei-lhe a permissão que elle pediu. Era até o que eu tinha para dizer-lhe.

—Então, visto isso, de hoje em diante?…

—De hoje em diante, Jorge se entenderá comsigo. O frei Januario precisa de descançar tambem.

—Eu ainda não estou cançado—resmungou o padre.

—Espero que dará a meu filho todos os esclarecimentos de que elle precise e todos os conselhos da sua muita experiencia.

—Não seja essa a duvida; mas, na verdade…

O relogio do corredor, batendo nove horas, cortou inesperadamente a phrase ao egresso.

Pelos modos a ceia ia tardando.

—Com licença—disse elle, levantando-se—eu vou vêr como correm as coisas na cozinha.

Mas nos corredores murmurava comsigo, em tom aforismatico:

—Não tem que vêr. Filho mação, pae idiota… casa perdida.

Como frei Januario suspeitasse que ia encontrar o cozinheiro menos attento no desempenho dos seus gravissimos deveres, dirigiu-se, pé ante pé, á cozinha, a fim de surprendêl-o em flagrante.

Ao avisinhar-se deu-lhe maior rebate ás suspeitas um acalorado travar de vozes, que de lá vinha.

Espreitou. A criadagem estava em congresso; orava o hortelão, o inimigo irreconciliavel do padre; escutavam-n'o os outros boquiabertos, e mais attento do que nenhum, o cozinheiro, que sentado em um banco baixo, com uma perna atravessada sobre a outra e as mãos a segurarem o joelho, nem ouvia o chiar das caçarolas, nem se lembrava da ceia.

O padre fumou com a descoberta.

O hortelão dizia:

—Foi então que o imperador… oh aquillo é que era um homem!… foi então que elle fez aquella falla que lá está toda na memoria do Mindello, que foi onde nós desembarcamos, no dia 8 de julho de 1832, alli pela tardinha.

E o hortelão, tomando uns ares solemnes e endireitando o corpo, começou recitando oratoriamente:

—«Soldados! Aquellas praias são as do malfadado Portugal; alli, vossos paes, mães, filhos, esposas, parentes e amigos, suspiram pela vossa vinda e confiam…

Era demais para a magnanimidade de frei Januario. A proclamação de D. Pedro desafinava-lhe os nervos, sempre que a ouvia; o que não era poucas vezes, graças ao enthusiasmo do hortelão. Cedendo pois ao seu animo indignado, o padre rompeu pela cozinha dentro, exclamando:

—Então que pouca vergonha é esta? O fidalgo á espera da ceia, e esta sucia de mandriões aqui postos a ouvir as patranhas d'aquelle senhor!

Os criados surprendidos ergueram-se em alvoroço e tomaram os seus postos. O hortelão reagiu, como era seu costume.

—Patranhas? Isso lá mais de vagar. Isto vi e ouvi eu, como o vejo e ouço a vocemecê, e muito me honro em dizêl-o. Patranhas! Quem quizer, póde lêr tudo isso nas gazêtas e muitas coisas mais. Eu fui soldado do imperador e…

—Está bom, está bom: pouco fallatorio. Você o que é, é hortelão; e o logar dos hortelões não é na cozinha.

—Lá se vamos a isso, tambem o do capellão não é ao pé das panellas, e comtudo vocemecê póde dizer-se que não tem outro posto, onde esteja mais firme.

—Tenha cuidado com a lingua; olhe que um dia a paciencia esgota-se e depois não se queixe.

—Não se metta o snr. padre commigo, se não quer ouvir. Olhe que eu fui soldado, e não é um frade que me leva a melhor. A vontade que elles nos teem sei eu, que ainda me lembra de ver arder por os quatro cantos o convento de S. Francisco, na noite de 24 para 25 de julho, e por pouco que não morriam queimados todos os meus camaradas de caçadores 5. Hein? que diz vocemecê áquella caridade?

—Você não se quer calar? Eu direi ao snr. D. Luiz as conversas que você tem aqui na cozinha e a maneira por que falla da religião e da igreja.

—Quem fallou em tal? Eu em quem fallo é nos frades, que é coisa differente.

A desavença terminou com a subita sahida do padre, que perdia as estribeiras n'estas luctas. A criadagem ficou rindo d'elle pelas costas, e o hortelão passou a contar por miudo como tinha sido o caso do incendio do convento dos Franciscanos.

O padre, na presença do fidalgo, encetou a sua millionesima queixa contra o jardineiro, e acabou por dar o millionesimo conselho da sua immediata demissão. O fidalgo ouviu-o pela millionesima vez com o silencio do costume.

D'ahi a momentos estava o procurador aplacado…, porque ceiava.

Á ceia assistia o fidalgo e os seus dois filhos.

Ninguem fallou durante a refeição nocturna. O padre estava amuado, D. Luiz pensativo, Jorge e Mauricio trocando olhares de intelligencia sobre o aspecto carrancudo do padre.

Ao erguer-se da mesa, D. Luiz disse para o filho mais velho:

—O snr. frei Januario já está informado do que hoje se combinou. Ámanhã elle que tenha a bondade de te dar os conselhos precisos.

E depois de uma sêca «boa noite», D. Luiz sahiu da sala.

Os filhos levantaram-se para tambem se retirarem.

Jorge interrogou o padre:

—A que horas quer que o procure ámanhã, snr. frei Januario?

—A que horas?… Ah!… sim… isso… eu sei?… A coisa não é de pressa… Se não fôr ámanhã…

—Ha de ser ámanhã—atalhou Jorge.

—Ha de ser! Essa é boa! Sabe lá da minha vida? Ha de ser! Tem graça.

—Não lhe tirarei muito tempo. Socegue. Quero só que me passe os livros e os papeis.

—Os livros!… e os papeis… Mas para que?

—Porque d'ámanhã em diante tomo conta d'elles.

—Eu não me entendo com criancices. Na verdade o snr. D. Luiz fez-me o que eu nunca esperei d'elle. É bem custoso receber tal paga no fim de tantos annos de serviço! E então que patetices! Attender aos caprichos de uma criança em coisas tão sérias como estas! E sabe que mais, snr. Jorge? Eu não tenho vagar nem paciencia para me pôr agora a ensinar meninos.

Mauricio ia a responder, talvez com aspereza, mas Jorge atalhou-o, dizendo:

—Mas quem lhe falla em ensinar? Quem lhe pede lição ou conselho?

—Então para que me procura ámanhã?

—Para que me dê os livros e mais documentos relativos á gerencia da casa, e me preste os esclarecimentos que eu lhe pedir. Não são perguntas de discipulo…

—Percebo o que quer dizer na sua, são de juiz.

—Não. Quem o suppõe réo? Não, senhor. É apenas uma curta conferencia, como o trocar da senha entre a guarda que se rende.

—Então o snr. Jorge está seriamente resolvido a tomar conta d'isto?

—Muito sériamente.

—Sim, senhores. Ha de ser bonito! Mas isto é até um caso de consciencia, e eu não sei se devo…

—Aplaque os seus escrupulos, frei Januario. A responsabilidade de um procurador expira no dia em que a procuração lhe é retirada pelo constituinte. Até ámanhã. Não se esqueça de me apresentar todos os livros da sua escripturação.

—E elle ahi torna! Ora que scisma! Eu sei lá de livros e de escripturação, homem? É boa! Isto não é nenhum armazem.

—Então geria de cabeça, frei Januario?—perguntou Mauricio, rindo.

—Geria, como entendia. Tomo os apontamentos precisos, mas lá de parlapatices e espalhafatos é que nunca fui.

—Bem; ámanhã examinaremos esses apontamentos; boa noite, frei

Januario—concluiu Jorge.

—Snr. frei Januario, muito boa noite—secundou zombeteiramente

Mauricio.

—Ide com nossa Senhora—murmurou o padre irritado.

Os dois rapazes sahiram, rindo dos amuos do egresso.

Este ficou só, e encetando um habitual complemento da sua substanciosa ceia, ia resmungando:

—Forte pancada a d'esta gente! Olhem agora o criançola… E como elle falla?! Parece já um senhor que todo lo manda! Os livros! Era o que me faltava! era ter livros para assentar contas com rendeiros e dividas da casa. Bem digo eu! Mas deixa estar que eu curo-o da mania de metter o nariz n'estas coisas. Dou-lhe uma esfrega ámanhã. Em elle vendo como a casa está embrulhada, perde logo o furor com que está de a administrar. Sempre lhe hei de fazer uma tal barafunda de papelada, que o rapazinho ha de ir dizer ao papá que não quer saber de contas. Ora deixa estar! Muito me hei de rir. Quando elle principiar a vêr o sarilho, em que isto tudo está mettido, que nem eu sei já como sahir d'elle, então é que ha de dar vivas, e gritar «aqui d'el-rei.» Ora deixa estar.

E o padre ria, ria de boa feição, ao pensar no logro que havia de pregar a Jorge, ria e comia o bom do homem, que era um gosto vêl-o.

Depois foi deitar-se, e o somno de uma certa classe de bemaventurados baixou-lhe sobre as palpebras, suave e restaurador.

Jorge não dormiu, como o padre; velou até alta noite, lendo, calculando, combinando planos economicos. Mauricio tambem dormiu pouco; pensou igualmente no futuro, na revolução que ia operar-se na sua vida, mas de um modo vago, sem ter ainda um plano formado, nem trabalhar para isso. As mais variadas e brilhantes imagens passavam-lhe pela phantasia, sem que se fixasse uma só d'ellas. Era um succeder de ideias tão rapido, que parecia estonteal-o, como o illusorio movimento das margens perturba o viajante novel arrebatado no convez velocissimo d'um barco a vapor.

No dia seguinte teve logar a solemne conferencia do padre e de Jorge.

Frei Januario tentou realisar a traça que com applauso proprio delineára na vespera. Desdobrou em cima da mesa toda a papelada, amontuou, sem classificação nem escolha, procurações, recibos, contas, contractos de arrendamento, titulos de propriedades, escriptos de quitação com a fazenda, e outros varios documentos, com intuito de assoberbar a inexperiencia de Jorge e castigar-lhe as aspirações ambiciosas.

Depois de ter assim patenteado aquelle cahos aos olhos do seu proposto successor, o padre, encostando os braços á banca, apoiou o queixo entre as mãos, posição em que a bôca repuxada lhe tomava um geito de caricatura eminentemente comico, e ficou á espera do resultado das suas manhas com um sorriso de malicia e triumpho.

Jorge porém não desanimou. Com um rapido lançar de olhos julgava da importancia dos papeis, que successivamente examinava, e assim os punha de lado para segundo exame ou os guardava como vistos.

Dentro em pouco tempo entrou a ordem no cahos, e Jorge passou a mais minuciosa revista.

Frei Januario já se sentia um tanto incommodado com o andamento que ia vendo ás coisas, e insensivelmente foi tomando uma posição mais discreta e fugiu-lhe do rosto o ar malicioso com que até alli observára Jorge.

O peior não tinha principiado ainda.

Jorge acompanhou o segundo exame, a que procedeu sobre os papeis de importancia, de uma serie de perguntas, que embaraçaram sobre maneira o padre. Reconheceu então que o filho de D. Luiz não era a criança que elle suppozera, que via mais claro n'aquelles negocios do que elle proprio, com toda a sua experiencia, e que a conferencia, na qual esperava dar uma memoranda lição ao impertinente discipulo, podia muito bem terminar com notavel desvantagem do mestre.

Ao principio do fogo cerrado de questões e objecções, o padre tentou entrincheirar-se atraz de evasivas, tractando o caso jovialmente, mas teve de abandonar essa tactica, diante do tom e aspecto de seriedade varonil, com que Jorge lhe insinuou:

—Snr. frei Januario, eu não vim aqui para brincar, nem o assumpto da nossa conversação é digno d'essas jovialidades. Sou um dos futuros herdeiros d'esta casa e quero saber como ella tem sido administrada até agora.

O padre experimentou a arma da dignidade offendida.

—Então quer dizer que desconfia de mim?… e instaura-me um processo?

—Peço-lhe por favor que não venha com isso outra vez. Ninguem o accusa, já lh'o disse. Peco-lhe só esclarecimentos sobre o passado, para poder caminhar para diante.

Frei Januario acabou por se convencer de que não havia fugir á sabbatina. Não lhe foi suave tarefa aquella.

Jorge pela primeira vez lhe fazia vêr os erros de officio que elle commettêra, a imprudencia com que dirigira certos negocios, o desleixo em que deixára outros, a illegalidade de certos actos, os riscos em que puzera parte dos bens da casa. O padre suava, torcia-se, esfregava a testa, entrava em explicações confusas d'onde com muito custo sahia, titubiava, gemia, protestava, limpava os oculos, chamava em seu auxilio céos e terra; mas tudo era inutil poeira de encontro á paciencia e fleugma com que Jorge o interrogava ou lhe fazia qualquer observação que, sem ser formulada como censura, feria no vivo a susceptibilidade do padre. Em uma palavra, o resultado da conferencia foi exactamente o opposto ao que frei Januario prognosticára. Quem d'elle sahiu atordoado, desgostoso e disposto devéras a não querer saber mais da administração da casa, foi o padre e não o rapaz.

Frei Januario viu com espanto esboroar-se o edificio da sua experiencia, em cuja solidez elle proprio tinha a ingenuidade de acreditar, ao simples sôpro de uma criança. A impressão que lhe ficou d'este apertado inquerito foi tal, que o pobre homem passou a sentir um entranhado mêdo de Jorge, e a empallidecer só com a lembrança de uma scena como aquella.

Sempre que Jorge lhe dirigia a palavra d'ahi por diante, já o padre previa com terror uma interpellação e ficava nervoso! Muito mais se D. Luiz estivesse presente.

Assim pois, graças a estes mêdos, frei Januario em vez de tornar-se vigilante em relação aos actos de Jorge, tractou de evital-o tanto, quanto podia.

O desgraçado persuadira-se de que tinha commettido tantas faltas na sua administração, que o seu desejo era vêr passar já sobre ellas muitos annos para desvanecer-lhes os vestigios.

Jorge ficou pois completamente á vontade. D. Luiz, interrogando o capellão, ouvira d'elle que Jorge estava habilitadissimo para administrar a sua casa. Foi quanto bastou ao fidalgo para confiar cegamente no filho e para annuir sem exame a todos os seus projectos, como por tantos annos fizera aos do padre.

Portanto, sem desconfiança de pessoa alguma, pôde Jorge combinar com Thomé, em entrevistas nocturnas na Herdade, o seu plano de administração. Thomé era n'estas coisas um prudente e avisado conselheiro. Estudaram ambos a maneira de remediar muitas faltas commettidas, entraram em correspondencia com o advogado do fazendeiro, por causa de uma velha e importante demanda da casa; Jorge visitou todas as suas terras, celebrou novos e mais vantajosos arrendamentos sempre que pôde, e para estes primeiros actos levantou em segredo parte do emprestimo agenciado por meio do capital e do credito de Thomé da Povoa.

Causou espanto na terra a revolução administrativa da Casa Mourisca. Os que mantinham vistas interesseiras sobre os bens do fidalgo e que, movidos por ellas entravam em transacções com a casa, conceberam ao principio lisongeiras esperanças, vendo que tinham a tractar com um moço inexperiente. Cêdo porém se desenganaram, encontrando-o sempre cauteloso e perspicaz, graças á intelligencia propria e aos conselhos do previdente Thomé, que entrava em tudo sem ser visto nem suspeitado sequer.

As entrevistas de Jorge e do fazendeiro tinham sempre logar de noite, como já dissemos.

Jorge sahia de casa quando já todos dormiam menos Mauricio, unico que se recolhia ainda mais tarde e que nem sequer sabia das sortidas do irmão.

Thomé da Povoa esperava-o na Herdade, onde o rapaz entrava com o mesmo mysterio, e ás vezes prolongavam-se até altas horas estes conciliabulos economicos.

N'elles, ambos aprendiam. Thomé abria a Jorge os thesoiros da sua muita experiencia, e esclarecia-o com os conselhos dictados por um são juizo e uma natural lucidez. Jorge, que já enriquecêra a sua bibliotheca de novos livros e de periodicos de agricultura e de economia rural, fallava a Thomé dos progressos e melhoramentos agricolas dos paizes estrangeiros, e eram para vêr a attenção e o enthusiasmo com que o lavrador o escutava. Com o animo arrojado e despido do cego e supersticioso amor pelas praticas velhas, Thomé tomava nota de muitas d'essas innovações, para as experimentar, praticando-as nas suas proprias terras. Que bellos e grandiosos projectos de futura realisação não planeavam elles, inspirados das maravilhas obtidas pela agricultura nos paizes mais adiantados, onde é exercida por homens intelligentes e instruidos!

Passado pouco tempo Jorge gozava já na aldeia de uma fama de fino administrador, que lhe grangeou os respeitos de todos os habitantes.

Para esta boa fama concorreu uma circumstancia preparada ainda pelos ressentimentos de frei Januario.

Depois de destituido, e ainda para mais derrotado pelo estreito inquerito de Jorge, e antes que conseguisse dominar completamente o seu despeito, tentára o padre levantar ao rapaz uma nova difficuldade.

Com esse intento convocou um dia todos os criados da casa e da lavoura, que viviam das soldadas do fidalgo, ou melhor na esperança d'ellas, e depois de os ter juntos, deu-lhes velhacamente a noticia de que, tendo sido dispensado pelo snr. D. Luiz de continuar a gerir os negocios da casa, não era d'ahi por diante responsavel pelo pagamento das soldadas atrazadas nem das futuras; que esses negocios estavam agora ao cargo do snr. D. Jorge e que se entendessem com elle, por quanto da sua parte lavava as mãos de tudo.

A estas palavras, levantou-se murmuração entre alguns criados, que não tinham grande confiança no novo gerente e que reclamavam do padre o pagamento das soldadas vencidas, dizendo que era elle o responsavel por esses pagamentos, visto serem do tempo da sua administração.

—Não quero saber de contos—insistia o padre.—Por feliz me dou eu em me terem tirado dos hombros esta canceira. Os outros que se avenham como puderem.

A celeuma continuava, apesar da contrariedade do hortelão, que declarou que pela sua parte estava satisfeito com a mudança, porque o snr. Jorge era um rapaz de juizo e de brios, e, melhor do que ninguem, homem para cumprir a sua palavra.

Estavam as coisas n'estes termos, quando um facto imprevisto as modificou.

Foi o apparecimento de Jorge.

A scena passára-se em uma sala contigua á do cartorio da casa, onde desde pela manhã Jorge se encerrára a examinar uns papeis de importancia. O padre suppunha-o fóra, e por isso promovêra aquella reunião, prestes a tornar-se tumultuosa. Assim pôde Jorge ouvir tudo.

Percebeu a necessidade de fazer cessar aquella scena escandalosa, e terminal-a airosamente, embora á custa de algum sacrificio. N'esta resolução levantou-se e abriu de par em par a porta pela qual communicavam as duas salas.

Assim que o viram, os criados emmudeceram. O padre julgou-se perdido.

Jorge dirigiu-se placidamente áquelles.

—Quando o snr. frei Januario lhes disse que me procurassem para serem pagos do que se lhes deve, era melhor que o fizessem logo, e não levantassem esse clamôr proprio de uma feira. Entrem, que eu aqui estou para lhes fazer contas.

E a um gesto imperioso de Jorge, os criados entraram timidos no gabinete, occultando-se uns com os outros.

—Entre tambem, frei Januario—disse Jorge ao padre, que procurava retirar-se sorrateiramente da sala.

O padre teve de obedecer, a seu pesar.

Jorge sentou-se á mesa e principiou a interrogar os criados, um por um, sobre a quantia que se lhes devia, e pagando-lh'a integralmente, depois de obtida a informação.

Assim os correu e satisfez a todos, á excepção do hortelão, que o estava a observar calado e com os olhos humidos.

Jorge voltou-se para elle e disse-lhe:

—Estou que te fazia offensa, se te pagasse ao mesmo tempo que a estes desconfiados. Tu és dos que esperam com esta garantia.

E estendeu-lhe a mão francamente aberta.

O hortelão quasi se precipitou para ella e apertou-a commovido nas suas.

—Ó snr. Jorge! A maior paga que me póde dar é… não me pagar nunca.

Movidos por esta scena, os outros criados vieram depositar na mesa outra vez o dinheiro recebido.

—Lá por isso… nós tambem esperamos…

Jorge restituiu-lhes o dinheiro.

—Não é necessario… Levem-n'o.

E depois acrescentou:

—As circumstancias actuaes da nossa casa obrigam-nos a fazer mudanças no serviço. Temos de reduzir o numero dos criados de dentro e augmentar os de lavoura. Por isso, vossês quatro, Francisco, Lourenço, Pedro e Romão, podem procurar outra casa. Para nos servir bastam os outros dois. Vossês, os de lavoura, ficam, se quizerem, e se tiverem parentes que pretendam empregar-se aqui no mesmo serviço, mandem-nos ter commigo. E agora podem ir.

O tom em que foram ditas estas palavras excluia qualquer observação.

Sahiram todos.

—Frei Januario—acrescentou Jorge, dirigindo-se ao padre, que estava meio aparvalhado—podia fazer-me saber mais delicadamente esta divida de casa. Apesar d'isso agradeço-lhe o ensejo que me deu de a pagar!

O padre resmungou não sei o quê, e sahiu cada vez com mais medo de

Jorge.

—Onde foi o diabo buscar já tanto dinheiro?—pensava elle.—Não póde deixar de ser da maçonaria.

O hortelão ficou só com Jorge.

O pobre homem estava enthusiasmado com a honrosa distincção que recebêra, e para manifestar o seu enthusiasmo passou a contar a Jorge como é que se tinha dado o ataque do monte das Antas.

Esta scena, divulgada em pouco tempo, concorreu, como dissemos, para augmentar os creditos de Jorge em toda a aldeia.

Os fidalgos da Casa Mourisca

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