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IV

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Em uma das espaçosas salas da Casa Mourisca, alumiada por tres rasgadas janellas ogivaes e mobilada ainda com certa opulencia, vestigios do esplendor passado, esperavam a hora de jantar o velho fidalgo e o seu capellão-procurador frei Januario dos Anjos.

Não foi rigoroso o emprego no plural do verbo da ultima oração.

Frei Januario era quem esperava, porque essa era tambem a principal occupação dos seus dias. Os gozos do paladar mal lhe compensavam as amarguras d'estas longas expectações. Eram ellas talvez que não o deixavam medrar na proporção dos alimentos consumidos, porque frei Januario era magro. O mysterio physiologico d'esta magreza ainda não era para se devassar de prompto.

D. Luiz lia as folhas absolutistas, que lhe mandavam da capital e do Porto, e dava assim em alimento ao seu odio contra as instituições liberaes um dos fructos mais saborosos d'ellas—a liberdade de imprensa—; fructo, em que os seus correligionarios mordem com demasiada complacencia, apesar de ser para elles fructo prohibido.

De quando em quando D. Luiz interrompia a leitura com uma phrase de approvação ao artigo que lia ou de censura a qualquer medida promovida pelo governo, que nunca tinha razão.

Frei Januario secundava, com toda a força do seu obscuro credo politico, as reflexões de s. exc.ª, e requintava na intensidade dos anathemas, com que eram fulminados os homens da época.

Mas, solta a phrase que o caso pedia, e as competentes exclamações, voltava o padre a consultar o relogio, a abrir a bôca, a suspirar; dava dois ou tres passeios na sala e terminava por ir inspeccionar a cozinha. Os intervallos das refeições eram para elle seculos!

—Humh!—disse D. Luiz n'aquella manhã, poisando a folha, como enojado com o que lêra—Lá foi concedido um subsidio para a construcção do lanço de estrada de Valle-escuro!

—Fartos sejam elles de estradas!—acudiu logo frei Januario—Para esta gente a moralidade e a ventura de um paiz consiste em ter estradas e diligencias, e acabou-se. Olhem lá se elles levantam sequer uma igreja? Isso sim! O dinheiro do clero sabem elles roubar! E que pena não terão por não deitarem a baixo os templos que por ahi ainda ha! Mas atraz do tempo tempo vem. Vontade não lhes falta.

Não sei se foi esta ultima phrase que recordou ao padre que tambem a elle não faltava vontade… de comer. O certo é que, mudando de tom, acrescentou:

—Querem vêr que o Bernardino se esqueceu hoje do jantar? Isto são quasi duas horas, e eu não ouço tugir nem mugir na cozinha! Nada, aqui anda coisa. Com licença, eu vou vêr e volto já.

E frei Januario sahiu da sala para ir pela vigesima vez á cozinha, que elle suspeitava abandonada pela incuria do cozinheiro, estando pois a familia toda ameaçada com a tremenda catastrophe d'uma retardação do jantar.

D. Luiz pegou de novo nas folhas e deixou-se ficar lendo até á volta do padre, que entrou indignado.

—Eu que dizia?! Posto á taramela com o hortelão, sem se lembrar do jantar? Olhem se eu lá não ia! Não que dizem que uma pessoa póde descançar nos criados. Ha de poder! São uma corja! E, v. exc.ª não quer crêr, aquelle excommungado d'aquelle hortelão ha de ser a ruina d'esta casa. Foi uma imprudencia da parte do snr. D. Luiz metter em casa um libertino d'aquelles, mação nos ossos e no sangue. Foi um passo muito errado… Aquillo é um pessimo exemplo para os outros. Sabe v. exc.ª em que elle estava fallando? Na cantiga do costume. No desembarque do Mindello. Quando eu cheguei ainda lhe ouvi dizer que eram sete mil e quinhentos bravos que vieram pôr fóra da cidade os oitenta mil lobos que andavam lá, e coisas assim. E o cozinheiro a dar-lhe ouvidos, e o leitão a queimar-se e a sôpa a pegar-se no fundo da panella, que logo me cheirou a esturro. É preciso que v. ex.ª dê as providencias, quando não…

D. Luiz, tomando menos a peito do que o capellão os destinos do jantar e da sôpa, e fiel ao habito de nunca fallar, nem em mal nem em bem, do hortelão, não respondeu e proseguiu a leitura das folhas.

D'ahi a pouco referiu ao padre a noticia que tinha lido do desastre succedido a uma diligencia ao passar em uma ponte que na occasião abatêra, resultando muitas victimas.

A indignação do padre exaltou-se.

—Pois se esta gente que nos governa deixa as estradas e pontes em um abandono d'esses! Vejam que tempos os nossos! e que governos que não se importam com as vidas dos cidadãos! Em que paiz do mundo se vêem estradas assim arruinadas como as nossas? São os bens que nos trouxeram os homens da Carta! Isto é bonito!

E o padre Januario continuou ainda por algum tempo a condemnar, pelo crime de desleixo e de falta de protecção á viação publica, os mesmos governos que, momentos antes, accusára de conceder para esse fim subsidios e de lhe dar importancia demasiada.

A politica de frei Januario é vulgar na nossa terra.

D. Luiz, tendo concluido a leitura da folha, pôl-a de lado e resumiu a serie de pensamentos que essa leitura lhe suggerira, na seguinte e contrahida synthese:

—Isto vae cada vez melhor, frei Januario.

—Isto vae bonito, não tem duvida nenhuma—secundou o padre.

—O peior é o futuro—tornou o fidalgo, assombrado.

—Ai, o futuro ha de ser fresco!—repetiu o procurador, fungando uma pitada.

—Emfim, quem viver verá aonde isto vae parar, onde nos leva esta torrente.

—E não é preciso viver muito. Mais dia menos dia temos ahi os hespanhoes, ou então passamos a ser inglezes. Não ha que vêr; da maneira por que vão as coisas…

—Ai, pobre Portugal!—exclamou melancolicamente D. Luiz.

—Que vaes á vela—concluiu o padre.—Desde que puzeram a cabeça á roda a esta gente com liberalismos… ficou tudo transtornado. Agora todos mandam, todos fallam, e não ha quem governe. Isto de não haver um que governe… Estes patetas não se desenganam de que um paiz é como uma casa. Ora deixem á vontade os criados em uma cozinha, sem ninguem que os vigie, e verão o que vae! esperem por o jantar, que hão de achar-se servidos!

O simile fôra suggerido a frei Januario pela sua constante preoccupação.

—O que me custa é lembrar-me de que meus filhos teem de viver n'esta sociedade assim organisada. Quem sabe a sorte que lhes está reservada, aos pobres rapazes!—disse o fidalgo, suspirando com escuras apprehensões sobre a posição precaria da familia.

—Os filhos de v. exc.ª não devem transigir em caso algum com estes homens!—exclamou com vehemencia o padre—É não fazer como a sobrinha de v. exc.ª, a snr.ª D. Gabriella, que já é baroneza das feitas por elles. Quando se é fidalgo é preciso ser fidalgo.

—É bem negro o futuro que espera as casas como a nossa, e sabe Deus se em parte preparado por nós—insistia o fidalgo.—Tambem peccamos.

—Pois é uma triste verdade, mas isso não é razão para que os que nasceram n'essas casas se abaixem diante dos que nem sabem aonde nasceram. Deixe v. exc.ª medrar quanto quizer o Thomé da Herdade, que no fim de tudo sempre ha de mostrar que andou descalço em criança e que foi levar a beber o gado d'esta casa. Ha certas coisas que não dá o dinheiro.

—O Thomé da Herdade!—repetiu D. Luiz com amargura—Esse é que prospéra, os tempos estão para elle. Quem viu e quem vê aquillo!

—Então que quer? Inda mais havemos de ver. E então não sabe v. ex.ª que o homem mandou educar a filha na cidade, como se fosse a filha de alguem?

—A Bertha?

—Sim, a que é afilhada de v. exc.ª Com que fim faz aquelle toleirão uma coisa d'essas? Veja a parlapatice d'aquelle homem. Não repara na posição falsa em que colloca a rapariga. Metteu-se-lhe talvez na cabeça que ainda a casava com algum fidalgo! Póde ser. Veja v. exc.ª se ella serve para algum dos seus filhos.

D. Luiz sorriu, encolhendo os hombros.

—Ora para que precisa a mulher de um lavrador, que é a final o que ella tem de ser, das prendas e da educação que o pae lhe mandou dar? Não me dirá v. exc.ª?

—Todos hoje teem aspirações a subir—reflectiu D. Luiz com ironia.—A maré sóbe.

—Eu bem sei o que é que dá causa a estas tolerias. Tudo isto vem da barulhada que estes liberalões fizeram na sociedade. Tudo está remexido e ninguem se entende. O sapateiro que nos vem tomar medida de umas botas parece um visconde. Onde isso é bonito, segundo dizem, é em Lisboa. Hoje todos por lá tem excellencia!

N'estes sediços commentarios sobre o estado do seculo deixaram-se ficar os dois por muito tempo, desafogando assim a sua má vontade contra as instituições modernas. O padre Januario porém não perdia com isto a ideia do jantar, e de quando em quando voltava os olhos para o relogio, cujos lentos ponteiros não correspondiam nunca á impaciencia dos seus desejos. Emfim deu uma hora e frei Januario ergueu-se instinctivamente para ir vêr se o jantar estava servido.

Passado pouco tempo tocava a sineta, tão grata aos ouvidos do reverendo. Vibraram pelos desertos aposentos e extensos corredores da Casa Mourisca aquelles sons, que em felizes tempos punham em movimento uma numerosa e esplendida côrte, que os ventos da adversidade tinham dispersado.

D. Luiz entrou na sala do jantar, onde com impaciencia o aguardava já o capellão.

Aquella grande sala vazia, aquella extensa mesa, apenas servida com quatro talheres, fallava tanto do esplendor passado e da decadencia presente, que poucos logares havia na casa que deixassem no fidalgo mais melancolicas impressões. Nunca se lhe anuviava tanto o coração como ao sentar-se á cabeceira da mesa, em torno da qual outr'ora vira rostos conhecidos e amigos, hoje tão solitaria e abandonada.

D. Luiz, reparando que o escudeiro principiava a servir, perguntou, apontando para os logares dos filhos, que ainda estavam de vago.

—Então os senhores não ouviram a sineta?

—Os senhores ainda não vieram.

—Nem Jorge?—perguntou D. Luiz, como se estranhasse menos a ausencia de

Mauricio.

—Nem um, nem outro.

—O snr. D. Mauricio—observou o padre, que temia um adiamento do jantar—sahiu para a caça; quando virá elle agora?

E dizendo isto, fazia signal ao criado para que servisse o fidalgo.

—E Jorge?—insistiu o pae.

—O snr. D. Jorge… esse não sei… talvez esteja ahi por alguma parte.

O fidalgo, evidentemente contrariado com a ausencia dos filhos, que ainda mais augmentava a solidão d'aquella sala, resignou-se a principiar a jantar sem elles.

O jantar correu em silencio.

O humor negro de um dos commensaes e o appetite do outro não davam azo ao dialogo.

Estava o padre deliciando-se com uma farta posta de assado e o competente accessorio de massas, quando Jorge entrou na sala.

D. Luiz não lhe dirigiu a palavra, nem sequer um olhar.

Jorge formulou uma vaga desculpa, que o pae interrompeu com um gesto a mandal-o sentar; e, passados momentos, levantou-se elle e sahiu silencioso.

Frei Januario, tendo já satisfeito as primeiras e mais urgentes exigencias do seu estomago, achou-se disposto a continuar o dialogo. Por isso, ao encetar a sobremesa, dirigiu por comprazer a palavra a Jorge:

—Com que vem do seu passeio, hein? A manhã estava bem bonita. E então o que viu por esses campos?

—Muito trabalho, snr. frei Januario, muita vida rural—respondeu Jorge.

—Sim, agora é o tempo das colheitas. Anda por ahi tudo azafamado.

—Mas porque é, snr. frei Januario, que nos campos da nossa casa não vejo o movimento dos outros?

A imprevista interpellação do adolescente ia entalando o padre.

—Causou-me sensação isto hoje—proseguiu Jorge.—Quem subir ao alto do outeiro da Faia, por exemplo, e olhar de lá, em roda de si, para o valle, póde marcar as propriedades da nossa casa; onde vir um campo quasi maninho, um muro a cahir, umas paredes negras, um aspecto de cemiterio, tenha a certeza de que nos pertencem esses bens.

—Não é tanto assim… É verdade que… meu rico filho, que quer? depois que os homens do liberalismo tomaram conta d'este paiz, as coisas mudaram. Quem não está por o que elles querem…

—Não vejo em que elles influam para isto, snr. frei Januario. Quem nos impede de fazer o que os outros fazem? de cultivar os nossos campos? de pôr homens a trabalhar n'essas terras incultas?

—O que os outros fazem, diz elle! Os outros… os outros… e quem são os outros? Uns miseraveis que eu conheci de pé descalço, a limpar os cavallos e a cavar nos campos d'esta casa.

—Tanto mais para admirar e para louvar o esforço que os tirou d'essa posição humilde e os elevou áquella, que hoje occupam.

—Olhem que grande milagre! Homens que não devem respeito a si mesmos, para quem todo o trabalho está bem, como não hão de enriquecer? Ora essa é muito boa!

—E os que devem respeito a si mesmos estão pois condemnados á miseria?

—Á miseria… á miseria!… Que palavra! Ora para o que lhe deu hoje! Foi febre que se lhe pegou? Se ella anda por ahi tão accêsa! O menino ainda é muito criança para pensar n'estas coisas. Coma e beba e…

As faces de Jorge tingiram-se de um rubor intenso, e redarguiu com energia e irritação:

—Não sou criança, frei Januario; acredite que o não sou. Tenho mais de vinte annos e estou resolvido a ser homem. Córo da minha ociosidade, quando vejo que sómente as nossas terras fazem vergonha á actividade d'este povo. Tenho annos para viver, deveres de honra a cumprir, um nome para conservar sem mancha, e quero saber que futuro me preparam os gerentes da nossa casa, quero desviar a tempo de mim a tremenda responsabilidade de ser na minha familia talvez o primeiro a faltar um dia aos seus compromissos. É por isso que fallei e que desejo que me responda, snr. frei Januario.

—Ai, menino, menino; isso não é seu! Ahi anda doutrina liberal. Eu cheiro-a a distancia de legoas. Então quando o senhor seu pae me honra com a sua confiança, é acaso justo, é acaso bonito que eu seja suspeitado e interrogado por uma criança, que ainda nada sabe do mundo?

—E quando hei de aprender? Querem-me estupido, como esses morgados que por ahi se arruinam?

—Mas que quer o snr. Jorge a final? Então não sabe que desde que os lavradores se fizeram fidalgos, ninguem lucta com elles? O dinheiro está de lá; para lá vão os trabalhadores, senhor. Ora é boa! Eu acho graça a certa gente!

—O dinheiro está de lá! Mas como conseguiram elles enriquecer? Pois não diz que eram uns miseraveis?

—Ah! então quer principiar como elles principiaram, cavando com uma enxada todo o dia e furtando á bôca para juntar ao canto da caixa com o fim de comprar uns bois? etc. etc. Veja se quer.

—Não principiavamos de tão longe como elles, escusavamos de tantos sacrificios. Bastava que olhassemos com attenção para o muito que temos ainda, e que tentassemos desenredar, a pouco e pouco, esta meiada, que nos enleia e que nos ha de afogar a todos.

—Ora é boa! E então o que é que eu faço, o que é que estou fazendo ha quasi trinta e oito annos em que o snr. D. Luiz me distingue com a sua confiança? Mas a coisa não é tão facil, como lhe parece. É boa!

—Mas quaes são os seus planos, padre Januario, qual é o seu systema de administração?

—Os meus planos?!… Ora essa!… Então que planos quer que sejam os meus? Systema de administração!… isso é phrase de côrtes… Humh! tenho entendido… É o que eu digo… Ó snr. Jorge, ora falle-me a verdade, ahi andam ideias de liberalismo. Com quem fallou esta manhã? ora diga.

—Venham d'onde vierem as ideias. A origem pouco importa, a questão é que ellas sejam boas. Eu não tracto de liberaes nem de absolutistas agora. Vejo que a minha casa se perde, vejo cahirem os muros e nunca se repararem; vejo campos e campos sem a menor cultura, encontro em tudo quanto nos pertence profundos signaes de decadencia, e quero saber a grandeza do mal que nos opprime.

—E se fôr grande o mal, o que quer que se lhe faça?

—Quero que se trabalhe para remedial-o; que se façam sacrificios uteis, que deixemos a louca vergonha e o orgulho enfatuado que nos faz viver hoje ainda uma vida que não é d'estes tempos. Desenganemo-nos; a época não é de privilegios nem de isenções nobiliarias, é de trabalho e de actividade. Plebeu é hoje só o ocioso, nobre é todo o que se torna util pelo trabalho honrado.

—Jesus! O que ahi vae! O que ahi vae! Eu bem o digo! Ha liberal na costa! Isso é tão certo como dois e dois serem quatro. Se o pae o ouvia!

—Ha de ouvir-me, porque tenciono hoje mesmo fallar-lhe.

—Que vae fazer, snr. Jorge?

—O meu dever. Eu e meu irmão seremos um dia os representantes da nossa familia. Para que nos orgulhemos do nome que herdamos, é necessario que esse nome não tenha manchas e que nós lh'as não lancemos.

—Mas quem lhe diz, quem lhe falla em manchas? Ora… ora… ora… ora esta não está má!

—Frei Januario, eu não sou criança, repito-o. Sel-o-ia hontem, hoje não o sou já. Faça de conta que o sol d'esta manhã me amadureceu. Por isso não me illudo emquanto á natureza dos meios com que se sustenta ainda n'esta casa um resto do esplendor de antigos tempos. Pois mais valeria comer em louça nacional e vender as matilhas e os dois cavallos de luxo, que ainda temos, para comprar dois bois.

—Mas…

—Até logo, frei Januario, conversaremos mais de espaço sobre isto.

—Mas…

Jorge, sem o attender, dispunha-se a sahir, quando o padre, quasi assustado, o chamou.

—Mas venha cá. Ouça-me, valha-me Deus! Olhem que homem este! Tem muita razão no que diz. Sim, senhor. As coisas não vão bem. Hoje não é hontem; e esta casa já viu melhores tempos do que os que correm. Mas de quem é a culpa? É de mim ou do senhor seu pae? Pois não foste! Para remediar o mal trabalhamos nós ha muito. A culpa é d'esta gente que nos governa, d'estes homens que juraram perder tudo quanto era nobreza para poderem á vontade fazer das suas, sem ter quem lhe vá á mão. Percebe agora? Desde que os liberaes…

—Por quem é, frei Januario, não me venha outra vez com os liberaes. Eu tenho a razão bastante clara para vêr as coisas como ellas são, e não me deixar levar por essa cantiga do costume. Os liberaes!… Os liberaes o que fizeram foi alliviar a agricultura dos enormes encargos que d'antes pesavam sobre ella e que não a deixavam prosperar, foi crear leis e instituições que facilitassem os esforços dos laboriosos e castigassem severamente a incuria e a ociosidade. Quando ao desopprimir-se o lavrador de tributos pesados e iniquos e dos odiosos vexames do fisco, ao tornarem-se-lhe mais faceis os contractos e as transmissões da propriedade, ao crearem-se-lhe recursos para elle tirar do seu trabalho e da sua intelligencia dez vezes mais do que d'antes podia obter, quando na época em que tudo isto se realisa, uma casa como a nossa, em vez de prosperar como tantas, vê apressada a sua decadencia, é porque tem em si um velho e incuravel cancro a roêl-a. E é esse cancro que eu quero conhecer, para extirpal-o, se ainda fôr possivel.

—Eu estou pasmado! Pelo que ouço, acha o menino que todas essas fornadas de leis, que esta gente tem feito, são muito boas e que a sua casa devia ser muito bem servida com ellas?

—Essas leis de que se queixa, são racionaes; uma casa racionalmente administrada não póde pois perder com ellas.

—Sim, senhor! Visto isso, o menino, que depois da morte dos manos, ficou sendo o filho mais velho da familia, gostou talvez muito de vêr acabar com os morgados? Sim, como as leis modernas são tão boas, havia de gostar—argumentou o procurador, com ares de finura, como de quem apanhava em falso o seu adversario.

Jorge respondeu serenamente:

—E porque não? A abolição dos morgados acho eu que foi um grande acto de justiça e de moralidade; além de ser uma medida de longo alcance politico.

—Ai… ai… ai… O que mais terei de ouvir! O menino está perdido!… Pois já me applaude a maldita lei, que ha de dar cabo das familias mais illustres do reino… Ai, como elle está!…

—Deixe-se d'isso. A abolição dos vinculos só trouxe a morte ás casas que deviam morrer. O que ella fez foi proclamar a necessidade do trabalho indistinctamente para quem quizer prosperar. O esplendor das familias deve ficar sómente ao cuidado dos membros d'ellas e não da lei. Quando esses não tenham brio nem dignidade para o sustentar, justo é que elle se apague, e que o nome dos antepassados não continue a ser deshonrado pelos vicios e ociosidade dos descendentes. Mas deixemo-nos d'estas discussões, frei Januario. O meu partido está tomado. Mais tarde saberá das consequencias d'elle.

E Jorge sahiu da sala, deixando o egresso apatetado com o que ouvira.

—Que anda aqui liberalismo, isso para mim é de fé. Mas que mosca o morderia? Querem vêr que já fizeram do rapaz mação? Pois olhem que não é outra coisa. Eu quando os ouço fallar muito do trabalho… já estou de pé atraz. Tem graça! Quem os ouvir, persuade-se de que o trabalho é um prazer. Ora adeus! O trabalho é uma necessidade, o trabalho é um castigo. Para ahi vou eu. Que trabalho tinha Adão no paraizo? E não lhe chamam os livros sagrados um logar de delicias? Amassar o pão com o suor do rosto, olhem que titulo de nobreza! Estes modernismos! Mas é a cantiga da moda. O trabalho ennobrece, o trabalho consola, o trabalho é uma coisa muito appetitosa… Será, será, mas eu, por mim, se pudesse deixar de trabalhar… Ah! ah! ah.

Aqui bocejava o egresso.

—Mas que alli anda liberalismo, isso é tão certo como eu estar onde estou. Como elle fallou nos morgados!… Provará que é tão pateta que, sendo elle morgado, diz d'aquillo. E que vae declarar ao pae… Não declara nada. Um criançola que não sabe senão passear. Tomára elle que o deixem… O ocioso é que é o plebeu, o nobre é o que trabalha. Sim, sim, contem-me d'essas. Aquillo é musica de anjos. Diga-se o que é verdade, quem puder deixar de trabalhar…

Frei Januario, n'estas graves ponderações, deixou-se a pouco e pouco invadir pelo somno, e acabou por adormecer á mesa, sonhando-se em uma especie de paraizo, como o tal logar de delicias de Adão, cuja ociosidade sempre fôra objecto muito dos seus enlevos.

Deixemol-o adormecido, e vamos ter com Jorge a um dos menos arruinados angulos da Casa Mourisca.

Os fidalgos da Casa Mourisca

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