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VIII

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Succederam muitos dias sem que na vida dos differentes personagens, que já temos apresentado ao leitor, occorressem incidentes dignos de menção.

Mauricio permanecia na aldeia, e vivia n'ella a mesma vida que até alli, porque não se obtivera ainda da prima baroneza a resposta á carta de D. Luiz.

Apesar da energia com que vimos aquelle rapaz abraçar os nobres projectos do irmão, exige a verdade que se diga que elle soffria com demasiada resignação as delongas da empreza, na parte que lhe dizia respeito, e continuava a distrahir-se como d'antes em passeios, caçadas e aventuras galantes. Estava-lhe isto no caracter.

Jorge, esse deitára-se de corpo e alma ao trabalho. Estudava no gabinete, discutia nas conferencias com Thomé, e principiára já a realisar reformas e melhoramentos, promettedores de vantagens futuras.

Os capitaes agenciados pelo fazendeiro haviam já permittido libertar a casa de muita usura e encetar em uma das melhores propriedades do antigo morgado trabalhos agricolas mais activos e methodicos; viam-se já por lá as enxadas e os arados revolverem a terra e desarreigarem as hervas estereis; já se podava e enxertava nas vinhas e pomares quasi bravios, aproveitavam-se as aguas, fertilisava-se o solo, sentia-se renascer aquella natureza amortecida, como se entrasse na convalescença de uma longa enfermidade.

Frei Januario presenciava aquelles prodigios com espanto e despeito, murmurando dos gastos loucos, em que o rapaz se mettia.

—Muito havemos de rir a final—dizia elle.—Entradas de leão; agora as sahidas…

Não communicava porém as suas reflexões ao fidalgo, porque tinha mêdo de

Jorge.

D. Luiz, que em um dos passeios que costumava dar a cavallo, acompanhado de escudeiro, á distancia marcada pela velha pragmatica, teve occasião de observar esses melhoramentos, sentiu um intimo prazer, sabendo que aquella fazenda era agricultada por conta da casa. O fidalgo não procurou informar-se dos meios pelos quaes Jorge chegára a realisar o milagre. Cresceu a confiança no filho e de olhos fechados entregou-se a ella.

Não pararam aqui os trabalhos de Jorge. A casa, como já dissemos, luctava, havia muito tempo, com um importante litigio, que podia decidir do destino de quasi metade dos seus bens. Esta demanda, complicada e de uma marcha morosissima, tomára ultimamente uma feição pouco favoravel aos fidalgos da Casa Mourisca.

Frei Januario já prevenira D. Luiz de que a considerasse perdida.

Jorge, na revista a que procedeu nos archivos de familia, encontrou documentos, a seu vêr importantes e até alli não aproveitados, por incuria do padre-capellão. Mostrou-os a Thomé, que experiente n'estes negocios como um verdadeiro lavrador do Minho, confirmou a valia do achado, e ambos resolveram remettêl-os a um novo advogado, a quem se entregou a direcção do litigio.

Haviam pois sido bem encetados os trabalhos de Jorge. Longe ia ainda o seu pensamento da realisação completa. O que havia por fazer era muito mais do que o que estava feito, mas os principios animavam.

Por este tempo porém sobreveio um acontecimento, que algum tanto transtornou a face d'estes negocios.

Recebeu-se na Herdade uma carta de Bertha.

Preciso é porém dizermos algumas palavras a respeito de Bertha, antes de a introduzirmos em scena; porque a leitora suspeita já que vae chegar a final a heroina da historia; e a ausencia d'ella em sete capitulos inteiros talvez não tenha já sido pouco estranhada.

Bertha, segundo atraz fica dito, era a filha mais velha de Thomé.

Nascida na época em que o fazendeiro não era ainda o homem abastado em que depois se tornou, procuraram-lhe os paes bons padrinhos, para assegurarem o futuro da pequena.

Thomé obteve do fidalgo da Casa Mourisca a condescendencia de acompanhar a criança á pia baptismal; Luiza, pela sua parte, solicitou e conseguiu identico favor de uma senhora do Porto, para casa de quem ella por muito tempo lavára, quando n'esse mister occupava a sua robusta juventude.

A roda da fortuna, por uma das suas muito sabidas revoluções, alterou a posição relativa de toda esta gente, durante o decurso dos primeiros annos de Bertha.

Já sabemos como, em virtude d'esta revolução, Thomé subiu gradual e incessantemente, emquanto D. Luiz descia. O mesmo que a este ultimo succedeu á tal senhora, cuja indole bondosa e timida não soube oppôr estorvos ás prodigalidades de um irmão perdulario; vendo-se em consequencia d'isso obrigada a sahir do Porto, onde vendeu tudo o que tinha, para ir para Lisboa educar meninas.

A primeira discipula que teve foi Bertha. Os paes sentiam ambições por a filha e queriam dar-lhe a educação de uma senhora, aproveitando e cultivando n'ella as boas disposições que já adquirira na convivencia com os pequenos da Casa Mourisca, onde era recebida com affecto. Além d'isso, outra e mais generosa intenção levou-os a darem aquelle passo. Queriam concorrer para alliviar o infortunio da infeliz senhora, que sempre na opulencia os auxiliára e estimára. Possuiam porém bastante delicadeza para lhe offerecerem soccorros, sem um pretexto a coloril-os. Pediram-lhe pois que tomasse conta da educação de Bertha, e assim, além da mezada do costume, tinham o ensejo de fazerem valiosos presentes á mestra, que percebia e apreciava com lagrimas a generosidade d'aquelle proceder.

Foi assim Bertha mandada educar para Lisboa, o que não provocou escassos commentarios na aldeia, onde se disse que o Thomé da Herdade se afidalgava, e que já não queria ter filhos lavradores.

O senhor da Casa Mourisca não viu tambem com bons olhos aquelle passo de Thomé, cujo engrandecimento havia já muito tempo que principiára a incommodal-o.

Bertha, que fôra até então a companheira de brinquedos dos meninos da Casa Mourisca e de Beatriz, a pallida e meiga criança, que temos visto viver ainda na memoria de quantos a amaram, deixou a aldeia uma madrugada com lagrimas e soluços.

Desde então conservou-se em Lisboa, onde só o pae a foi vêr, por duas vezes, deixando-a inteiramente entregue aos cuidados da senhora, que lhe ganhára affeição, cada vez mais funda.

Bertha crescêra; as graças infantis foram a pouco e pouco perdendo n'ella aquellas illuminadas cores com que nos alegram e, diluindo-se nas mysteriosas sombras de uma juventude de mulher, sombras que não empanam a belleza, antes lhe dão mais e mais seductor relêvo. Bertha não era já a criança que sahira da aldeia, sem um pensamento que retivesse, sem um sorriso que encobrisse, sem um olhar que se desviasse pensativo ou timido, sem uma dôr que se não manifestasse em lagrimas; era já a virgem de dezoito annos, sob a influencia da vida nascente do coração, e portanto sujeita a todas as subtis impressões, dominada por todos os impulsos contradictorios e por todas as indefinidas aspirações d'aquella quadra magica.

A vida das cidades, sem lhe dar a morbida languidez, que tão sem razão anda confundida com a elegancia, apurára-lhe a delicadeza feminina, desenvolvêra-lhe a sensibilidade para os affectos e a intelligencia para os prazeres do espirito.

Mas o que em Bertha sobre tudo havia mais digno de referir-se aqui, por ser menos commum phenomeno do que esses que descrevemos, era a permanencia de uma razão clara no meio dos attractivos e seducções, com que a phantasia tantas vezes, em circumstancias taes, a offusca. Gozava, mas sem embriaguez; sentia, mas sem arroubamentos; e, apreciando as prendas de educação que ia adquirindo, nunca perdia de vista a modestia do seu nascimento e a modestia do futuro que naturalmente devia ser o seu. Se tinha sonhos de juventude… e quem os não tem n'aquella idade? sabia que sonhava e não se distrahia a procurar no mundo real as visões, que n'elles lhe appareciam.

A lembrança da sua origem modesta não a fazia melancolica, mas prudente. Não era aquella ideia uma sombra negra, que não lhe deixava vêr a luz; simplesmente um como crystal córado, que lhe permittia fital-a, sem mêdo de offuscação e cegueira.

Assim, no meio das suas effusões, das suas melancolias e até dos seus pequenos caprichos de rapariga, Bertha nunca deixava de ser uma rapariga de juizo.

A educação de collegio não produzira n'ella a adocicada pedantaria de algumas meninas da moda. Nas cartas, que escrevia aos paes, nunca se lia uma phrase que elles não entendessem, uma palavra que os embaraçasse e lhes fizesse sentir a inferioridade da sua educação. Revelava-se n'isto um natural instincto de delicadeza, que Thomé, por um instincto analogo, sabia apreciar.

Sentia que Bertha nunca se envergonharia de chamar a elle pae e mãe á boa Luiza, e esta convicção não o deixava arrepender de a haver educado com esmero. Pobre do homem se esses cuidados lhe tivessem alienado os affectos da rapariga!

As cartas de Bertha eram escriptas de fórma, que não sómente aos paes agradavam, mas a quantos as liam.

Thomé mostrara-as a Jorge, e este não pôde deixar de apreciar a redacção singela e despretenciosa em que parecia reflectir-se a candura e pureza d'aquelle caracter de mulher. Havia n'ellas uma maneira de pensar tão acertada, vistas tão despidas de preconceitos, tanto sentimento revelado com tanta sobriedade de phrases sentimentaes, que são o maior achaque nas cartas de mulher; transpareciam tão distinctamente os suaves e generosos instinctos da sua alma feminina, que o espirito de Jorge sympathisou naturalmente com aquelle outro espirito que, n'essas ligeiras manifestações, se revelava tão irmão seu.

A pouco e pouco uma d'estas sympathias, que ás vezes se originam no coração, lentas, brandas, ignoradas, sem a agudeza das paixões, despertadas por um ente, de quem apenas se conhece o nome, ou quando muito uma feição, um acto da vida, um pensamento, insinuou-se no coração de Jorge. Era um sentimento, que não o inquietava ao principio, nem lhe perturbava o espirito, por isso não se acautelou d'elle; deixou-se repassar d'aquelle grato influxo, sem se lembrar sequer de lhe estudar a natureza, e muito menos de suspeitar-lhe os perigos.

Um dia mostrou-lhe Thomé o retrato da filha. Jorge encontrou n'elle as feições que conhecêra infantis, animadas agora pela vida da adolescencia. Pareceu-lhe não haver contradicção entre aquella physionomia e o caracter que suppozera a Bertha; e a imagem da rapariga começou a apparecer-lhe com insistencia nos seus devaneios de rapaz.

Jorge então assustou-se. Sentia pela primeira vez alguma coisa em si, de que a razão lhe não dava boas contas. Pareceu-lhe ser aquillo uma fraqueza, indigna do seu caracter serio, e resolveu pois vencêl-a.

Desde esse momento principiou uma estranha lucta n'aquella alma, sem que apparecessem fóra vestigios que a denunciassem. Sentia um inexprimivel prazer ao ouvir fallar de Bertha; e por isso mesmo fugia aos ensejos de experimental-o. Esta contenção forçada acabou por produzir no espirito de Jorge um effeito singular; foi um grau de irritação, revelado em uma especie de hostilidade para com Bertha, cuja imagem viera perturbar-lhe a limpidez de coração, que tivera até alli, e fazer-lhe pela primeira vez vacillar a razão, que todos n'elle admiravam. Era o caso de poder dizer-se, em estylo de conceitos: «queria-lhe mal por lhe querer bem.» Receiava-se d'ella, e fazia o possivel para desvanecer a impressão por que se sentia dominado.

Taes são as indicações que julgamos dever dar a respeito de Bertha, antes de narrarmos o effeito da carta, que d'ella se recebeu na Herdade.

Esta não era uma simples carta de cumprimentos ou d'aquellas, em que a filha se estendia em longas conversas com o pae, contando-lhe por miudo os singelos episodios da sua vida de rapariga. D'esta vez havia n'ella uma nova importante e que ia modificar o plano de vida da familia.

A senhora, em casa de quem Bertha se educava, havia repentinamente fallecido.

Bertha escrevia assim ao pae:

«Meu querido pae.

«Escrevo-lhe a chorar e com o coração a partir-se-me de dôr. A minha madrinha falleceu esta madrugada. Ainda hontem à noite esteve a conversar e a rir comnosco, e tinhamos até combinado para hoje um passeio a Cintra! De madrugada foram acordar-me a toda a pressa para ir ter com a senhora, que estava mal. Cheguei para a vêr expirar; custou-lhe já a dar-me um beijo e a despedir-se de mim. Imagine como estou! Nós todas ficamos como loucas! Ainda isto me parece um sonho! Veja que malfadada senhora! Agora que principiava a viver outra vez mais feliz!… Peço-lhe que me diga o que devo fazer n'este caso. Eu sei que o pae já uma vez fallou em mandar-me para outro colegio, se por acaso me faltasse a minha madrinha. Deixe-me porém lembrar-lhe algumas coisas, e depois decida. Eu não quero dizer que tenha uma educação perfeita; mas, como não conto, nem desejo, viver nas salas d'aqui, posso bem passar sem esses apuros, que para isso me seriam precisos. Muito tem já o pae feito por mim; é preciso agora olhar por meus irmãos, e alguns estão em idade em que ainda podem agradecer-me alguns serviços, que eu ahi consiga fazer-lhes. Mande-me ir. A mãe deve ter muito trabalho em olhar por tudo em casa. É tempo que eu a ajude em alguma coisa. Aos dezoito annos é uma vergonha não o fazer. É uma parte da minha educação que posso concluir ahi e que me será bem necessaria. Demais confesso-lhe que, depois da morte de minha madrinha, havia de custar-me a continuar em Lisboa. Peço-lhe pois que me deixe ir viver comsigo e matar as saudades, que já tenho de todos e de tudo.

Muitas lembranças á mãe, muitos beijos aos pequenos.

Sua filha, que espera muito cêdo abraçal-o,

Bertha.

P.S. Que não esqueça dar muitos recados á Joanna, ao Manoel da Costa

e á filha, assim como á tia Euzebia e ás mais pessoas amigas.»

Thomé leu á mulher a carta da filha, e entre ambos discutiram o partido que conviria adoptar.

Saudades maternas e paternas, desejos de vêr de perto e abraçar a filha dilecta e primogenita, que havia tanto tempo lhes andava longe das vistas, o sonhado prazer de a sentir, animando a casa com todo o calor de vida que em torno de si diffunde uma rapariga de dezoito annos, resolveram a questão no sentido indicado por Bertha; e para assim a resolver, quasi bastava que ella o indicasse.

Decidiu-se pois que Bertha voltasse para a Herdade.

D'ahi os necessarios preparativos para a accommodação da filha, cujos habitos, modificados pela vida da cidade, deviam ter exigencias, a que era justo attender.

O instincto materno adivinhava melhor do que era d'esperar essas miudas necessidades, e a liberalidade paterna provia a ellas. E tudo isto preoccupava o feliz casal, cujo contentamento se reflectia em criados e jornaleiros.

Jorge encontrou uma noite Thomé ainda empenhado n'esta labutação caseira, e soube d'elle a causa de tanto alvoroço.

O filho mais velho de D. Luiz ouviu com sobresalto a noticia.

Parecia prever a aproximação d'um perigo, que mal ousava definir.

Dissimulou comtudo o que sentia, e deu a Thomé e a Luiza os parabens pela proxima chegada da filha, e até os auxiliou com o seu alvitre na resolução de algumas difficuldades, relativas ao arranjo do gabinete destinado a Bertha.

Sahiu porém da Herdade debaixo de estranhas impressões moraes. Experimentava um mixto de mal definido prazer e ao mesmo tempo de desgosto.

Thomé resolvêra ir elle proprio a Lisboa buscar a filha.

Interromperam-se pois, durante alguns dias, as conferencias economicas da Herdade.

A demora de Thomé não foi longa.

Pouco mais de oito dias passados, era elle de volta com a Bertha.

Uma tarde vinha Mauricio a cavallo de uma excursão pelos campos, quando, ao descer por entre os pinheiros de uma bouça cerrada, viu passar, em um curto lanço de estrada, que as entreabertas do arvoredo deixavam patentes, o vulto de dois cavalleiros.

Attrahiram-lhe naturalmente a attenção e esperou, para melhor os reconhecer, que chegassem a outro lanço mais proximo e mais descoberto da estrada que seguiam.

De facto, pouco depois viu que eram um homem e uma senhora, que cavalgavam a par.

No homem reconheceu Thomé; a senhora pareceu-lhe nova e elegante.

Em resultado d'esta dupla descoberta dirigiu o cavallo immediatamente para elles.

Perto principiou a divisar na dama, que Thomé acompanhava, feições conhecidas.

Antes porém que esclarecesse a vaga ideia que aquellas feições lhe iam suscitando, o fazendeiro exclamou, saudando-o com a mão:

—Venha dar-me aqui os parabens, snr. Mauricio; venha cá, que me volta ao pombal uma pomba que deixei sahir d'elle ha muito tempo.

Mauricio acabou por corroborar a suspeita que já tivera.

Era Bertha a amazona.

Bertha, a pequena aldeã com quem brincára em criança no pateo e na quinta da Casa Mourisca, a companheira de sua irmã Beatriz, a afilhada de seu pae e a pequenina dama, a quem dedicava já então os seus galanteios infantis; era ella, mas com todas as surprendentes e rapidas transformações que opéra o sangue da juventude na formosura de criança, com todo o realce e prestigio que dá á belleza a educação.

Bertha era uma rapariga de olhos negros e de bôca graciosa, onde fluctuava um sorriso expressivo ao mesmo tempo de alegria e de bondade. Havia nos movimentos, nos olhares e nos modos d'ella um mixto da candura de uma criança e dos delicados instinctos da mulher; reconhecia-se a falta de dissimulação, que é propria dos caracteres generosos, e ao mesmo tempo uma natural dignidade, que impõe respeito aos menos reverentes.

Mauricio sentia-se maravilhado diante da filha de Thomé.

—Bertha!—exclamou elle, sem disfarçar a sua surpreza, nem desviar os olhos da rapariga, que o saudára córando.—E é certo que é Bertha! Conheço ainda o sorriso, que é o mesmo de outros tempos. Mas que differença em tudo o mais!

Bertha desviou os olhos sob a insistencia e expressão dos de Mauricio, e dominando a custo a commoção conseguiu dizer:

—Fiz-me mais velha, não é verdade?

—Não, Bertha, fez-se um anjo—acudiu Mauricio.

—Isso é que não—atalhou Thomé—anjo era d'antes. Hoje já não repicariam os sinos, se ella morresse.

—A terra teria bem razão para lamentar-se. Ao céo é que competiriam as festas—atalhou, galanteando, Mauricio.

—Tambem eu encontro mudança em si, snr. Mauricio—observou

Bertha.—Quando o deixei, não dizia ainda d'essas coisas.

E a mesma intima turbação tirava-lhe ainda a firmeza á voz e ao olhar.

—Porque não as sentia, Bertha—redarguiu Mauricio.

Bertha abanou a cabeça com ar de duvida e quasi de tristeza, e tornou sobresaltada:

—Parece-me que os que melhor dizem d'essas coisas são os que menos sentem.

—Tambem lhe ensinaram a desconfiar, Bertha?

—É tão facil ensino! Cada um aprende por si.

—Vamos—interrompeu Thomé—nada de estar parados no meio da estrada. Lembra-te, Bertha, de que tua mãe a estas horas não faz outra coisa mais do que espreitar da janella a vêr se te vê chegar.

—Vamos lá.

Mauricio dirigiu o cavallo para o lado do de Bertha, que cavalgava assim entre o fidalgo e o pae.

—Que saudades me estão fazendo estes sitios!—dizia Bertha, suspirando e emquanto corria a vista pelo horisonte, que a rodeava.—Tudo me é tão conhecido ainda!

—Lembra-se d'aquelles freixos, lá em baixo, ao descer para os Palheiros

Queimados?—perguntou Mauricio, apontando para o logar que designava.

—Bem sei. É onde está a fonte da Moira.

—E aonde nós um dia fomos com a Anna do Védor colher agriões. Está certa?

—É verdade. E por signal que nos sahiu da quinta do Emigrado um cão grande que lá havia, e que se atirou a mim com uma furia!

—E não se lembra de quem lhe acudiu?

—Sim, foi o snr. Mauricio, mas tambem lhe valeu a Anna do Védor, que se não fosse ella, vamos, não sei o que seria.

—Ainda assim não impediu que o endiabrado me mordesse no pulso; ainda conservo a cicatriz. Olhe.

E Mauricio mostrou o pulso a Bertha, que se curvou para observar o vestigio d'aquelle episodio de infancia.

—É verdade—proseguiu Bertha, já mais á vontade—e a boa ti'Anna do Védor? que tanto lhes queria, a si e ao snr. Jorge? Sei que vive; mas ainda é o que era d'antes? alegre, robusta, franca?…

—Quem? a ti'Anna?!—acudiu Thomé—verás, Bertha, que ainda te parece mais nova. Aquillo é que é mulher de casa! É um gosto vêl-a, no meio dos campos, de mangas arregaçadas e chapéo de palha na cabeça e de enxada ou mangoal na mão. O seu trabalho vale por o de dois homens. Pois n'uma eira?

N'este ponto Thomé deu um assobio, que exprimia a grande conta em que tinha o trabalho de Anna do Védor.

—O filho está regedor.

—É uma boa e generosa alma—tornou Mauricio, com uma expressão de sincera sympatia.—E quer-nos como a filhos.

—Isso quer—confirmou Thomé—quando falla nos seus meninos que trouxe ao collo e que sustentou com o seu leite, luzem-lhe os olhos.

—E tambem me ralha com uma severidade!

—Vamos, que ella bem sabe porque o faz. Então pensa que não lhe merece ainda mais?

—Não digo que não. Só me queixo de certa parcialidade que manifesta por

Jorge.

—E como vae o snr. Jorge?—perguntou Bertha.

—Muito bem. Fez-se caixeiro. Não sabe? Atirou-se aos livros e á papelada da casa, como um homem, e já não ha de tirar-lhe palavra que não seja de contas e de negocios.

—E é um homem ás direitas—disse Thomé, com gravidade.

—Pois sim, mas podia distrahir-se mais um bocado. Mas então? Deu-lhe

Deus aquelle genio frio como gêlo!…

—Eu não sei lá se é frio ou se é quente. O que sei é que é um rapaz de juizo e que, se continuar assim, ha de remediar muita doudice, antiga e moderna, que ha lá por casa.

—A moderna é commigo, aposto. Não tem razão. Eu tambem estou decidido a trabalhar. Se ainda aqui me vê, a culpa não é minha.

—Então vae partir?—perguntou Bertha.

—Que remedio, Bertha? Cumpro uma dura lei. Deixo o coração por aqui, acredite; por esses valles, por essas devezas, por essas ribeiras… Mas que lhe hei de fazer?

—E para onde vae?

—Eu sei? Para onde me levar o destino. Mas o Thomé ri-se! Seu pae ri-se, Bertha!

—Rio-me da lamuria. Quem o ouvir, ha de acreditar que elle parte devéras e que lhe custa immenso a partida.

—E então?

—A mim já me custa a crêr que o snr. Mauricio nos deixe; mas, a isso succeder, não ha de ser a chorar que arranjará as malas.

—É injusto com o meu coração. É o que se segue.

—Não, senhor; não sou; mas sei o que é ter vinte annos, e sei o que é essa cabeça. E agora o nosso caminho é por aqui. O snr. Mauricio, se quizer dar-nos o prazer da sua companhia, tem no fim d'esta rua uma casa para o receber, senão…

—Agradecido, Thomé. Outro dia será. Não quero perturbar com a minha presença as alegrias de familia. Adeus, Bertha, continuaremos a ser os amigos que eramos d'antes, não é verdade?

—Porque não, Mauricio… snr. Mauricio?

E Bertha, com um sorriso de generosa confiança, estendeu a pequena e delicada mão á que Mauricio lhe offerecia.

Este, com uma galanteria, que o seculo actual traz quasi esquecida, levou-a cavalheirosamente aos labios, movimento que augmentou as côres nas faces de Bertha; depois, cortejando-a com perfeita elegancia, partiu a galope.

Bertha seguiu-o por muito tempo com os olhos e ficou pensativa, depois que o perdeu de vista.

Thomé, que notára tudo isto, não deixou passar muito tempo que não admoestasse a filha.

—Olha cá, Bertha, tem cautela com o teu coração, que não vá elle por ahi deixar-se prender. Eu não sei como é costume viver-se hoje lá na cidade, mas aqui sei o que vae. Eu te digo, não ponhas muita confiança n'estas amizades de Mauricio. Não digo que elle seja mau rapaz, mas a cabeça é que é assim não sei como. E n'isso mesmo é que está o perigo. Aqui ha poucos rapazes que agradem mais do que elle; é bem feito, vivo, esperto, generoso… Na tua idade, e com a educação que tens, não era para admirar que te agradasses de um rapaz assim. Mas, pensa emquanto é tempo, filha, no mal que a ti propria fazias, se estouvadamente te deixavas enfeitiçar. Elles são os fidalgos que sabes, e mais fidalgos ainda se julgam do que são. Tu, rapariga, és minha filha, e eu sou um lavrador, que já servi n'aquella casa. Entendes? Ó Bertha, por quem és, não me faças arrepender da educação que te dei. Porque eu, ás vezes, tenho minhas duvidas. Digo eu commigo: «Faria eu bem em educar minha filha assim? Se a tivesse deixado viver na aldeia e a creasse como filha de lavrador, dava-lhe um marido lavrador, e ella havia de estimal-o e de ser feliz com elle, e de olhar com amor pelos filhos descalços, que lhe andassem pelos campos e apegados á saia de baêta; mas assim… Quem poderá costumal-a a isso? Mas que outro marido póde ella escolher?»

Bertha escutou o pae com um sorriso nos labios, mas sorriso que não annullava a expressão melancolica e pensativa, que conservavam o resto das feições. Mais de uma vez se perturbou ao ouvil-o, mas cêdo adquiriu a serenidade habitual.

N'este ponto atalhou-o, dizendo:

—São prudentes os conselhos que me dá. Farei por não os esquecer. Mas não se inquiete pela minha sorte. Nunca me deixei illudir pelos bens que a sua bondade me teem permittido gozar na vida; não perdi de vista o que sou. Sei ao que devo aspirar, e farei por não collocar a felicidade muito acima do alcance de meu braço. Na amizade de Mauricio creio que não haverá perigos para mim; mas se os houver, hei de saber fugir-lhes. Foram meus companheiros, quando brincavamos todos n'aquella casa; quero-lhes por isso, mas sei o que d'elles me separa.

—Lá de Jorge nada temas. É um caracter serio aquelle. Se disser que é teu amigo, é teu amigo devéras; senão, não t'o diria; mas este…

—Jorge é ainda o que sempre foi. Já em criança era o mesmo. Sempre tão serio!

—Agora ainda mais. Elle hoje não pensa senão nos negocios da casa, que tomou a seu cuidado e que levará a bom fim. Creio-o. Vem quasi todas as noites a nossa casa; vem de noite por causa do pae, porque o velho não tem cura, a querer-me mal.

—Sim?! Mas que pena!

—Deixal-o lá, que eu em vingança hei de fazer-lhe o bem que puder.

Poucos momentos depois chegavam a casa o pae e a filha; esta foi recebida nos braços da boa Luiza, que a devorou com beijos e a banhou de lagrimas generosas; os irmãos pequenos olhavam espantados para Bertha que não conheciam, e cujas maneiras de senhora estranhavam. Os criados felicitavam-n'a tirando o chapéo e murmurando phrases incompletas.

Bertha no meio d'aquella effusão, d'aquelle cordial acolhimento, d'aquelle renascer dos dias passados e despertar de memorias queridas, sentia-se feliz.

Debalde Thomé, um dos mais folgados corações alli presentes, bradava que era tempo de pôr termo á festa, que cada um tinha a sua vida a tractar, e que Bertha precisava de descanço; os abraços succediam-se, os beijos estalavam, as perguntas cruzavam-se e interrompiam as respostas em meio.

Prolongou-se por muito tempo aquelle grato alvoroço, que produz a chegada de uma pessoa querida. A ordem, a etiqueta, os costumes, tudo esquece; a manifestação é ruidosa, irresistivel, desordenada, anarchica. Sómente quando principia a acalmar-se este agradavel delirio de alma, é que se repara nas irregularidades da scena, e que se remedeiam.

Succedeu d'esta vez que só passada meia hora Luiza notou que tinham estado tanto tempo no quinteiro, quando os esperava a sala que ella de proposito e tão anticipadamente preparára para a recepção.

A familia recolheu-se então, principiou mais regular e ordenada conversa entre mãe e filha, e prolongou-se até tarde.

Thomé foi n'esse dia pouco vigilante nos campos e mais caseiro do que era seu costume.

Foram momentos festivos para a Herdade, d'estes que é inutil descrever, porque não ha expressões que bem traduzam o que se sente então. Suppram-n'as as recordações do leitor; e muito sem conforto deve ter sido o seu passado, se não lhe dá elementos para conceber alegrias d'estas.

Os fidalgos da Casa Mourisca

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