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Jorge continuou no seu quarto a serie de meditações com que trouxera occupado o espirito toda a manhã. Abria alguns livros, consultava-os com attenção, afastava-os depois com impaciencia, porque raros pareciam responder cabalmente ás mudas interrogações que elle lhes dirigia.

A bibliotheca da Casa Mourisca era na maior parte composta de livros proprios para a cultura do espirito, mas sem definida tendencia para uma applicação pratica qualquer.

Jorge tinha o gosto bem educado e não era indifferente ás obras de pura arte; mas d'esta vez dominava-o uma ideia fixa, um ardente desejo de se instruir nos preceitos positivos de economia rural, e nos conhecimentos necessarios para a realisação da grande obra em que meditava. Algumas arithmeticas, um ou outro raro folheto de agricultura e poucos numeros soltos de jornaes estrangeiros, foi tudo quanto pôde encontrar e que consultou, sem que o satisfizessem as noções rudimentares que n'elles lia. A pequena livraria do tio, á qual devêra grande parte dos seus avançados principios sociaes, estava já esgotada por elle; além de que não abundava em livros de indole verdadeiramente didactica.

Depois de ter folheado por algum tempo todas essas brochuras, Jorge fechou os olhos, como para concentrar o espirito, e resolver só por elle os problemas, cuja solução em vão procurára na leitura. E a razão de Jorge era poderosa bastante para o servir no empenho; colheu d'ella mais fructos do que das paginas dos livros elementares, que anciosamente consultava.

A estas cogitações veio emfim arrancal-o a chegada de Mauricio, já quasi ao fechar da tarde.

Mauricio, logo que transpôz a porta, arremessou o chapéo sobre a mesa com certa vivacidade de movimentos, que trahia uma profunda agitação. Atravessou silenciosamente o quarto com passos apressados, sentou-se ou antes deixou-se cahir sobre uma cadeira, e correu a mão por a fronte, sacudindo para traz os cabellos com um movimento febril.

Jorge, que percebeu em todos estes signaes um dos costumados frenesis do irmão, interrogou-o:

—Que é isso, Mauricio? Que é o que tens? Que te succedeu lá por fóra?

—Deixa-me, Jorge—respondeu Mauricio, levantando-se outra vez e pondo-se a passear no quarto.—Se soubesses como eu venho suffocado de raiva?

—Contra quem?

—Contra esta canalha d'esta gente do campo. Uns miseraveis insolentes que lançam a lama suja, onde nasceram e vivem, á face da gente com o mais intoleravel arrojo! Mas eu esmago-os com a sola da bota!

—Bom! Temos bravatas de fidalguia! Esses arreganhos de senhor feudal hoje são de mau gosto, Mauricio. Olha que já passou o tempo d'elles.

—É sempre tempo de castigar um insolente. O essencial é que se tenha sangue nas veias e pundonor no coração.

—E sangue tambem no coração—emendou Jorge, sorrindo.—Olha que tambem é lá preciso.

—Não rias, Jorge! Por quem és!—tornou o irmão despeitado.—Bem vês que fallo seriamente.

—Então conta-me tudo. Receio que haja ahi alguma das tuas exagerações.

—Não exagero. Esta manhã fui caçar, como sabes. Corri o monte com pouca felicidade; os cães pareciam ter perdido o faro. Voltava já para casa sem esperança, quando, alli pela Quebrada do Moinho, levantaram-se-me quatro codornizes; atiro-lhes, mas mal as feri. Ellas seguem na direcção das azenhas, atravessam os campos que estão em baixo e vão poisar no pinhal que fica para lá da prêsa do Queimado. Sabes? Eu desço com os cães, e, para não dar a volta do portello, galguei o murito da fazenda do Luiz da Azinhaga e ia para atravessar o campo, quando aquelle grosseirão do matto, aquelle villão infame sahe da casa da eira, aonde andava com os criados, e berra-me: «Olá, ó fidalguinho, isto aqui não é terra baldia, nem roupa de francezes.» Eu olhei para elle, mas não lhe respondi e continuei andando; elle tornou de lá, e já caminhando para mim: «Menino, não ouviu? Eu não quero os meus campos trilhados.» «O que estragar, pagarei», respondi-lhe já azedado. O estupido soltou uma risada insolente, e disse-me: «Com o que? Pergunte primeiro em casa se o que lá tem chega para pagar o que devem já.» Ouvindo isto, perdi a cabeça e corri para o homem, exclamando: «Para que não duvides da minha palavra, eu te vou já pagar uma divida, canalha.» Elle estava desarmado, mas recuou para pegar em uma enxada; os homens que trabalhavam na eira correram para mim com malhos e mangoaes; armei a espingarda logo; o primeiro que me ameaçasse estendia-o, palavra d'honra! N'isto ouvi uns gritos por detraz de mim. Era o Thomé da Povoa que passava e que correu a separar-nos. Fez-nos um sermão e trouxe-me quasi á força d'alli. Ahi tens como está esta gentalha. Já não podemos sahir sem nos arriscarmos a ser insultados e assassinados. Quem deu a esses miseraveis o atrevimento de fallar nas dividas da nossa casa?

—Quem as contrahiu e não procura pagal-as—respondeu, triste mas placidamente, Jorge.

E logo depois acrescentou:

—Mas dizes bem, Mauricio, foi uma desagradavel occorrencia. Já vês agora que eu tinha razão no que te dizia esta manhã.

—O que foi?

—Isto não póde continuar assim, Mauricio. Nem tu nem eu temos animo para soffrer humilhações, e ellas são inevitaveis.

—Inevitaveis?! Eu te juro…

—Não jures; não é pela violencia que os obrigaremos a calar. Ou, se se calarem, tem a certeza de que o olhar com que nos seguirem, o pensamento que lhes despertarmos, serão para nós igualmente humilhantes. Ha muito que eu adivinho esse pensamento na maneira por que nos fitam. E foi isso que me fez pensar.

—Mas que intentas fazer então? Qual é o teu plano?

—Fazer-me respeitado; mostrar que não sou inferior a elles.

—Sim, mas de que maneira?

—Resgatando a nossa casa, calando com a paga a bôca d'esses credores insolentes, e collocando-nos, pela prosperidade das nossas terras, ao lado d'elles todos, e acima, pela nobreza dos nossos sentimentos.

—Queres então fazer-te lavrador?

—Quero trabalhar. Olha, Mauricio, tenho pensado muito estes ultimos dias, e hoje mais do que nos outros. A nossa regeneração depende de nos despirmos dos preconceitos sem fundamento, com que nos educaram. A nossa perda é uma inevitavel e justa consequencia do nosso louco modo de pensar e de viver, do nosso falso orgulho e dos nossos habitos viciosos. Pois que quer dizer este infatuamento com que fallamos dos nossos avós? Qual foi a acção nobre, magnanima, que deu tal esplendor a nossa familia, que se não possa apagar esse esplendor com a vida de ociosidade, de desleixo e de dissipação ingloria que levamos? A chronica não é clara a esse respeito. Tivemos guerreiros que morreram pela patria, é nobreza, de certo; mas quantos soldados obscuros não existiram entre os ascendentes d'esses pobres homens que por ahi ha, tão heroes como os nossos, mas ignorados? tivemos um ou dois bispos; elles, algum pobre sacerdote, modesto e humilde, que fez por ventura mais serviços á religião do que o nosso parente mitrado; mas não lhes deu isso nobreza. O que lhes faltou talvez foi um avoengo que prestasse serviços particulares a algum rei benevolente, que em compensação o fez nobre por toda a eternidade; porque tambem ha d'estas raizes em muitas arvores genealogicas; desengana-te.

—Estás eivado de uma philosophia democratica e revolucionaria, que não sei onde te levará, Jorge. E em vista d'isso que resolves?

—Resolvo não continuar a merecer essas humilhações, que não posso deixar de reconhecer que são justas. Elles teem mais direito de nos desprezar do que nós a elles.

—Desprezar-nos!—repetiu indignado Mauricio.

—Sim, sim; desprezar-nos. E senão repara. A nossa casa deve muito. Grande parte dos nossos bens estão hypothecados. O nome da nossa familia não é já segura garantia nos contractos, e os emprestimos, que todos os dias os nossos procuradores contrahem, são obtidos por um preço que em pouco tempo nos levará á miseria. Na aldeia todos sabem isto. Não queres pois que nos desprezem, ao verem-nos, rapazes de vinte annos, robustos, e com energia e intelligencia, gastar ociosamente a vida e a juventude em passeios e em caçadas, olhando por cima do hombro para esses homens que talvez ámanhã, authorisados por a lei, nos virão pôr fóra de nossas casas e tomar posse d'ellas? É acaso nobre este nosso proceder, Mauricio? Esta cegueira, com que vamos na corrente que nos arrasta ao precipicio, não merece pelo menos um sorriso de compaixão?

—Tu exageras, Jorge. Acaso teremos já chegado a taes extremos, que…

—Nem tu imaginas a que extremos temos chegado; mas ainda nos poderemos salvar, se quizermos ser homens.

—E como?

—Mudando de vida, applicando-nos devéras á restauração d'esta casa.

—Mas…

—D'aqui a pouco tenciono procurar o pae e fallar-lhe desenganadamente, pedir-lhe que me deixe olhar por mim proprio para a administração das nossas propriedades, que nas mãos de fr. Januario caminham a uma perda certa.

—Mas que entendes tu de administração?

—Aprenderei. O interesse é um grande mestre. Não tiveram outro esses rusticos proprietarios, que por ahi vemos enriquecer.

Mauricio ficou pensativo.

A ideia do irmão parecia havel-o ferido profundamente. Estava-lhe achando um sabor de poesia que lhe agradava. Porque Mauricio, não tendo o caracter meditativo e o espirito analytico de Jorge, era nas coisas da vida guiado mais pela imaginação do que pela razão. Se uma causa o seduzia, adoptava-a, sem a julgar. Igualmente a rejeitaria, se á primeira intuição lhe desagradasse. Era tão facil de se enthusiasmar por o que ao principio repellira, que não se podia ter muita confiança n'aquelle ardor. Lavrava muito depressa a lavareda para ser de longa duração.

Assim aconteceu d'esta vez, pois voltando-se para Jorge, disse-lhe com uma impetuosidade juvenil:

—Dizes bem, Jorge. O nosso dever manda-nos acabar com esta vida de ocio e de inutilidade. É assim. É preciso que sejamos homens. Temos uma missão a cumprir, generosa e nobre. Trabalhemos. O trabalho traz comsigo a recompensa e os gozos. De certo deve sentir-se orgulhosa e satisfeita a alma do que trabalha, porque vê que cumpre um dever. O que se nos figura fadiga é prazer. Pois não te parece que um escriptor, por exemplo, deve ser feliz nas horas de composição? e que o artista curvado sobre os instrumentos do seu officio, e o lavrador vergado no campo, nem sequer sentem o suor que lhes corre da fronte? Tens razão, trabalhemos, a poesia visitar-nos-ha nas nossas horas de labor, e não nos deixará sentir saudades dos perdidos ocios de fidalgo.

Jorge escutava o irmão com um sorriso triste e innocentemente malicioso, e commentava com um movimento de cabeça uma e outra d'estas estrophes em honra do trabalho. Quando Mauricio concluiu, elle ponderou-lhe com a sua habitual serenidade:

—Valha-te Deus, Mauricio, que estás tu ahi a dizer? Não sonhes nem adoptes uma resolução séria, como a de que fallo, sob o dominio d'essas illusões. Vê as coisas como ellas são. O trabalho é nobre por certo, mas a poesia d'elle nem sempre a percebe quem muito de perto lhe conhece as fadigas. Não vás seduzido para a carreira do trabalho, porque cedo te desanimaria um cruel desengano. É preciso entrar n'isto guiado pela razão, e não por um enthusiasmo fugaz. O escriptor nas horas de composição, e principalmente o artista e o lavrador nas fadigas do seu mister, não teem esses gozos que fantasias; antes devem sentir muitas vezes grandes desalentos e grandes fastios. O que os estimula, mais do que a poesia, é o dever. Recompensas ha, não nego que as haja, além das materiaes. Deve haver uma certa tranquillidade de consciencia, uma ausencia de remorsos, isto de um homem poder fitar sem vergonha os que trabalham a seu lado, como se lhes dissesse: «Tambem tenho direito a viver.» Isso sim; mas o ideal, que sonhas, anda longe das officinas, das fabricas e dos gabinetes de estudo, ou se ahi penetra, é á maneira d'aquelles deuses do paganismo, que acompanhavam invisiveis os heroes que protegiam. Estarás sob a influencia d'elle, mas não o verás. Se a contemplação d'essa divindade é a recompensa que esperas, deixa-te antes ficar a montear por estas aldeias.

Mauricio sorriu, objectando ao irmão:

—És suspeito, Jorge. Tu duvidas encontrar a poesia ao teu lado, quando trabalhares, porque ainda a não viste, aonde todos a vêem, ahi por essas devezas, valles e ribeiras.

—Vi-a ainda hoje em casa de um lavrador, aonde se trabalhava; tu é que não a vias lá.

—Ah! então já confessas que ella está com os que trabalham?

—Mas não a vêem esses. Não a viu Thomé, nem nenhum dos seus criados; vi-a eu que estava de fóra.

—E quem deu a Thomé sentidos para a vêr?

—A ninguem faltam, creio-o. Mas quando se trabalha com verdadeiro ardor, a visão encobre-se prudentemente, como se soubesse que quem a tem presente, tão namorado está d'ella, que o assaltam as distracções dos namorados. E o trabalho é exigente e severo; ha uns cuidados pequeninos, impertinentes, prosaicos, de que elle não prescinde. Ás vezes é util até certa irritação provocada pelas difficuldades fastidiosas que elle suscita; instigam, estimulam brios para vencêl-o.

Continuaram os dois irmãos este dialogo e assentaram emfim na resolução de mudar de vida, cada um com o grau de firmeza propria do seu caracter, e portanto com firmeza desigual. Decidiram fallar n'aquelle mesmo momento a D. Luiz.

A occasião era propicia. Frei Januario dormia ainda a sesta, e portanto o fidalgo devia estar só no seu quarto.

Era já noite. O luar coloria com tintas magicas a paisagem fronteira á Casa Mourisca. Esta desenhava o seu vulto negro sobre o fundo azul pallido do céo sem estrellas. A ramaria dos carvalhos e a queda da agua nas fontes levantavam vozes melancolicas do meio das indistinctas sombras da quinta.

Em noites assim conservava-se D. Luiz longo tempo á janella do quarto. A fronte encostada á mão, os olhos fitos nos pontos illuminados da perspectiva, e o pensamento… ai, quem sabe porque melancolicas paragens andava o pensamento do pobre velho?! Passadas magnificencias, festas, alegrias e triumphos de tempos mais felizes, memorias de vida n'esta habitação hoje silenciosa, e por toda a parte, e sempre, a pallida imagem da filha morta, o enlevo de toda a sua vida, que ao desapparecer lh'a deixou escura e desencantada… que outras podiam ser as visões presentes áquelle espirito sombrio?

Pobre velho!

Foi para este quarto escuro que se dirigiram os dois irmãos.

Os fidalgos da Casa Mourisca

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