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OS FIDALGOS DA CASA MOURISCA I

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A tradição popular em Portugal, nos assumptos de historia patria, não se remonta além do periodo da dominação arabe nas Hespanhas.

Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos, de romanos e de wisigodos. É, porém, entre elle noção corrente que, em outros tempos, fôra este paiz habitado por mouros, e que só á força de cutiladas e de botes de lança os expulsaram os christãos para as terras da Mourama. Os vultos heroicos de reis e cavalleiros nossos, que se assignalaram nas luctas d'essa época, ainda não desappareceram das chronicas oraes, onde vivem illuminados por a mesma poetica luz das xacaras e dos romances nacionaes; e hoje ainda, nas dansas e jogos que se celebram nos logares publicos das villas e aldeias, por occasião das principaes solemnidades do anno, apraz-se a memoria do povo de recordar os feitos d'aquelles tempos historicos por meio de simulados combates de mouros e christãos.

Nos contos narrados em volta da lareira, onde nas longas noites de serão se reune a familia rustica, ou ás rapidas horas d'uma noite de estio, na soleira da porta, ao auditorio attento que segue com os olhos a lua em silenciosa carreira por um céo sem estrellas, avulta uma creação extremamente sympathica, a das mouras encantadas, princezas formosissimas que ficaram d'esses remotos tempos na peninsula, em paços invisiveis, á espera de quem lhes venha quebrar o captiveiro, soltando a palavra magica.

Falla-se em diversos pontos das nossas provincias, com a seriedade que é propria a uma arreigada crença, de thesouros enterrados, que os mouros por ahi deixaram, na esperança de voltarem um dia a resgatal-os, e já não tem sido poucas as escavações emprehendidas no ávido intuito de os descobrir.

Esta mesma noção historica do povo é a que dá logar a um outro frequente facto. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palacio, um solar de familia, distincto dos edificios communs por uma qualquer particularidade architectonica mais saliente, ouvireis no sitio designal-o por o nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda ahi memoria da sua fundação, a chronica lhe assignará infallivelmente como data a lendaria e mysteriosa época dos mouros.

Era o que succedia com o solar dos senhores Negrões de Villar de Corvos, que, em tres leguas em redondo, eram por isso conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca.

Não se persuada o leitor de que possuia aquelle solar feição pronunciadamente arabe, que justificasse a denominação popular, ou que mãos agarenas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim. Ás pequenas torres quadradas, que se erguiam, coroadas de ameias, nos quatro angulos do edificio, ao desenho ogival das portas e janellas, ás estreitas setteiras abertas nos muros, e finalmente a certo ar de castello feudal, que um dos antepassados d'esta fidalga familia tentou dar aos paços de sua residencia senhoril, devêra ella a qualificação de mourisca, que persistira, apesar dos protestos da arte. Nenhum estylo architectonico fôra na construcção escrupulosamente respeitado; o gosto e capricho do proprietario presidiram mais que tudo á traça e execução da obra; não ha pois exigencias artisticas que me imponham a obrigação de descrevel-a miudamente.

Diga-se porém a verdade; fossem quaes fossem os defeitos de architectura, as incongruencias e absurdos d'aquella fabrica grandiosa, quem, ao dobrar a ultima curva da estrada irregular por onde se vinha á aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquelle vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casaes disseminados por entre a verdura das collinas proximas, mal podia reter uma exclamação de surpreza e involuntariamente parava a contemplal-o.

Ou o sol no poente lhe doirasse a fachada de granito, ou as ameias, que o coroavam, se desenhassem como negra dentadura no céo azul, alumiado pela claridade matinal, era sempre melancolico e triste o aspecto d'aquella residencia, sempre magestoso e severo.

Reparando mais attentamente, outros motivos concorriam ainda para fortalecer esta primeira impressão. O tempo não se limitára a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta; derrocára-lhe aqui e além uma ameia ou um balaustre do eirado, mutilára-lhe a cruz da capella, desconjunctára-lhe a cantaria em extensos lanços de muro, abrindo-lhe intersticios, d'onde irrompia uma inutil vegetação parasita: e esta permanencia de estragos, trahindo a incuria ou a insufficiencia de meios do proprietario actual, iniciava no espirito do observador uma serie de melancolicas reflexões.

E se o movesse a curiosidade a indagar na visinhança informações sobre a familia que alli habitava, obtel-as-ia proprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontaneos juizos.

Os chamados Fidalgos da Casa Mourisca eram actualmente tres. D. Luiz, o pae, velho sexagenario, grave, severo, e taciturno; Jorge e Mauricio, os seus dois filhos, robustos e esbeltos rapazes: o mais velho dos quaes, Jorge, ainda não completára vinte e tres annos.

A historia d'aquella casa era a historia sabida dos ricos fidalgos da provincia, que, orgulhosos e imprevidentes, deixaram, a pouco e pouco, embaraçar as propriedades com hypothecas e contractos ruinosos, desfallecer a cultura nos campos, empobrecer os celleiros, despovoar os curraes, exhaurir a seiva da terra, transformar longas varzeas em charnecas, e desmoronarem-se as paredes das residencias e das granjas e os muros de circunscripção das quintas.

Filho segundo de uma das mais nobres familias da provincia, D. Luiz fôra pelos paes destinado para a carreira diplomatica, na qual entrou apadrinhado e favorecido por os mais altos personagens da côrte.

Nas primeiras capitaes da Europa, em cujas embaixadas serviu, obteve o fidalgo provinciano um grau de illustração e de tracto do mundo, um verniz social, que nunca adquiriria se, como tantos, de moço se creasse para morgado.

Quando, por morte do primogenito, veio a succeder nos vinculos, D. Luiz podia considerar-se, graças á occupação dos seus primeiros annos de mocidade, como o mais instruido e civilisado proprietario da sua provincia; e como tal effectivamente foi sempre havido pelos outros, que o tractavam com uma deferencia excepcional.

Ainda depois da morte do irmão, D. Luiz, costumado ao viver da grande sociedade e á esplendida elegancia das côrtes estrangeiras, não abandonou a carreira que encetára. Secretario de embaixada em Vienna, casou alli com a filha de um fidalgo portuguez, que então residia n'essa corte, encarregado de negocios politicos.

Ao manifestarem-se em Portugal os primeiros symptomas da profunda revolução, que devia alterar a face social do paiz, D. Luiz mostrou-se logo hostil ao movimento nascente, e abandonando então o seu logar diplomatico, voltou ao reino para representar um papel importante nas scenas politicas d'essa época.

Ahi tiveram origem grande parte dos desgostos domesticos, que lhe amarguraram o resto da vida.

Os parentes de sua esposa abraçaram a causa liberal.

D. Luiz, com toda a intolerancia partidaria, rompeu completamente as relações com elles, ferindo assim no intimo os affectos mais sanctos da pobre senhora, que sentia esmagar-se-lhe o coração entre as fortes e irreconciliaveis paixões dos que ella com igual affecto amava.

O rancor faccioso foi ainda mais longe em D. Luiz. Impelliu-o á perseguição.

O irmão mais novo da esposa, obedecendo ao enthusiasmo de rapaz e á vehemencia de uma convicção sincera, sustentára com a penna, e mais tarde com a espada, a causa da ideia nova, que tanto namorava os animos generosos e juvenis.

Sobre a bella e arrojada cabeça d'aquelle adolescente pesaram as sombras das suspeitas e das vinganças politicas; e D. Luiz, cego pela paixão, não duvidou em fazer-se instrumento d'ellas.

Este era o irmão querido da esposa, que o fidalgo estremecia; mas nem as supplicas, nem as lagrimas d'ella puderam abrandar a força d'aquelle rancor.

O imprudente moço viu-se perseguido, prêso, processado e em quasi imminente risco de expiar, como tantos, no supplicio o crime de pensar livremente. Conseguindo, quasi por milagre, escapar á furia dos seus perseguidores, emigrou para voltar mais tarde n'essa memoranda expedição, que principiou em Portugal a heroica iliada da nossa emancipação politica.

Guerreiro tão fogoso, como o fôra publicista, o pobre rapaz não assistiu porém á victoria da sua causa. Ao raiar da aurora liberal, por que tanto anhelava, cahiu em uma das ultimas e mais disputadas refregas d'aquella sanguinolenta lucta, crivado de balas inimigas, sendo a sua ultima voz um grito de enthusiasmo pela grande ideia, em cujo martyrologio se ia inscrever o seu nome.

A morte d'este enthusiasta levou o lucto e a tristeza ao solar de D. Luiz. O coração amoravel e extremoso da infeliz senhora recebeu então um golpe decisivo; das consequencias d'aquella dôr nunca mais podia ella convalescer. A sua vida foi depois toda para luto e para lagrimas.

Fez-se a paz, implantou-se no paiz a arvore da liberdade; D. Luiz deixou então a vida da côrte e veio encerrar no canto da provincia os seus despeitos, os seus odios e os seus desalentos. Trouxe comsigo um enxame de misanthropos, a quem o sol da liberdade igualmente incommodava, e que tinham resolvido pedir á natureza conforto contra os suppostos delictos da humanidade.

O solar do fidalgo transformou-se pois em asylo de muitos correligionarios, como elle desgostosos e irreconciliaveis com a nova organisação social.

Instituiu-se alli uma pequena côrte na aldeia, uma especie de assembleia ou conventiculo politico, que não poucas vezes attrahiu as vistas dos liberaes desconfiados e as ameaças dos mais insoffridos. Havia alli homens de todas as condições, e alguns de illustração e sciencia.

A hospitalidade do fidalgo era magnifica. D. Luiz mostrava ignorar, ou não querer saber, qual o preço por que ella lhe ficava. Indifferente a tudo, dir-se-ia sêl-o tambem á ruina da sua propria casa, que apressava assim.

A victoria da causa contraria; a morte, em curtos intervallos, de tres filhos, que parecia cahirem victimas de uma sentença fatal; o receio pela vida dos outros; a tristeza e doença progressivas da esposa, a quem aquelles odios e luctas tinham despedaçado o coração; ás vezes uma vaga consciencia da sua situação precaria, e por ventura ainda remorsos pelas violencias, a que os odios politicos o impelliram, quebrantaram o caracter, outr'ora varonil, d'aquelle homem, que desde então começou a mostrar-se taciturno e descoroçoado. A prova evidente de que alguns remorsos tambem lhe torturavam o espirito fôra a insolita generosidade, com que recebeu e gasalhou permanentemente em sua casa um pobre soldado do exercito liberal, meio mutilado pela guerra d'esses tempos, e que tinha sido o fiel camarada do infeliz mancebo, contra quem tanto se encarniçára o odio do implacavel realista.

Viera o soldado entregar á esposa do fidalgo uma medalha, ultima lembrança do irmão que lh'a enviára, quando já agonisante no campo do combate. Havia-a confiado ao camarada para que a entregasse áquella, a quem tanto queria.

D. Luiz não só permittiu que o soldado fizesse a entrega em mão propria da esposa, mas deixou-o com ella em larga conferencia, não querendo que a sua presença a reprimisse na ancia natural de saber as menores particularidades da vida e da morte do infeliz, de quem o emissario fôra companheiro inseparavel. Não se limitou a isso a tolerancia do fidalgo. Viu, sem a menor reflexão, que o mensageiro se demorava alguns dias na Casa Mourisca, e não oppôz resistencia alguma ao pedido, que a esposa mais tarde lhe fez para que o deixasse ficar alli, no logar do hortelão que fallecêra.

Este facto insignificante foi de não pequena influencia nos destinos d'aquella familia.

Os filhos de D. Luiz, creados no meio d'essa côrte de provincia, cresciam sob influencias que actuavam d'uma maneira contradictoria sobre os seus caracteres infantis.

Não lhes faltavam mestres que os instruissem, que muitos eram os habilitados para isso nas salas do fidalgo, refugio de tantos illustres descontentes. Graças a estas especiaes condições, puderam os dois rapazes receber uma educação, difficil de conseguir em um canto tão retirado da provincia, como aquelle era.

Mas, ao lado da lição dos mestres, que, juntamente com a sciencia, se esforçavam por imbuir-lhes os seus principios politicos, aos quaes se atinham como a artigos de fé, havia uma outra lição mais obscura, mas por ventura mais efficaz. Era a lição da mãe e a do veterano.

A esposa de D. Luiz era uma senhora de esmeradissima educação e de um profundo bom senso. Amava o marido, mas via com pezar os excessos, a que o impelliam as suas opiniões politicas. Educada no seio de uma familia liberal, possuia sentimentos favoraveis ás ideias novas; mas sabia guardal-os no coração, para não despertar conflictos na familia.

Porém, no tracto intimo entre mãe e filhos, trahia-se muita vez essa prudente discrição, e as fidalgas crianças iam recebendo a doutrina, de que os outros lhes blasphemavam como de heresias, e naturalmente, seduzidas pela origem d'onde ella lhes vinha, abriam-lhe de melhor vontade o coração, do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres.

Demais, ouviam tantas vezes a mãe fallar-lhes do irmão que perdêra, dos seus sentimentos generosos, do seu nobre caracter e da sua dedicação heroica a bem da causa liberal, que elles, e o mais velho sobre tudo, costumaram-se a venerar a memoria do tio, como a de um heroe e a de um martyr e a vêl-o aureolado de um verdadeiro prestigio lendario.

Para isto porém concorreu mais que outrem o hortelão.

O velho soldado era uma chronica viva das batalhas e façanhas d'aquelles tempos historicos e um panegyrista ardente do seu pobre official, cujo ultimo suspiro recolhêra.

As crianças sentiam-se instinctivamente attrahidas para a companhia do velho, em cujas narrações pintorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistivel. Feria-lhes fundo a curiosidade a maneira por que elle fallava dos trabalhos da emigração, dos episodios do cerco do Porto, da fome, da peste e da guerra, triplice calamidade que conhecêra de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e finalmente do Imperador, por quem o mutilado veterano professava um enthusiasmo quasi supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural.

As crianças não se fartavam de interrogar aquella testemunha presencial de tantos feitos heroicos.

E assim eram neutralisadas as doutrinas dos pedagogos eruditos, encarregados da educação dos filhos de D. Luiz, e estes iam crescendo affeiçoados aos principios liberaes, que amavam de instincto, antes de os amarem de reflexão.

Mas dias de maior provação estavam reservados para esta familia.

A munificencia que o senhor da Casa Mourisca mantivera no voluntario desterro, a que se condemnou, obrigára-o a enormes e perigosos sacrificios.

D. Luiz nunca propriamente se occupára da gerencia dos seus bens. Fiel aos habitos aristocraticos dos seus maiores, deixára desde muito a procuradores todos os cuidados de administração, e de quando em quando recebia d'elles a noticia de que a sua casa se estava perdendo, sem que se lembrasse de perguntar a si proprio se não seria possivel oppôr um obstaculo áquella ruina.

O padre Januario, ou frei Januario dos Anjos, velho egresso, homem de letras gordas, que se estabelecêra commodamente n'aquella acastellada residencia, como em casa sua, era um d'esses procuradores.

Faça-se justiça ao padre, que não era de má fé, nem em proveito proprio, que elle apressava, com mão poderosa, a decadencia de D. Luiz. Mas, homem de curtas faculdades e de nenhum expediente financeiro, se obtinha capitaes para o seu constituinte, nas crises mais apertadas, era sempre sob condições de tal natureza, que deixava de cada vez mais onerada a propriedade e mais irremediavel o triste futuro d'ella. Succedeu pois o que era de esperar. Dispersou-se a côrte de D. Luiz. Por muito que fizessem os administradores da casa para a manter no costumado esplendor, cêdo principiaram a transparecer os signaes da declinação. Foi o aviso para a debandada. Uns porque delicadamente comprehenderam que a sua permanencia concorreria para augmentar as difficuldades, com que o fidalgo já luctava; outros, porque aspiravam melhores auras, longe d'alli, em solares menos estremecidos pelo vaivem da adversidade; é certo que todos se foram retirando, a um por um, e deixaram a familia só.

Augmentou com este isolamento a taciturnidade do fidalgo.

Depois veio a doença e a morte da esposa, d'aquella que lhe tinha sido tão fiel amiga, que, para lhe poupar desgostos, até escondia as lagrimas, que elle lhe fazia verter; veio essa nova dôr atribular-lhe ainda mais a existencia. E ainda não haviam acabado as provações! No fundo do calice estavam ainda depositadas as gotas mais amargas.

D. Luiz tinha por esses tempos uma filha, mimoso legado da esposa, cuja missão consoladora continuava no mundo. Queria-lhe muito o pae! Se não havia de querer! O coração árido d'aquelle velho e o tenro coração d'aquella criança procuravam-se, como para um pelo outro se completarem.

O velho fidalgo, concentrado e quasi rispido para com os outros filhos, se alguma vez teve nos labios sorrisos desanuviados e sinceros, foi na presença da sua Beatriz. Aquelle desgraçado coração, vazio de affectos, queimado de odios e de paixões esterilisadoras, sentia um grato refrigerio em deixar-se penetrar do suave influxo das caricias da criança, que beijava as faces rugosas do pae e lhe brincava com os cabellos prateados; e muitas vezes, n'esses momentos, lagrimas de desafogo dissipavam a cerração que ia na alma d'aquelle homem, que com tanta força sabia odiar.

E não era só o pae que experimentava essa influencia.

Jorge, que de pequeno fôra pensativo e serio, sentia-se tomar por a bondade e ternura de Beatriz. Criança ainda, tinha ella, quando a sós com o irmão, um olhar penetrante e um gesto grave como o d'elle, um espirito para communicar á vontade com o seu. Ella parecia comprehender o alcance do auxilio que poderia receber um dia d'aquelle rapaz sisudo, que a fitava, e elle sentia-se engrandecer aos proprios olhos, lembrando-se de que seria sua missão na vida proteger aquelle anjo.

Mauricio, genio mais impetuoso e impaciente, dobrava tambem a vontade a um aceno da fragil e delicada creatura, em quem um estouvamento seu desafiava lagrimas. E estas lagrimas eram a unica repressão que o continham nos desvarios.

Pois até n'esta filha feriu o Senhor o pobre ancião.

Criança mimosa, colheu-a um sopro da morte, ainda com o sorriso nos labios, e prostrou-a exanime no tumulo.

Fez-se então devéras escuro no espirito do pae.

Quando aquella pequena fada domestica desappareceu, como uma visão vaporosa em contos de magia, foi como que se todos ficassem em trevas. A vida era tão outra! O ente que absorvia os instantes d'aquelles tres homens, a quem todos tres tributavam os seus mais puros affectos e os seus pensamentos mais constantes, desapparecêra, e elles olhavam-se assustados, meio loucos, como se de subito se lhes tivesse apagado a luz que os alumiava; sentiam a indecisão do homem, a quem no meio da estrada fulmina inesperada cegueira.

Passada a violencia da primeira dôr, em todos ficou a saudade, negra e concentrada em D. Luiz, melancolica em Jorge, expansiva e vehemente em Mauricio; e para todos o nome de Beatriz, a recordação dos seus gestos, das suas palavras, era um talisman, cuja efficacia nunca se desmentia. A alma d'aquelle anjo assistia ainda á familia, que o chorava, e á sua mysteriosa direcção obedeciam todos, sem o perceberem.

Morta aos dezeseis annos, Beatriz vivia ainda nos logares que habitava.

Ha entes assim, cuja influencia posthuma lhes dá uma quasi immortalidade, á maneira da luz sideral, que continua a scintillar para nós, depois de aniquilado o fóco que a emittia.

O padre Januario tornou-se desde então a creatura indispensavel, e a companhia exclusiva de D. Luiz, que via n'elle o unico representante da sua antiga côrte.

Acerrimo partidario do regimen absoluto, apesar de lhe não ser possivel enfeixar dois argumentos serios em defeza d'elle, o padre Januario passava a vida aproveitando os mais ridiculos ensejos para premissas dos seus corollarios anti-liberaes, artificio com que lisongeava as paixões do seu illustre amo e patrono, e mantinha n'elle o fogo sagrado.

O padre achava-se bem n'aquella vida monotona, que exercia sobre si os mais notaveis effeitos analepticos. Podia dizer-se que elle dividia alli o tempo entre duas occupações exclusivas: comer e esperar com impaciencia as horas da comida.

Uma unica circumstancia assombrava os dias do padre. Era a presença na Casa Mourisca do hortelão, em quem fallamos, e que mantinha com elle uma aberta hostilidade. Frei Januario exasperava-se sempre que o ouvia fallar no Imperador e no Cerco e nos Voluntarios da Rainha e na Carta, com o enthusiasmo e a emphase de um soldado d'aquelles tempos. Por vezes rompiam ambos em scenas violentas; por vezes o capellão ia aconselhar ao fidalgo a demissão d'aquelle homem, que ameaçava infectar de liberalismo a familia inteira.

D. Luiz porém, apesar de nunca fallar com o hortelão, não attendia n'estas reclamações o padre. Conservando no seu serviço o veterano, satisfazia a um pedido da esposa, e não teria coragem para fazer o contrario. Assim perpetuavam-se os conflictos entre os dois, porque nem o procurador supportava as rudes franquezas do soldado, nem este os remoques encapotados do procurador.

Tal era a situação da familia da Casa Mourisca na época em que vae procural-a a nossa narração.

Já se vê quão mal assegurado andava o futuro dos dois jovens filhos de D. Luiz. A educação que elles haviam recebido não tendêra a fim algum prático.

D. Luiz não podia soffrer a ideia de dar a seus filhos uma profissão. A nobre carreira das armas, que mais lhes conviria, estava-lhes fechada pelas ultimas evoluções politicas. Os descendentes dos ultra-monarchicos Negrões de Villar de Corvos não eram para se assalariarem em defeza dos principios e das instituições que abalaram os velhos thronos, firmados no direito divino. Nobre era tambem a carreira ecclesiastica, que muitos dos seus antepassados haviam trilhado, apoiados no baculo episcopal; mas se D. Luiz estava persuadido de que já não havia religião n'este territorio de antigos crentes? e se frei Januario teimava, ensinado pelo mallogro de longas pretenções ás honras de umas meias vermelhas, que só se adiantava nas phalanges do clero quem fosse pedreiro livre!

Assim pois os jovens descendentes do velho realista passavam o tempo cavalgando e caçando nas immediações, e fruindo em sancto ocio uma vida, cujos espinhos todos procuravam occultar-lhes. Caminhavam por estrada de rosas para um fundo precipicio, d'onde lhes desviavam as vistas.

Deve porém dizer-se que não caminhavam ambos igualmente desprevenidos; porque de criança era diverso o caracter dos dois, e de dia para dia mais a differença se pronunciava.

Jorge, na infancia como na juventude, fôra sempre grave e reflectido. Nos brinquedos tomava para si o desempenho de um papel serio. Era o pae, o mestre, o commandante, o medico, o padre, tudo aquillo que o obrigasse a um porte sisudo e a uma gravidade de homem. Adolescente, nunca as raparigas do logar lhe ouviram uma phrase atrevida; era sempre uma saudação affectuosa, casta e quasi paternal a que lhes dirigia, ainda quando as encontrasse a sós nas veredas mais solitarias das devezas ou pinheiraes. Ellas habituaram-se áquella juvenil seriedade, saudavam-n'o como a um velho, fallavam d'elle com acatamento, certas de encontrarem n'aquelle silencioso rapaz um protector na occasião precisa, mas nunca um namorado. E comtudo a figura esbelta de Jorge, a varonil e intelligente expressão d'aquelle rosto bem desenhado e um certo fulgor no olhar, que denunciava energia de caracter, obrigavam a desviar-se para o vêr mais de um olhar feminino, quando elle passava com um livro debaixo do braço ou a cavallo pelos caminhos do campo.

As pessoas da indole de Jorge impoem uma especie de estranho temor ás mulheres, que se afastam d'ellas como de um ser mysterioso, d'onde lhes podem vir perigos desconhecidos.

Mauricio, pelo contrario, mal podia dizer de que idade encetára o seu primeiro amor. Com os brinquedos pueris misturára já uns arremedos de galanteio e mais o competente cortejo de arrufos e de ciumes. Desde então nunca lhe andou o coração devoluto, ainda que tambem nunca tão tomado e absorvido por amores, que o fizesse passar por qualquer belleza feminina, sem uma lisonja e sem um sorriso.

Era popularissimo entre as raparigas da aldeia; todas o conheciam, e elle a todas designava por os nomes. A todas não, que para as feias tinha uma memoria ingrata.

Além d'isso Jorge gastava muito do seu tempo na leitura. Era bem provida a livraria da casa. A educação esmerada da mãe e bom gosto litterario tinham enriquecido a bibliotheca dos melhores modelos da litteratura nacional e da estrangeira. Ahi encontraram os dois rapazes farto alimento para a sua curiosidade. Jorge lia tambem furtivamente os poucos livros, espolio do tio fallecido, os quaes o hortelão guardára como reliquia, furtando-os ao auto de fé a que os condemnaria inevitavelmente a indignação do fidalgo e do padre. N'esses livros aprendeu Jorge a pensar, a comprehender o alcance de certas ideias e de certas instituições, e a fazer a justiça devida a muitos preconceitos, que lhe haviam imposto como dogmas.

A um espirito d'estes, educado em observar e reflectir, não podiam passar por muito tempo desapercebidos os numerosos symptomas da decadencia que apresentava a Casa Mourisca. Assim, por vezes vinha-lhe ao espirito uma secreta apprehensão pelo seu precario futuro.

Mauricio, imaginação mais forte, natureza mais ardente, caracter mais frivolo e voluvel, vivia a sua vida de joven fidalgo de provincia; deixava-se ir na corrente dos seus amores faceis, dos seus prazeres e das suas dissipações, allucinado por os sonhos e chimeras de uma fertil fantasia, e não profundava os olhos até o seio obscuro das realidades. A sua leitura era exclusiva de romancistas e poetas. Imaginação nimiamente inquieta, razão por indolencia inactiva, não via, nem quereria vêr, o espectro, que ás vezes apparecia aos olhos do irmão.

Uma circumstancia havia, a que mais que a outras devia Jorge a apparição d'esse espectro, que, á semelhança da sombra do rei da Dinamarca, em Hamlet, ia exercendo uma funda influencia no animo do adolescente.

Esta circumstancia não era só para elle manifesta. Ao viajante, que já suppozemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca, não passaria ella tambem desapercebida.

Na raiz da collina fronteira áquella, onde o solar dos fidalgos erguia as suas torres ameiadas, assentava o mais risonho e prospero casal dos arredores. Era uma completa casa rustica, conhecida por aquelles sitios pelo nome, que por excellencia se lhe dera, da Herdade.

O contraste entre a Herdade e o velho solar era perfeito.

Ella graciosa e alvejante, elle severo e sombrio; de um lado todos os signaes de actualidade, de vida, de trabalho, da industria que tudo aproveita, que não dorme, que não descança; a economia, a previdencia, o futuro: do outro, o passado, a tradição esteril, o silencio, a incuria, o desperdicio, a ruina: a cada pedra que o tempo derrubava do palacio, correspondia uma que se assentava na Herdade para alicerces de novas construcções; aqui desmoronava-se um pavilhão, alli levantava-se um celleiro, uma azenha, um lagar; aos velhos carvalhos, ás heras vigorosas, aos avelludados musgos, aos lichens multicores, severas galas, com que se adornava a casa nobre, oppunha a Herdade os pomares productivos, as ondulantes searas, os prados verdes, as vinhas ferteis e proximo de casa, os canteiros de rosas e balsaminas, onde volteavam incessantes as abelhas das colmeias proximas. Nas amplas cavallariças do palacio, onde outr'ora relinchavam duzias de cavallos das mais apuradas raças, ainda batiam com impaciencia no lagedo dois velhos exemplares de bom sangue, cujo sacrificio a economia não exigira ainda; nas mais modestas cavallariças do casal, duas eguas robustas, promptas para o serviço, e domaveis por uma criança, preparavam-se em fartas mangedouras para frequentes e longas excursões; e ao entardecer abriam-se os curraes a numerosas cabeças de gado, cujos mugidos chegavam até o alto da Casa Mourisca, onde o velho fidalgo muita vez os escutava, pensativo e melancolico.

Este contraste, que apontamos, era a circumstancia que evocava no espirito de Jorge o espectro que o entristecia.

O dono da Herdade fôra pobre, servira como criado na casa dos fidalgos, passára depois a rendeiro de um pequeno casal, mais tarde arrendára uma fazenda maior; chegando emfim a ser proprietario, tornára-se em pouco tempo possuidor de extensos bens, e era já o chefe d'uma familia numerosa e talvez o primeiro agricultor d'aquelle circulo.

Porque prosperava a Herdade, e porque declinava o palacio? Se de tão pouco se chegára a tanto, como se podia cahir de tanto em tão pouco?

Taes eram, em summa, as vagas reflexões que se assenhoreavam do espirito de Jorge, quando das janellas do seu quarto, em uma das torres do palacio, ou do alto de alguma eminencia, observava a animação, a vida da propriedade do seu antigo criado, e voltava depois os olhos para o vulto silencioso e como adormecido do velho paço dos seus maiores.

Os fidalgos da Casa Mourisca

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