Читать книгу Os fidalgos da Casa Mourisca - Dinis Júlio - Страница 7

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—E que lhe queria elle?—perguntou Jorge, cada vez mais attento.

—No dia seguinte fui procural-o, sem imaginar o que fosse que elle tinha para dizer-me. Mal me viu, exclamou logo: «Ora venha cá, Thomé, sente-se aqui, porque temos um contracto a fazer.» E, obrigando-me a sentar ao lado d'elle, continuou: «Vocemecê vae assignar-me um escripto de arrendamento da minha propriedade das Barrocas.» Ora faça ideia o menino de como eu fiquei, assim que tal ouvi. Conhece a quinta das Barrocas? aquillo é um condado, se póde dizer. Como havia eu de arrendal-a, Sancto Deus! Elle, conhecendo o meu espanto, acudiu logo: «Não lhe pareça isso uma coisa por ahi além. Nós ajustamos a renda e você vae tomar conta d'aquillo. A quinta está bem educada e nutrida, e estou certo de que não o deixará ficar mal no fim do anno.» «Mas, disse-lhe eu, v. s.ª bem vê que uma peça d'aquellas precisa de braços para ser bem trabalhada, de braços e de certas despezas.» Mas, homem, torna-me elle, quem lhe diz menos d'isso? Olhe lá que eu a deixe ao desamparo, para você m'a entregar no estado em que por ahi em geral os caseiros as entregam aos senhorios. Mas é bem feito, que elles tambem fazem uns arrendamentos taes, que os caseiros morreriam esfomeados, se não esfomeassem a terra.

—Mas esse homem era um grande philosopho!—observou Jorge.

—«Vá você para lá—continuou elle—tracte-me bem d'aquillo, e os capitaes precisos para instrumentos, gado, adubos, jornaleiros e algumas obras, eu lh'os adiantarei. Você é trabalhador, a terra é boa, ia apostar que ambos havemos de lucrar.

—E o Thomé foi?

—Fui, e foi o principio da minha felicidade. A terra era abençoada! e depois, alli nada faltava para a fazer produzir. Creia o snr. Jorge que o dinheiro tambem nasce como a semente. O dinheiro, enterrado assim na terra, produz dinheiro, senhor. Eu lá o vi, que quanto mais se gastava com a terra, mais ella produzia. Foi lá que eu aprendi a ser lavrador. Muito devi aos conselhos d'aquelle homem. «Anda para diante Thomé, dizia-me elle. Se queres que o cavallo te não deite a terra e te leve a longa jornada, dá-lhe bem de comer; a ração de aveia que lhe furtares da mangedoura é a que mais cara te sahe.» Mais tarde, quando eu, com a ajuda de Deus, já ia, além de pagar as minhas dividas a pouco e pouco, juntando algum peculio no canto da caixa, foi elle que me disse: «Não abafes o dinheiro, Thomé. Põe-n'o ao ar para elle se não estragar; tudo quer ar n'este mundo.» E ahi me animei eu, ao principio com mêdo, que fui perdendo depois, a dar emprego ás minhas economias; e era um gosto vêr como ellas augmentavam. Passados annos eram taes, que já eu pensava em comprar umas terras, que era cá o meu sonho. Foi elle ainda quem me tirou isso da cabeça. «Não tenhas pressa de ser proprietario, prégava-me elle, olha que os lucros que vaes ter, gastando todo o teu dinheiro em comprar qualquer leira de terra, não correspondem ao gostinho de te chamares dono d'ella. Não te afogues em pouca agua. Se comprares um cavallo e ficares sem cinco reis para o sustento d'elle, vê lá que negociarrão; pois as terras tambem comem e tu bem o deves saber.» E o caso é que me convenceu e nem pensei mais n'isso.

—Mas a final sempre comprou?

—Quando elle mesmo m'o disse. Foi á praça esta granja, que não era ainda o que é hoje. «Vê agora se ficas com aquillo», disse-me o snr. doutor. A propriedade era de valor e eu não queria empregar na compra todo o meu capital. O snr. doutor ajudou-me mais uma vez, e a propriedade passou para as minhas mãos. Então trabalhei mais do que nunca. Todo o meu empenho era remir depressa a minha divida, porque, emquanto o não fizesse, parecia-me que não podia chamar ainda meu a isto. Deus ajudou-me com annos felizes e com boas colheitas, e como continuava com o arrendamento das Barrocas e depois com este negocio de gado, pude, mais cêdo do que esperava, pagar a minha ultima prestação e remir a divida.

Chegando a este ponto da sua narrativa, animou-se a physionomia de Thomé da Povoa de um clarão de enthusiasmo e com as faces córadas e os olhos radiantes proseguiu, suspirando com desafogo.

—Que dia aquelle, snr. Jorge! Eu nem lhe sei dizer o que sentia em mim! Eu sei lá?! Quando voltei da casa do doutor, com o escripto da quitação no bolso, vinha a tremer, pulava-me no peito o coração como o de uma criança; abri surrateiramente aquella porta da quinta, e sósinho, como um ladrão, sem que ninguem me visse, entrei aqui. Digo-lhe que estava quasi louco. Até fallei alto; lembra-me bem de que disse ao vêr-me cá dentro: Isto é meu! E depois que sabia que era meu, parecia-me outra coisa tudo isto. Meu! eu não me fartava de repetir esta palavra! Meu! Estas arvores eram minhas, estas fontes eram minhas, até estes passaros, que por ahi cantavam, eram meus, porque emfim vinham fazer ninho e cantar no que me pertencia. Vae rir-se, se eu lhe disser o que fiz. Eu abracei estas arvores, eu bati palmadas n'estes muros, lavei-me n'esses tanques todos, bebi agua d'essas fontes, deitei-me á sombra d'essas arvores, eu cantei, eu saltei, eu chorei, e a final…. quer que lhe diga? Não tive mão em mim que não ajoelhasse para beijar esta terra! beijei, sim, beijei esta terra, que eu ganhára á custa de muito trabalho, de muito suor e de nenhuma vileza. Tinha orgulho, e tenho-o, em me lembrar de que tudo isto me viera de eu ser honrado e amigo de cumprir a minha palavra. Eu não me recordo de ter um contentamento assim na minha vida, a não ser no dia em que estreitei nos braços a Luiza, e que tambem pela primeira vez lhe chamei minha mulher. Era quasi a mesma coisa; este era o meu segundo casamento. D'ahi em diante foi que eu soube o que é ter amor á terra. Desde a sementeira á colheita era um cuidado incessante com o campo. Ver crescer as plantas, para mim causava-me tanto prazer como vêr o crescer dos filhos; cada novo rebento era como que um nascimento em casa. Media o quanto iam crescendo as arvores que plantava e trazia contados os fructos dos pomares. Aquillo nos primeiros tempos foi uma loucura. Aqui tem a minha vida. Deus ajudou-me, e d'ahi por diante tudo me tem corrido bem. Já vê, snr. Jorge, que quem deve o que é a ter sido honesto, não póde recusar o seu pouco auxilio a um rapaz de brios e de probidade como é o menino.

Jorge estendeu a mão a Thomé, dizendo-lhe sensibilisado:

—Fez-me bem ouvil-o, Thomé. A sua vida é um exemplo, é uma lição, e n'ella procurarei aprender. Eu tambem sinto os mesmos desejos de remir a rninha ultima divida para depois chamar meu ao que me pertence. E n'esse dia eu tambem abraçaria com enthusiasmo aquellas velhas arvores, e ajoelharia para beijar a terra, que os meus antepassados me deixaram. Mas não sei se a empreza estará ao alcance das minhas forças.

—Está. Eu lhe digo. Ha aqui só uma difficuldade a vencer. Empregue toda a sua força para esse fim, porque se tracta do bem de sua casa, do seu futuro e da sua dignidade. É preciso que o pae lhe dê licença para o menino administrar a casa e que o padre capellão se contente com dizer missas, porque depois…

—Ainda quando vencesse essa difficuldade, que é grande, Thomé, porque meu pae ainda vê em mim uma criança, surgiria outra. De si nunca meu pae…

Thomé da Povoa não o deixou concluir.

—Eu sei, mas o snr. D. Luiz não se mette por miudo nos negocios da casa, desde que tem um procurador encarregado d'elles. Consiga que elle ponha em si a confiança que tão mal emprega no padre, e eu lhe prometto que o mais se fará. Eu não exijo mais garantias para o meu dinheiro, do que um escripto seu, snr. Jorge. Demais, como a sua experiencia é pouca, eu, se m'o permittir, guial-o-hei nos primeiros tempos. Como seu pae não gosta de que o menino venha por aqui, virá sem que elle o saiba. Os serões de inverno são longos, nós conversaremos algumas noites.

Jorge disse finalmente com resolução:

—Aceito, Thomé. Fallarei a meu pae. O dever de salvar a minha casa da ruina me dará coragem. Aceito, porque tenho fé em que me não será impossivel pagar-lhe mais tarde a divida que contrahir.

—E eu tenho fé em que ha de ainda haver dias alegres e de festa n'aquella triste casa. Não é verdade que se diz que ha lá um thesouro escondido? Pois cave na terra, que o ha de encontrar.

A voz de Luiza, ao longe, annunciou n'este momento ao marido que o jantar esperava por elle.

Jorge sahiu d'alli com o coração palpitando de esperanças e de commoção, que lhe estava já causando a ideia da entrevista que precisava de ter com o pae.

Thomé jantou com o appetite de quem tinha feito uma boa acção e realisado uma ideia, com que havia muito tempo lhe lidava o cerebro.

A mulher achou-o mais fallador do que de costume; e depois de jantar voltou para a eira, cantando.

Era feliz n'aquelle momento a sua alma generosa.

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