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XIV

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Era uma especie de touro com face humana. De estatura mediana.

Quando comia, atirava para diante, as espaduas robustas, e a cadeira gemia sob a gravosa flexão dos seus encontros quadrangulares. Eu via-lhe do meu logar, na testa, os arcos carregados das sobrancelhas hirtas de cabellos grossos, e abaixo fulgurava-lhe um olho pardo e luzidio d'aquelle brilho metalico que reluz na pupila impassivel dos carnivoros.

Comia, ás mãos juntas, mãos carnudas e curtas, e levantava os cotovêlos para melhor pezar sobre a faca brilhante, e sobre o cabo do garfo. Entre cada prato respirava largamente, limpava a boca, e bebia a longos sorvos grandes copos de vinho estreme.

Não tinha má cara, nem vulgar. O aspecto era de força. Todo elle denotava pujança extraordinaria de musculos. A superficie das faces e queixo perfeitamente escanhotado, apparentava regidez marmorea, e a fronte rasgada, limpida, cercada de cabellos negros já betados de russas, revelava um espirito de vontade cheio de rectidão e persistencia.

Era affectuoso o sorrir d'elle, e o olhar desmalicioso, porém claro como cristal. Incarava-vos de face, nos olhos, de um modo tal, que vos julgarieis felizes, evitando esse espelho de aço incommodativo á força de franco. O que elle tinha era dar cascalhadas estridorosas, repuchando em sacões os peitoraes acima da cintura apertada, e descompondo para traz a cara vermelhaça. Era grave e sonora a sua voz; o gesto tranquillo, e um pouco sombrio. Tinha bonitos dentes, unhas rosadas, brilhantes e bem feitas; em fim, dominava n'aquelle todo um ar de inteireza e aceio.

Pareceu-me ter quarenta annos.

Primeiro, ao vêl-o, fiquei como humilhado: corri-me de entrar em rivalidade com natureza tão possante. Involuntariamente me confrontei com elle, eu, a par d'elle tão franzino, como o seriam quasi todos os rapazes da minha idade. O que havia em mim de debilidade nervosa, e fineza de raça, e de elegancia, amesquinhava-se em comparação d'aquella riqueza de sangue, pujança de fórmas, e virilidade fria e pacata. Eu era como um sylpho contemplando, assombrado, a estatua d'um gigante. Ao pé d'elle que homem era eu? Forte e gentil expressão de homem era sómente elle, eu não.

E, mais cruel ainda para commigo mesmo, passava depois a comparação de mim para ella. E, vendo-a sentada ao meu lado, dôce e loura como Eva, candida como uma virgem, com aquella cintura de fada, e aquelle colo requebrado em languor, e todo aquelle ar de timidez que lhe impanava a face adoravel como a sombra d'um vapor… vendo-a assim, e tão delicada no pensar, perguntava-me, eu, phrenetico, como é que ella poderá amar tal homem? Violenta associação de duas naturezas que entre si não tinham um ponto só de contacto! Irmanavam-se com a seda e com o ferro!

Oh! Desdemona! – me dizia eu – que Othello escolheste! Mas mal sabia Fanny que furor raivava ao seu lado! Dirigia-me placidamente a palavra, olhando-me com ar de simples, e affastando com sua mão alvissima os louros anneis que lhe volteavam como plumas sobre a fronte. E fallava-lhe a elle, sem turvação nem embaraço… e dizia-lhe: meu amigo, deante de mim.

E elle, com menos embaraço ainda, lhe respondia, todo attenções e deferencia, com ar, porém, de grande superioridade.

O Hercules via n'ella um ser perigrino, mas absurdo: e por isso o que lhe dizia eram bagatellas, com ar amavel e paternal, como os pais as dizem aos filhinhos curiosos.

Fanny: estudo

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