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CAPITULO III A esmola da felicidade

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—Deus lhe accrescente, minha senhora devota! exclamou o irmão das almas ao ver a nota cair em cima de dous nickeis de tostão e alguns vintens antigos. Deus lhe dê todas as felicidades do céu e da terra, e as almas do purgatorio peçam a Maria Santissima que recommende a senhora dona a seu bemdito filho!

Quando a sorte ri, toda a natureza ri tambem, e o coração ri como tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos especulativas, deu o irmão das almas aos dous mil reis. A suspeita de ser a nota falsa não chegou a tomar pé no cerebro deste: foi allucinação rapida. Comprehendeu que as damas eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse piscando o olho, emquanto ellas entravam no carro:

—Aquellas duas viram passarinho verde, com certeza.

Sem rodeios, suppoz que as duas senhoras vinham de alguma aventura amorosa, e deduziu isto de trez factos, que sou obrigado a enfileirar aqui para não deixar este homem sob a suspeita de calumniador gratuito. O primeiro foi a alegria dellas, o segundo o valor da esmola, o terceiro o carro que as esperava a um canto, como se ellas quizessem esconder do cocheiro o ponto dos namorados. Não concluas tu que elle tivesse sido cocheiro algum dia, e andasse a conduzir moças antes de servir ás almas. Tambem não creias que fosse outr'ora rico e adultero, aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus ás suas amigas. Ni cet excès d'honneur, ni cette indignité. Era um pobre diabo sem mais officio que a devoção. Demais, não teria tido tempo; contava apenas vinte e sete annos.

Comprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que almas nunca viram sair das mãos delle. Foi subindo a rua de S. José. Já não tinna animo de pedir; a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao cerebro, e agora mais frequente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa... «Para a missa das almas!» gemeu á porta de uma quitanda, e deram-lhe um vintem,—um vintem sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhedous vintens,—o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.

E a nota sempre limpa, uns dous mil reis que pareciam vinte. Não, não era falsa. No corredor pegou della, mirou-a bem; era verdadeira. De repente, ouviu abrir a cancella em cima, e uns passos rapidos. Elle, mais rapido, amarrotou a nota e metteu-a na algibeira das calças; ficaram só os vintens azinhavrados e tristes, o obolo da viuva. Saiu, foi á primeira officina, á primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente:

—Para a missa das almas!

Na egreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz debil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dous mil reis... Os dous mil reis, dizia outra voz menos debil, eram naturalmente delle, que, em primeiro logar, tambem tinha alma, e, em segundo logar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vae á egreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.

Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não sairam assim articuladas e claras, nem as debeis, nem as menos debeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciencia. Traduzi-as em lingua falada, afim de ser entendido das pessoas que me lêem; não sei como se poderia transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atraz de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: «não tirou a nota a ninguem... a dona é que a poz na bacia por sua mão... tambem elle era alma...» À porta da sacristia que dava para a rua, ao deixar cair o reposteiro azul escuro debruado de amarello, não ouviu mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chapeo roto e sebento; metteu vagarosamente a mão no bolso do collete, tambem roto, e aventou uma moedinha de cobre que deitou ao chapeo do mendigo, rapido, ás escondidas, como quer o Evangelho. Eram dous vintens; ficavam-lhe mil novecentos e noventa e oito reis. E o mendigo, como elle saisse depressa, mandou-lhe atraz estas palavras de agradecimento, parecidas com as suas:

—Deus lhe accrescente, meu senhor, e lhe dê...

Esau e Jacob

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