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CAPITULO IV A missa do coupé

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Natividade ia pensando na cabocla do Castello, na predicção da grandeza e na noticia da briga. Tornava a lembrar-se que, de facto, a gestação não fôra socegada; mas só lhe ficava a sorte da gloria e da grandeza. A briga lá ia, se a houve; o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo. Não deu pela praia de Santa Luzia. No largo da Lapa interrogou a irmã sobre o que pensava da adivinha. Perpetua respondeu que bem, que acreditava, e ambas concordaram que ella parecia falar dos proprios filhos, tal era o enthusiasmo. Perpetua ainda a reprehendeu pelos cincoenta mil reis dados em paga; bastavam vinte.

—Não faz mal. Cousas futuras!

—Que cousas serão?

—Não sei; futuras.

Mergulharam,outra vez no silencio. Ao entrar no Cattete, Natividade recordou a manhã em que alli passou, naquelle mesmo coupé, e confiou ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na egreja de S. Domingos...

«Na egreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João de Mello, fallecido em Maricá.» Tal foi o annuncio que ainda agora pódes ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia, o mez foi agosto. O annuncio está certo, foi aquillo mesmo, sem mais nada, nem o nome da pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora, nem convite. Não se disse sequer que o defunto era escrivão, officio que só perdeu com a morte. Emfim, parece que até lhe tiraram um nome; elle era, se estou bem informado, João de Mello e Barros.

Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguem lá foi. A egreja escolhida deu ainda menos relevo ao acto; não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente, mettida ao canto de um pequeno largo, adequada á missa recondita e anonyma.

Às oito horas parou um coupé á porta; o lacaio desceu, abriu a portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram o pedacinho de largo e entraram na egreja. Na sacristia era tudo espanto. A alma que a taes sitios attrahira um carro de luxo, cavallos de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as outras almas alli suffragadas. A missa foi ouvida sem pesames nem lagrimas. Quando acabou, o senhor foi á sacristia dar as esportulas. O sacristão, agasalhando na algibeira a nota de dez mil reis que recebeu, achou que ella provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O mesmo pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na egreja meia duzia de creanças maltrapilhas, e, fóra, alguma gente ás portas e no largo, esperando. O senhor, chegando á porta, relanceou os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objecto de curiosidade. A senhora trazia os seus no chão. E os dous entraram no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.

A gente local não falou de outra cousa naquelle e nos dias seguintes. Sacristão e visinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita, ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu na memoria por muitos mezes. Afinal não se falou mais nella; esqueceu como um baile.

Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquelle senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que pobre. Tambem elle foi pobre; tambem elle nasceu em Maricá. Vindo para o Rio de Janeiro, por occasião da febre das acções (1855), dizem que revellou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo muito, e fel-o perder a outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que ia então nos vinte annos e não tinha dinheiro, mas era bella e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a riqueza. Annos depois tinham elles uma casa nobre, carruagem, cavallos e relações novas e distinctas. Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pae em 1866; restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio; elle gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe mais.

Não lhe valeu isto com João de Mello, que um dia appareceu aqui, a pedir-lhe emprego. Queria ser, como elle, director de banco. Santos arranjou-lhe depressa um logar de escrivão do civel em Maricá, e despachou-o com os melhores conselhos deste mundo.

João de Mello retirou-se com a escrevania, e dizem que uma grande paixão tambem. Natividade era a mais bella mulher daquelle tempo. No fim, com os seus cabellos quasi sexagenarios, fazia crêr na tradicção. João de Mello ficou allucinado quando a viu; ella conheceu isso, e portou-se bem. Não lhe fechou o rosto, é verdade, e era mais bella assim que zangada; tambem não lhe fechou os olhos, que eram negros e callidos. Só lhe fechou o coração, um coração que devia amar como nenhum outro, foi a conclusão de João de Mello uma noite em que a viu ir decotada a um baile. Teve impeto de pegar della, descer, voar, perderem-se...

Em vez disso, uma escrevania e Maricá; era um abysmo. Caiu nelle; trez dias depois saiu do Rio de Janeiro para não voltar. A principio escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que ella as lesse tambem, e comprehendesse que algumas palavras eram para si. Mas Santos não lhe deu resposta, e o tempo e a ausencia acabaram por fazer de João de Mello um excellente escrivão. Morreu de uma pneumonia.

Que o motivo da pratinha de Natividade deitada á caixa das almas fosse pagar a adoração do defunto não digo que sim, nem que não; faltam-me pormenores. Mas póde ser que sim, porque esta senhora era não menos grata que honesta. Quanto ás larguezas do marido, não esqueças que o parente era defunto, e o defunto um parente menos.

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