Читать книгу A mulher da estrela azul - Pam Jenoff - Страница 10
4 Sadie
ОглавлениеAtordoados, olhámos para a superfície intacta do rio de esgoto.
— Paizinho! — gritei de novo. A minha mãe emitiu um som gutural baixo e tentou afundar-se na água atrás dele, mas trabalhador do esgoto impediu-a.
— Esperem aqui — ordenou ele, descendo pelo caminho e seguindo a corrente. Dei a mão à minha mãe para ela não tentar pular de novo.
— Ele é um homem forte — disse o Saul. Embora ele quisesse reconfortar-nos, a minha raiva cresceu: como é que ele sabia?
— E um bom nadador — concordou a minha mãe desesperada. — Pode ter sobrevivido. — Queria agarrar-me à esperança tanto quanto ela. Mas, ao lembrar-me de como a corrente o tinha sacudido como se fosse um boneco de trapos, sabia que mesmo a braçada forte do meu pai não teria a mínima possibilidade contra o rio.
Eu e a minha mãe e permanecemos aninhadas durante vários minutos, em silêncio, entorpecidas pela descrença. O trabalhador do esgoto voltou, com o rosto sério.
— Ele ficou preso debaixo de uns escombros. Tentei libertá-lo, mas já era tarde demais. Lamento, mas não há nada a fazer.
— Não! — gritei, a minha voz a ecoar perigosamente através do túnel cavernoso. A mão da minha mãe tapou-me a boca antes de eu poder falar de novo, nos meus lábios senti a sua pele, uma mistura de água suja do esgoto e lágrimas salgadas. Solucei contra a imundície quente da palma da sua mão. O meu pai estava ali uns minutos antes, a impedir-me de escorregar. Se ele não me tivesse segurado, ainda estaria vivo.
Pouco depois, a minha mãe largou-me.
— Ele morreu — disse eu. Encostei-me a ela, sentindo-me como uma menina pequena. O meu pai tinha sido um gigante gentil, o meu protetor, o meu confidente e o meu melhor amigo. O meu mundo. Mas o esgoto tinha-o arrastado e engolido como se fosse lixo.
— Eu sei, eu sei — a minha mãe murmurou por entre lágrimas. — Mas devemos estar quietas ou também passaremos à história. — O barulho poderia fazer com que fôssemos detetados pela polícia na rua, e nenhum dos outros correria esse risco. A minha mãe desabou contra a parede do esgoto, parecendo vulnerável e indefesa. A fuga tinha sido um plano do meu pai, como é que nos desenvencilharíamos sem ele?
O Saul deu um passo na minha direção, de olhos castanhos solenes.
— Sinto muito pelo teu pai. — A sua voz parecia mais amigável do que quando tentei falar com ele antes. Mas isso já não tinha importância. Ele tocou na aba do quipá e depois voltou para perto do seu pai.
— Temos de continuar — disse o trabalhador do esgoto.
Teimosamente fiquei no lugar, recusando-me a andar.
— Não podemos deixá-lo aqui. — Eu sabia que o meu pai tinha sido puxado rio abaixo, mas uma parte de mim acreditava que se ficasse ali, no preciso lugar onde ele tinha desaparecido, ele ressurgiria e seria como se nada daquilo tivesse acontecido. Estiquei a mão, desejando que o tempo parasse. Num minuto, o meu pai estava ali, real e firme, ao meu lado. Um minuto depois, esfumara-se, o ar vazio e parado.
— O meu pai morreu — disse eu, a realidade espetava-se dolorosamente nos meus ossos.
— Mas eu estou aqui. — A minha mãe segurou o meu rosto com ambas as mãos, obrigando-me a olhá-la nos olhos. — Estou aqui e nunca te vou abandonar.
O trabalhador do esgoto aproximou-se e ajoelhou-se à minha frente.
— O meu nome é Pawel — disse ele com simpatia. — Conhecia o teu pai e ele era um bom homem. Ele confiou-me a tua segurança e teria gostado que continuássemos. — Ele levantou-se, afastou-se e continuou, conduzindo os outros pelo caminho.
A minha mãe endireitou-se, parecendo ganhar força com aquelas palavras; a sua barriga arredondada cada vez mais saliente.
— De algum modo, vamos ultrapassar isto. — Olhei para ela, descrente. Como é que ela podia pensar assim, muito menos acreditar numa coisa dessas, agora que tínhamos perdido tudo? Por um segundo, perguntei-me se ela tinha enlouquecido. Mas havia uma confiança calma nas suas palavras que, de alguma forma, eu estava a precisar de ouvir. — Vamos ficar bem.
A minha mãe começou a puxar-me para a frente.
— Anda. — Ela sempre foi enganadoramente forte para o seu tamanho pequeno, e puxava-me com tanta força que receei que, se resistisse, poderia escorregar na água e afogar-me também. — Temos de nos despachar. — Tinha razão. Os restantes continuaram sem nós e agora iam vários metros à nossa frente. Tínhamos de segui-los ou ficaríamos sozinhas e perdidas no túnel estranho e escuro.
Mas hesitei mais uma vez, olhando com medo para o rio escuro e agitado que corria ao longo do caminho. Sempre tive medo da água, e agora esse medo parecia confirmado. Se o meu pai, um nadador forte, não conseguiu domar a corrente turva, que hipótese é que eu teria?
Olhei para o caminho tenebroso à nossa frente. Era impossível fazer aquilo.
— Anda — repetiu a minha mãe, com uma voz mais suave agora. — Imagina que és uma princesa guerreira e eu, a tua mãe, a grande rainha. Vamos percorrer os passadiços do Castelo Wawel até à masmorra para matar o dragão Smok. — Ela estava a referir-se ao jogo do faz-de-conta a que brincávamos quando eu era pequena. Agora, era muito crescida para aquelas infantilidades e a lembrança das brincadeiras que fazia, sobretudo com o meu pai, entristeceu-me mais ainda. Mas a capacidade que a minha mãe tinha de encarar qualquer situação com um espírito positivo era uma das coisas que mais adorava nela, e a sua vontade de me fazer sentir melhor, mesmo na situação presente, relembrou-me que estávamos naquilo as duas juntas.
Apanhámos os outros e continuámos ao longo do caminho do esgoto, que parecia não ter fim. O Pawel caminhava à frente, seguido pelo casal jovem e depois pela família religiosa com a velhota, que, apesar de parecer ter quase noventa anos, se mexia com uma velocidade incrível. Decerto já devíamos estar perto da saída da cidade, pensei. Talvez houvesse algum caminho para a liberdade mais à frente, talvez na floresta dos arredores da cidade onde tinha ouvido falar de judeus escondidos. Mal podia esperar para respirar de novo o ar fresco. O Pawel levou-nos para a direita numa bifurcação menor do túnel principal e o caminho parecia inclinar-se para cima, como se estivéssemos a aproximar-nos do exterior. Comovi-me ao imaginar que sentia a luz do sol da manhã no rosto e deixava o esgoto para trás para sempre.
O Pawel virou novamente, desta vez à esquerda, e conduziu-nos para uma câmara de cimento, sem janelas nem qualquer outra fonte de luz. Talvez tivesse quatro por quatro metros, era ligeiramente mais pequena do que o apartamento de um quarto que dividi com os meus pais no gueto. As águas do esgoto batiam na entrada inclinada como ondas na praia. Alguém tinha assentado umas tábuas estreitas sobre uns blocos de cimento para formar bancos improvisados e havia um fogão a lenha enferrujado a um canto. Era quase como se estivessem à nossa espera naquele lugar.
— É aqui que se vão esconder — confirmou o Pawel, apontando para a câmara. Percebi então que o Pawel não estava a conduzir-nos pelos canos de esgoto para chegarmos a outro lugar. O esgoto era esse outro lugar.
— Aqui? — repeti, ignorando o aviso anterior da minha mãe para estar calada. Todas as cabeças se viraram na minha direção. O Pawel assentiu. — Durante quanto tempo? — Não conseguia imaginar-me a passar mais de uma hora no esgoto.
— Não entendo — disse o Pawel.
A minha mãe pigarreou.
— Acho que o que a minha filha está a perguntar é para onde é que vamos depois daqui?
— Tolas — explodiu a velhota. Era a primeira vez que a ouvia falar. — O onde é aqui.
Incrédula, olhei para a minha mãe.
— Vamos ter de viver aqui? — Senti-me zonza. Podíamos sobreviver aqui umas horas, talvez uma noite. Quando o meu pai me mandou passar pelo buraco da sanita e entrar no esgoto, entendi que era um trânsito, uma passagem para um lugar mais seguro. E enquanto caminhávamos, em desespero, no meio da imundície, disse a mim própria que era necessário para fugir. Em vez disso, era o próprio destino da fuga. Apesar de todos os meus pesadelos mais selvagens, jamais me passou pela cabeça que fôssemos ficar no esgoto.
— Para sempre? — perguntei.
— Não, para sempre não, mas… — O Pawel olhou para a minha mãe com incerteza. As pessoas que viviam uma guerra não tinham uma maneira fácil de falar sobre o futuro. Então, olhou-me nos olhos mais uma vez. — Quando inicialmente fizemos planos, presumimos que vos tiraríamos do túnel no final do mesmo, no rio. — Percebi, pelo seu tom de voz, que o «nós» implícito nas suas palavras incluía o meu pai. — Só que agora os alemães têm essa saída vigiada. Se prosseguirmos, seremos mortos a tiro. — E se voltarmos para o gueto, também, pensei eu. Estávamos encurralados, sem nenhum lugar para onde ir. — Esta é a opção mais segura para todos vocês. A vossa única esperança. — Havia uma nota de súplica na sua voz. — Não há outra saída do esgoto e, mesmo que houvesse, as ruas agora são muito perigosas. Está bem? — perguntou-me, como se precisasse que eu concordasse. Como se eu tivesse escolha. Não respondi; não podia imaginar-me a dizer que sim a tal coisa. Porém, o meu pai não nos teria trazido para aqui a menos que acreditasse que era a única opção, a nossa melhor possibilidade de sobrevivência. Por fim, concordei.
— Não podemos ficar aqui — disse uma voz atrás de mim. Virei-me. Do outro lado da câmara, a mulher jovem com a criança estava a falar com o marido, repetindo o meu protesto. — Prometeram-nos uma saída. Não podemos ficar aqui.
— Sair é impossível — disse o Pawel pacientemente, como se não tivesse acabado de me explicar tudo. — Os alemães estão a vigiar o fim do túnel.
— Não há outra escolha — concordou o seu marido.
Mas a mulher arrebatou o filho ao marido e dirigiu-se para a entrada da câmara. — Há uma saída lá mais à frente, eu bem sei — insistiu ela com teimosia, empurrando o Pawel e desatando a andar na direção oposta àquela por onde tínhamos vindo.
— Por favor — disse o Pawel —, não deve ir por aí; não é seguro. Pense no seu filho. — Mas a mulher não parou e o marido seguiu-a. À distância, ainda conseguia ouvi-los a discutir.
— Esperem! — o Pawel chamou em voz baixa, à entrada da câmara. Mas não foi atrás deles. Ele tinha de nos proteger a todos nós, e a si próprio.
— O que será feito deles? — perguntei em voz alta. Ninguém respondeu. As vozes do casal esmoreceram ao longe. Imaginei-os a caminharem em direção ao local onde o esgoto desaguava no rio. Uma parte de mim desejou ter fugido com eles.
Poucos minutos depois, ouviu-se um som similar ao das bombinhas de Carnaval. Dei um pulo. Embora já tivesse ouvido tiros várias vezes no gueto, nunca me acostumei ao som. Virei-me para o Pawel.
— Acha que…? — Ele encolheu os ombros, incapaz de dizer se os tiros tinham sido dirigidos à família fugida ou eram disparos na rua acima de nós. Mas as vozes no corredor emudeceram.
Aproximei-me da minha mãe.
— Vai ficar tudo bem — confortou-me ela.
— Como é que podes dizer uma coisa dessas? — questionei. «Bem» era a última palavra para descrever o inferno em que tínhamos entrado.
— Só vamos ficar uns dias aqui, no máximo uma semana. — Eu queria acreditar nela.
Um rato passou pela entrada da câmara e olhou-nos não com medo, mas com desprezo. Gritei e os outros olharam-me por falar muito alto.
— Sussurra — advertiu-me a minha mãe com suavidade. Como é que ela podia estar tão calma quando o meu pai estava morto e havia ratos a olharem para nós?
— Mãe, isto está cheio de ratos! Não podemos ficar aqui! — A ideia de ficar ali no meio dos bichos era impossível de aguentar. — Temos de sair já! — A minha voz roçava a histeria.
O Pawel veio até mim.
— Não há volta atrás. Não há saída. Agora, este é o vosso mundo. Deves aceitá-lo pelo teu bem e pelo da tua mãe, e da criança que vai nascer. — Olhou-me nos olhos. — Estás a perceber? — A sua voz era gentil, mas firme. Eu concordei. — Esta é a única opção.
Atrás dele, o rato ainda estava parado à entrada, a olhar para nós com um ar de desafio, de algum modo sabia que tinha vencido. Nunca gostei de gatos. Mas, oh, como desejei que o velho gato malhado que deambulava no beco atrás do nosso apartamento viesse dar cabo daquela criatura!
A minha mãe virou-se para o Pawel.
— Vamos precisar de muito carboneto e fósforos, claro. — Ela falou com calma, como se tivesse aceitado o nosso destino e estivesse a tentar tirar o melhor partido do mesmo. Queria parecer-me que ela devia pedir por favor. Mas ela falou naquele tom especial e firme que usava ocasionalmente, e que parecia sempre fazer com que as pessoas lhe obedecessem.
— E vão ter. E há uma bica com uma fuga no caminho que podem usar para obter água doce. — O Pawel voltou a um tom mais suave, como se tentasse acalmar-nos. Então remexeu-se com embaraço. — Tem o dinheiro?
A minha mãe vacilou. Ela não fazia ideia de que o meu pai tinha combinado pagar-lhe, nem quanto. E a maior parte do dinheiro que trouxemos certamente estava no fundo no rio de esgoto com o meu pai. Ela enfiou a mão no vestido e estendeu uma nota engelhada. Um olhar atravessou o rosto de Pawel e percebi que não era tanto quanto lhe tinha sido prometido. O que aconteceria se não lhe pudéssemos pagar?
— Eu sei que não é muito. — A minha mãe implorou com o olhar para que ele o considerasse suficiente. Por fim, ele aceitou. O religioso, que estava parado a um canto com a família, também entregou algum dinheiro ao Pawel.
— Vou trazer-vos comida sempre que puder — disse o Pawel.
— Obrigada. — A minha mãe olhou por cima do ombro para a outra família. — Julgo que não fomos devidamente apresentados. — Ela atravessou a câmara. — Chamo-me Danuta Gault — disse ela, oferecendo a mão ao pai.
Ele não aceitou, mas assentiu formalmente, como se se encontrasse na rua.
— Meyer Rosenberg. — Tinha uma barba grisalha, amarelada à volta da boca com manchas de tabaco, mas tinha uns olhos amáveis e uma voz melódica e simpática. — Esta é a minha mãe, Esther, e o meu filho Saul.
Olhei para o Saul e ele sorriu.
— Toda a gente me chama Bubbe — interrompeu a mulher idosa, com uma voz rouca. Parecia estranho usar um nome tão familiar para uma mulher que acabava de conhecer.
— É um prazer conhecê-la, Bubbe — disse a minha mãe, respeitando o desejo da mulher mais velha. — Muito gosto, Pan Rosenberg — acrescentou ela, dirigindo-se a ele com o termo polaco mais formal para senhor. Então, virou-se para mim. — Estou aqui com o meu marido… Isto é… — Ela pareceu esquecer-se por um segundo que o meu pai já não estava connosco. — Quer dizer, estava. Esta é a minha filha Sadie.
— Aquela outra família — não pude evitar perguntar —, aquela com o menino… O que é que aconteceu com eles? — Parte de mim gostava de não o ter feito. Queria imaginar que eles tinham chegado à rua e encontrado um lugar para se esconderem. Mas nunca fui boa a fingir ou a fazer a vista grossa. Eu precisava de saber.
Dubitativo, o Pawel olhou por cima da minha cabeça para a minha mãe antes de responder, como quem pergunta se me deveria mentir.
— Não sei ao certo. Mas se calhar foram mortos à entrada do rio — disse ele por fim. Os tiros, pensei, lembrando-me do barulho. E nós também teríamos a mesma sorte, se tentássemos fazer o mesmo. — Percebem agora porque é que é tão importante que fiquem aqui, longe da vista e em silêncio?
— Mas como é que podemos ficar aqui? — A Bubbe Rosenberg exigiu saber. — Com certeza que agora que os outros foram apanhados, os alemães já sabem que há gente aqui em baixo e hão de vir à nossa procura. — O Saul aproximou-se da avó e pôs-lhe a mão no ombro como se quisesse confortá-la.
— Talvez — disse o Pawel suavemente, não querendo mentir para nos consolar. — Vi alguns alemães numa das sarjetas quando vos deixei mais cedo e fui à rua. Disse-lhes que há ratos para eles não virem. Eles queriam enviar a polícia polaca, mas disse-lhes que era impossível alguém sobreviver aqui. — Perguntei-me se aquilo não seria verdade…
— Mesmo assim, eles devem patrulhar os esgotos nalgum momento — disse o Saul solenemente, falando pela primeira vez. Com a testa vincada de preocupação.
O Pawel assentiu gravemente.
— E, quando o fizerem, vou ter de os guiar. — Um suspiro varreu o grupo. Será que ele acabaria por nos trair? — Vou levá-los por outros túneis para não vos verem. Se insistirem em vir por aqui, faço uns movimentos circulares com a lanterna para vos dar tempo para se esconderem. — Olhando para a câmara nua, era impossível imaginar onde.
— Tenho de ir andando — disse o Pawel. — Se não for trabalhar, o meu capataz vai desconfiar. — Devia ser de manhã, depreendi, embora a luz não chegasse ali. Remexeu no bolso e tirou um pacote embrulhado em papel. Abriu-o e continha algum tipo de carne que partiu ao meio, entregando metade à minha mãe e metade ao Pan Rosenberg, dividindo as parcas porções equitativamente entre as duas famílias.
— É golonka — sussurrou a minha mãe. — Joelho de porco. Come. — Embora nunca tivesse experimentado tal coisa, tinha o estômago a dar horas.
Mas o Pan Rosenberg olhou para a carne que o Pawel lhe ofereceu e torceu o nariz em sinal de desagrado.
— É trayf — disse ele, avesso à ideia de comer uma coisa que não era kosher. — Não podemos comer isso.
— Lamento muito, mas foi o que pude arranjar tão à pressa — disse o Pawel, parecendo bastante pesaroso. — Para a sua mãe e o seu filho, pelo menos? — O Pawel voltou à carga. — Receio que não haja mais durante um ou dois dias.
— De modo nenhum.
O Pawel encolheu os ombros e trouxe a carne extra para a minha mãe. Ela hesitou, entre querer alimentar-nos e não querer receber mais do que a sua parte.
— Se tem a certeza…
— Não se deve desperdiçar — disse ele. A minha mãe pegou num pedacinho de porco para si e deu-me o resto. Comi à pressa antes que o Pan Rosenberg mudasse de ideias, tentando ignorar os olhos sinistros do seu filho. A mulher idosa ficou atrás da família, sem reclamar, mas perguntei-me, com remorso, se ela quereria um pedaço. Olhei para os Rosenberg e para as suas esquisitas roupas escuras. O que é que eles terão feito para caírem nas boas graças do trabalhador do esgoto salvador? Eles eram tão diferentes de nós. No entanto, devíamos viver todos juntos ali. Fomos poupados da indignidade de dividir um apartamento no gueto. Mas agora, escondermo-nos naquele espaço ínfimo na companhia de uns estranhos era a nossa única esperança.
E então o Pawel foi-se embora, deixando-nos sozinhos na câmara.
— Aqui — disse a minha mãe, apontando para um dos bancos. Era uma zona tão suja e molhada que, um dia antes, ela ter-me-ia repreendido por me sentar ali.
O meu pé latejou quando me sentei, lembrando-me do meu ferimento anterior.
— Fiz um corte no pé — esclareci, embora parecesse uma parvoíce mencioná-lo tendo em conta tudo o que nos estava a acontecer. A minha mãe ajoelhou-se ao meu lado, a bainha já suja da sua saia mergulhada naquela água horrenda. Ergueu o meu pé direito e tirou-me o sapato encharcado; a seguir, limpou-o com uma parte seca do vestido. — Devemos manter os pés secos. — Não entendia como é que ela era capaz de pensar nessas coisas num momento como aquele.
Ela pegou no saco que continha todos os nossos pertences, aquele que o meu pai me tinha atirado pouco antes de cair à água. O que é que havia no saco que custou a vida ao meu pai? A minha mãe abriu-o. Remédios e ligaduras, uma mantinha azul e branca de bebé e um par de meias suplentes para mim. Enrolei-me numa pequena bola, a tristeza a esmagar-me de novo.
— Meias — disse eu lentamente, a voz carregada de incredulidade. — O meu pai morreu por um par de meias.
— Não — disse a minha mãe —, ele morreu para te salvar. — Ela puxou-me para si. — Eu sei que é difícil — sussurrou, os olhos marejados de lágrimas. — Mas devemos fazer o que for necessário para sobreviver. É o que ele queria. Compreendes? — Ela tinha uma expressão firme e determinada que eu nunca tinha visto. Encostou a cabeça à minha e os caracóis macios de cabelo em redor da orelha ainda cheiravam à água com canela com que se borrifou depois do banho do dia anterior. Perguntei-me quanto tempo permaneceríamos ali antes que aquele cheiro glorioso se esfumasse.
— Compreendo. — Deixei-a untar pomada no meu pé, depois calcei o par de meias limpas que me deu. Quando me baixei, vislumbrei na minha manga a braçadeira com a estrela azul que os alemães nos obrigavam a usar para nos identificarmos como judeus. — Pelo menos já não precisamos disto. — Puxei a braçadeira e arranquei o tecido com um rasgão gratificante.
A minha mãe sorriu.
— Esta é que é a minha menina, a ver sempre o lado bom das coisas. — Ela seguiu o exemplo e arrancou a sua própria braçadeira, dando uma gargalhada de satisfação.
Quando a minha mãe foi fechar o saco, algo pequeno e metálico caiu no chão do esgoto. Corri para apanhá-lo. Era o fio de ouro que o meu pai usava sempre debaixo da camisa, com um pingente com a palavra hebraica chai escrita, que significava vida. As joias não eram comuns entre os homens, mas o fio tinha sido um presente dos seus pais no bar mitzvah do meu pai. Pensei que ele o tinha consigo quando caiu, e que também se perdera no rio de esgoto, mas ele deve tê-lo tirado antes de fugirmos. Agora estava ali connosco.
Dei-o à minha mãe. Mas ela abanou a cabeça.
— Ele ia gostar que tu o tivesses. — Ela pôs-mo ao pescoço e o chai ficou ao meu peito, perto do coração.
Ouvimos um estrondo no exterior da câmara. Levantámo-nos, alarmados. Os alemães tinham vindo tão depressa? Mas era só o Pawel mais uma vez.
— A luz — disse ele, apontando para a solitária lâmpada de carboneto pendurada num gancho. — Está a sair vapor na rua lá em cima. Devem apagá-la. — Relutantemente, abandonámos a única fonte de luz que tínhamos e o esgoto ficou frio e escuro outra vez.