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5 Ella

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Abril 1943

A primavera chegava sempre lentamente a Cracóvia, qual criança estremunhada sem vontade de sair da cama num dia de escola. Nesse ano, parecia que nem sequer tinha dado o ar da sua graça. A neve suja ainda se acumulava na base da ponte que eu atravessava, vinda do centro da cidade, rumo a Dębniki, o bairro de classe operária na margem sul do rio Vístula. O ar estava gélido, o vento cortante, como se a própria mãe natureza se revoltasse contra a ocupação nazi que já se arrastava há quatro anos.

Não esperava dar por mim naquela longínqua parte da cidade, a fazer um recado, numa manhã de domingo. Uma hora antes, estava no meu quarto, a escrever uma carta ao meu irmão Maciej, que vivia em Paris há quase uma década. Embora ainda não tivesse tido a ocasião de o visitar, as suas cartas transmitiam uma vívida imagem da cidade, numa escrita alegre, com descrições minuciosas e um humor bizarro. Eu respondia-lhe sempre de um modo mais generalizado, tendo sempre em conta que as cartas podiam ser lidas. A Falconess tem andado à caça, disse a dada altura. Era o nome de código para a Ana Lucia e o seu amor por usar carcaças de animais como vestimenta. «À caça» era uma referência aos momentos em que era especialmente desprezível. Vem a Paris, insistira ele na última carta e eu sorri ao ouvir o seu romance francês a saltar da página através das suas palavras. Eu e o Phillipe adorávamos ter-te connosco. Como se fosse assim tão simples. De momento, era impossível viajar, mas talvez quando a guerra acabasse, ele pudesse mandar-me buscar. A minha madrasta não se importaria que eu desaparecesse, desde que a viagem não lhe custasse nada.

Tinha acabado de lacrar a carta com um pouco de cera quando ouvi a comoção na cozinha. A Ana Lucia estava a gritar à nossa empregada Hanna. A coitada da Hanna era com certa frequência o alvo da ira da minha madrasta. Em tempos, tivéramos quatro empregadas a tempo inteiro. Mas a guerra implicava sacrifícios para todos, e no mundo da minha madrasta isso significava desenvencilhar-se só com uma criada. A Hanna era a nossa empregada doméstica, uma escanzelada e minúscula rapariga do campo sem família própria. Fora ela a única disposta a assumir o trabalho de todo o pessoal doméstico e, portanto, foi ela que ficou connosco, executando corajosamente as funções de governanta, mordomo, jardineiro e cozinheira, tudo ao mesmo tempo, porque ela não tinha outro lugar para onde ir.

Perguntei-me qual seria o motivo da fúria da minha madrasta. Cerejas, percebi quando desci.

— Prometi ao Hauptsturmführer Kraus a melhor tarte de cereja de Cracóvia para a sobremesa desta noite. Só que não temos cerejas! — As faces da Ana Lucia estavam vermelhas de raiva, como se ela tivesse acabado de sair da banheira.

— Desculpe, minha senhora — disse a Hanna. O seu rosto marcado pelas bexigas exibia uma expressão aflita. — Não é época de cerejas.

— E então? — Os aspetos práticos da situação não importavam à Ana Lucia, que só pensava no que ela queria.

— Talvez cerejas secas — sugeri eu, numa tentativa de ser útil. — Ou de lata.

A Ana Lucia virou-se para mim e pensei que ia rejeitar a minha sugestão, como sempre fazia.

— Sim, isso — disse ela lentamente, como se a surpreendesse que eu tivesse uma boa ideia.

A Hanna abanou a cabeça.

— Bem tentei. Não há nada no mercado.

— Então vais a outros mercados! — A Ana Lucia explodiu. Eu temia que a minha sugestão, embora bem-intencionada, só fosse piorar a situação da pobre rapariga.

— Mas com o assado para meter no forno… — A voz da Hanna parecia impotente, horrorizada.

— Eu vou — interrompi. As duas fitaram-me, surpreendidas. Não que eu quisesse ajudar a minha madrasta a saciar o apetite de um porco nazi qualquer. Pelo contrário, preferia enfiar-lhe as cerejas pela goela abaixo, com caroços e tudo. Mas estava entediada. E queria ir aos correios enviar a carta para o Maciej, podia bem fazer as duas coisas na mesma viagem.

Esperava que a minha madrasta protestasse, mas ela não o fez. Em vez disso, deu-me um punhado de moedas, reichsmarks vis que tinham substituído o zloty polaco.

— Ouvi dizer que talvez haja cerejas em Dębniki — disse a Hanna, com a voz cheia de gratidão.

— Do outro lado do rio? — perguntei. A Hanna acenou com a cabeça, implorando com os olhos para que eu não mudasse de ideias. Dębniki, um bairro do outro lado do Vístula, ficava a pelo menos trinta minutos de elétrico, mais a pé. Eu não tinha planeado ir tão longe. Mas tinha dito que ia e não podia abandonar a Hanna à raiva da minha madrasta pela segunda vez.

— A tarte tem de estar no forno às três — disse a Ana Lucia com altivez, em vez de me agradecer.

Antes de sair de casa, vesti o casaco e peguei na pequena cesta que costumava usar para fazer compras. Podia ter apanhado o elétrico, mas aproveitei a oportunidade para esticar as pernas e apanhar o ar fresco, tingido de carvão. Segui a rua Grodzka para sul até chegar ao Planty, e atravessei a faixa agora murcha de parque que circundava o centro da cidade.

O caminho que tomei para além do Planty, rumo a sul e ao rio, levou-me a contornar o Kazimierz, o bairro a sudeste do centro da cidade que outrora fora o bairro judeu. Raramente tinha motivos para visitar o Kazimierz, mas sempre me parecera exótico e forasteiro com os seus homens ataviados de chapéus altos e escuros e montras com letreiros escritos em hebraico. Passei por uma antiga padaria e quase pude sentir o cheiro do challah, o pão trançado judeu, que ali costumavam confecionar. Desde que os alemães tinham deportado os judeus para o gueto de Podgórze, tudo tinha passado à história. As lojas estavam abandonadas, as janelas de vidro partidas ou fechadas. As sinagogas, durante séculos repletas de fiéis ao sábado de manhã, estavam agora mudas e quedas.

Nervosa, apressei-me a passar pela cidade-fantasma e cheguei à base da ponte que atravessava a vasta língua do Vístula. O rio separava o centro da cidade e o bairro de Kazimierz dos bairros de Dębniki e Podgórze ao sul. Olhei por cima do ombro para o enorme Castelo Wawel. Outrora sede da monarquia polaca, presidiu a cidade durante praticamente mil anos. Como tudo o resto, pertencia agora ao Governo-Geral, invadido pelos alemães que aí estabeleceram a sede da sua administração.

Agora, enquanto olhava para o castelo, fui assolada pela lembrança de uma noite, pouco depois da invasão, enquanto dava um passeio. Ao chegar ao alto cais sobre o rio, vi barcos agrupados em volta do castelo. Grandes caixas estavam a ser trazidas do interior e embarcadas por uma rampa, as mais pesadas com rodas. Um assalto, pensei eu, com a fertilidade da minha imaginação infantil de então. Fantasiei que chamava a polícia, sendo aclamada como uma heroína por frustrar a tramoia. Porém, as pessoas que estavam a levar as coisas não pareciam criminosas; eram antes trabalhadores do museu, a esconderem à socapa os nossos tesouros nacionais para os salvarem. Mas de quê? Da pilhagem? Dos ataques aéreos? Os quadros estavam a ser resgatados, já nós éramos deixados para trás para fazer face a qualquer destino que nos aguardasse sob o domínio dos alemães. Soube então que nada voltaria a ser igual.

Do outro lado da ponte, ficava Dębniki, o bairro onde a Hanna pensou que poderia haver cerejas à venda. O seu horizonte era uma amálgama de fábricas e armazéns, um mundo bem diferente das elegantes igrejas e torres do centro da cidade. Parei na Zamkowa, uma rua à beira do rio, para me orientar. Nunca tinha estado sozinha em Dębniki e só agora me ocorreu que poderia perder-me. Hesitei, olhando para o edifício baixo da esquina, que parecia ser o lugar de carregamento de caixas para uma barcaça que estava atracada à beira-rio. Não era o tipo de lugar em que me sentisse à vontade a pedir informações. Mas não havia transeuntes a quem pudesse perguntar, então parecia a melhor opção se quisesse chegar ao mercado a tempo de arranjar cerejas e salvar a Hanna. Reuni coragem e comecei a avançar em direção a um grupo de homens que fumavam perto de uma plataforma de carga.

— Com licença — disse, e vi nos seus rostos quão fora de lugar me encontrava ali.

— Ella? — Fiquei pasmada ao ouvir o meu nome. Virei-me para me deparar com um rosto familiar: o pai do Krys. O seu rosto forte e olhos fundos eram uma cópia do seu filho. O Krys fora criado no bairro operário de Dębniki. O seu pai era estivador, e a sua família totalmente imprópria para a nossa, relembrou-me a Ana Lucia mais de uma vez. Eu só tinha estado na casa do Krys algumas vezes para conhecer os seus pais. Embora ele nunca admitisse que tais coisas lhe importassem, suspeitei que uma parte dele ficara com vergonha de me mostrar a pequena casa numa rua simples e sem graça onde ele se criara. Porém, eu tinha ficado maravilhada com o calor simples da sua família e a maneira como a sua mãe adorava o seu «bebé», embora ele fosse um robusto rapaz de vinte anos que media quase mais trinta centímetros do que ela. Adorava passar tempo na casa deles, que era tão acolhedora quanto a minha era fria.

Claro que na casa deles agora também reinava a quietude. Os pais do Krys enviaram três filhos para a guerra, os dois mais velhos foram mortos e o terceiro ainda estava dado como desaparecido. O seu pai parecia mais velho do que eu recordava, as linhas do seu rosto mais vincadas, os ombros largos encurvados, o cabelo quase todo grisalho. Senti uma culpa crescente. Mesmo não sendo muito próxima dos pais do Krys, devia ter visto como eles estavam desde a sua partida.

Mas o seu pai não mostrou o mínimo laivo de recriminação quando deu um passo na minha direção, de olhos calorosos, mas perplexos.

— Ella, o que é que estás aqui a fazer? — Comecei por lhe dizer que precisava de indicações. — Se andas à procura do Krys, ele não demora a chegar — acrescentou.

— Chegar? — repeti a palavra, certa de ter percebido mal. Ele tinha recebido notícias do Krys? Senti um baque no coração. — Da guerra?

— Não, do almoço. Deve cá estar em menos de uma hora.

— Desculpe, não estou a perceber… O Krys ainda está na guerra. — Julguei que o homem idoso estava confuso, com a mente atormentada pela dor da perda.

Mas não havia resquícios de dúvida nos seus olhos.

— Não, ele voltou há duas semanas e tem trabalhado aqui comigo. — A sua voz transparecia segurança e certeza, não deixava dúvidas. Fiquei petrificada, atordoada e em silêncio. O Krys estava de volta. — Sinto muito — disse o pai do Krys. — Pensei que soubesses.

Não, não sabia.

— Por favor, sabe dizer-me onde é que posso encontrá-lo?

— Ele disse que tinha uma coisa para fazer. Acho que foi ao café da rua Barska, aquele onde ele parava muito antes da guerra. — Apontou para a rua que ia na direção oposta ao rio. — Segunda rua à direita. Vais encontrá-lo lá.

— Obrigada. — Enveredei na direção do café, com a mente desbocada. O Krys estava de volta. Parte de mim ficou radiante. Estava a poucos passos de distância e, em questão de minutos, ia vê-lo. Mas o homem com quem me deveria casar voltara da guerra e nem sequer mo tinha contado. Talvez fizesse sentido; afinal, ele tinha acabado comigo antes de partir. Eu era apenas uma rapariga do seu passado, alguém em quem já não pensava. Mesmo assim, era ultrajante que nem sequer tivesse tido a decência de me dizer que estava de volta, são e salvo, deixando-me preocupada e a matutar. Decididamente, merecia mais do que aquilo. Considerei as minhas opções: ir atrás dele ou não fazer nada. Se ele não tinha ido ver-me, eu não devia rebaixar-me a ir atrás dele. Mas precisava de saber o que tinha acontecido, porque é que ele não tinha voltado para mim. Que se danasse o decoro. Comecei a dirigir-me para o café.

A rua Barska, que o pai do Krys me tinha indicado, ficava perto do centro de Dębniki. Enquanto percorria as imediações, notei que os prédios da zona eram muito próximos, com fachadas esburacadas e sujas de fuligem. Cheguei rapidamente ao café. Não se tratava de um restaurante elegante como os que havia na praça do mercado, mas um café simples, onde as pessoas compravam uma chávena de substituto de café preto ou uma torta de sementes de papoila ou um pãozinho doce com queijo antes de irem para o trabalho. Observei os clientes ao redor das poucas mesas altas do outro lado da janela. Ao longo dos últimos anos, tinha imaginado ter visto o Krys uma infinidade de vezes. Ocasionalmente, cheguei a pensar que o tinha visto num elétrico que passava ou numa multidão em movimento. Claro que nunca era ele. Também não via o Krys agora e perguntei-me se o seu pai se tinha enganado. Ou talvez o Krys já cá não estivesse.

Entrei no estabelecimento e o cheiro quente de café e fumo de cigarro encheu-me as narinas. Abri caminho entre as mesas bem juntas. Por fim, avistei uma figura familiar sentada bem ao fundo, de costas para mim. Era o Krys. O meu coração acelerou, mas parou logo novamente. Sentada em frente do Krys estava uma mulher deslumbrante de cabelos escuros, alguns anos mais velha do que eu, a olhá-lo com uma expressão extasiada enquanto ele falava.

Encarei-o, como se visse uma aparição. Como era possível? Eu tinha sonhado e pensado nele sem cessar. No começo, imaginava-o em combate. À medida que as suas cartas escasseavam, imaginei-o morto ou ferido. Mas ei-lo, sentado num café, de chávena de café à frente e com outra mulher ao lado, como se nada tivesse acontecido. Como se nós não tivéssemos existido.

Por um segundo, fiquei aliviada, até feliz por vê-lo ali e seguro. Mas, quando a realidade da situação desabou sobre mim, a minha raiva explodiu. Atravessei o café. Então parei, momentaneamente hesitante, sem saber o que dizer. A mulher que estava com o Krys percebeu que me aproximava e a sua expressão tornou-se confusa. O Krys virou-se e os nossos olhos encontraram-se. A sala inteira pareceu ficar parada. O Krys sussurrou algo à mulher e levantou-se, vindo na minha direção. Comecei a afastar-me e saí dali, como se estivesse com falta de ar. Não parei.

O Krys seguiu-me.

— Ella, espera! — Eu queria correr, mas ele apanhou-me num instante com o seu passo largo, antes que pudesse esquivar-me. Os seus dedos quentes envolveram o meu antebraço, parando-me de um modo firme, mas gentil. O toque encheu o meu coração e despedaçou-o de novo, tudo ao mesmo tempo. Olhei para cima, inundada de raiva, dor e felicidade. Estando tão perto, queria tocar-lhe, encostar a minha cabeça ao seu peito e fazer com que o mundo inteiro desaparecesse como sempre tinha sido. Então, por cima do ombro dele, vi a mulher com quem ele estava sentado a olhar-nos com um ar inquisidor pela janela do café. Os meus sentimentos afetuosos desvaneceram-se.

— Ella — disse o Krys outra vez. Ele inclinou-se na minha direção. Mas o beijo que me tentou dar era dirigido à minha face, a mundos de distância do abraço apaixonado que tínhamos partilhado quando o vi pela última vez. Afastei-me. Um laivo do seu cheiro familiar flutuou pelo meu nariz e ondas de memórias dolorosas abateram-se sobre mim. Há uma hora, o homem que eu amava ainda era meu nas minhas memórias. Mas agora estava diante de mim, realmente ali, porém era um estranho.

— Quando é que voltaste? — perguntei.

— Há só uns dias. — Perguntei-me se isso era verdade. O seu pai tinha dito duas semanas. Não era típico do Krys mentir, mas também nunca pensei que ele me esconderia o seu regresso. — Ia visitar-te — acrescentou ele.

— Depois do teu encontro no café? — saiu-me em jeito de resposta impulsiva.

— Não é assim. Posso explicar, mas aqui não. Vens ter comigo mais tarde?

— Qual é a necessidade? Está tudo acabado entre nós, não está?

Ele olhou-me de frente, olhos nos olhos, incapaz de mentir.

— Sim. Não é o que estás a pensar, mas é verdade. Já não podemos ficar juntos. Tenho muita pena. Eu disse-to antes da guerra.

Pois foi, admiti em silêncio. Lembrei-me da nossa última conversa antes de ele partir, eu mais certa do que nunca de que éramos um casal, ele a afastar-se. Mas não quis dar-lhe ouvidos.

— Deves perceber que eu nunca faria nada para te magoar. — A súplica extravasava dos seus olhos. — Que isto é o melhor.

Como é que podia dizer uma coisa dessas? Considerei rebater. Queria lembrá-lo de tudo o que tínhamos significado um para o outro e do que ainda poderia haver entre nós. Mas o meu orgulho ergueu-se, impedindo-me. Não imploraria a alguém que já não me queria.

— Então, adeus — disse eu, conseguindo evitar que a minha voz tremesse.

Sem proferir nem mais uma palavra, dei meia-volta e comecei a afastar-me, quase colidindo com um homem que descarregava caixotes de uma carroça puxada por cavalos.

— Ella, espera! — chamou-me o Krys, mas eu continuei a correr, ansiosa para me distanciar ao máximo da dor de ver o Krys novamente, mas consciente de que não havia um futuro a dois para nós.

A vários quarteirões de distância, virei-me, quase desejosa de que ele me tivesse seguido. Mas não tinha. Prossegui o meu caminho, mais devagar agora, as lágrimas a escorrerem pela cara abaixo. O meu namoro tinha acabado. O meu futuro estava morto. Não entendia. Quando olhei o Krys nos olhos, senti o mesmo de sempre. Mas ele retribuiu-me um olhar petrificado, como se fôssemos estranhos. Como é que se poderia ter esquecido? Mesmo enquanto pensava nele com raiva, memórias ardentes inundaram o meu cérebro. Houve uma espécie de desespero quando a guerra rebentou, uma sensação de que cada vez que estivéssemos juntos poderia ser a última. Isso fez-me sentir inebriante, viva. Mas também me fez fazer coisas que de outra forma não faria. Tinha dormido com o Krys apenas uma vez antes de ele partir, em vez de esperar até ao casamento ou mesmo até que nos comprometêssemos formalmente, numa tentativa desesperada de segurar o que tínhamos mais um pouco. Achei que significava tanto para ele quanto ele para mim. Só que agora ele tinha-me deixado para sempre.

Poucos minutos depois, olhei para cima e vi o meu reflexo na montra de um talho. Tinha os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar, o rosto tumefacto. Patética, repreendi-me, enxugando as lágrimas. Mesmo assim, não conseguia parar de pensar no Krys. Imaginei-o a regressar ao café, para junto daquela mulher e a continuar a conversa como se nada fosse. Quem era ela? Tê-la-ia conhecido enquanto esteve fora? Apesar de tudo, eu sabia que o Krys era um homem honrado e descartava que ela fizesse parte da vida dele quando estávamos juntos. Mas ele parecia um estranho, e a sua vida desde que partira para a guerra e o presente estavam ocultos atrás de um vidro embaciado, turvos à vista.

Decidi que me era impossível ficar em Cracóvia. Já não havia futuro para mim ali. Eu e os meus amigos costumávamos dizer na brincadeira que Cracóvia era a maior das cidades pequenas. Estávamos sempre a dar de caras uns com os outros. Eu teria de ver o Krys e, mesmo que não fosse assim, a cidade estaria carregada de memórias dolorosas. Paris, pensei de repente, quando o rosto do meu irmão me veio à cabeça. Mais de uma vez, o Maciej tinha insistido nas suas cartas para que o fosse visitar. Ia reescrever a minha carta e pedir-lhe que me mandasse chamar assim que pudesse. A guerra podia dificultá-lo, até mesmo impossibilitá-lo, mas eu sabia que o Maciej ia tentar. Tirei a carta que tencionava enviar-lhe da cesta e deitei-a num caixote do lixo próximo, com a intenção de lhe escrever outra depois de concluir a minha missão.

Olhei para o céu. O sol já ia alto, indicando que era quase meio-dia, e eu ainda não tinha feito nada para conseguir as cerejas de que a Hanna precisava. Dirigi-me para o Rynek Dębniki, o mercado principal do bairro, onde aos sábados os vendedores expunham os seus produtos nas bancas simples de madeira. Ao aproximar-me do mercado, fiquei maravilhada por ainda estar aberto, já que não havia quase nada à venda depois de anos de racionamento e privação. Não havia carne e quase nenhum pão, e os poucos produtos que havia já começavam a apodrecer. Resguardada no meu mundo de privilégios e proteção, as dificuldades que as pessoas normais enfrentavam durante a guerra não eram visíveis para mim. Ali, enquanto observava os moradores a correrem entre as bancas para verem o que ainda estava disponível e se lhes era possível pagar, as nossas diferenças avultaram-se. Naquela zona, os compradores eram magros e as suas faces encovadas. E não pareciam surpreendidos com a falta de comida disponível, simplesmente levavam o que podiam e iam com as cestas e sacolas quase vazias.

Caminhei em direção ao vendedor mais próximo, examinei os poucos produtos disponíveis na banca, sobretudo batatas e um ou outro repolho podre.

— Cerejas secas ou enlatadas? — perguntei, já ciente da resposta. As cerejas cresciam abundantemente nas árvores fora da cidade no início do verão. Se devidamente preservadas no ano anterior, não deveria haver falta dessa fruta. Mas os alemães tinham despojado a Polónia de grande parte das suas riquezas naturais, de colheitas a rebanhos de gado e ovelhas. Certamente também teriam levado as cerejas. De todos os modos, perguntei ao homem na mesma, não fosse ele ter algumas que não estavam à mostra e das quais se quisesse desfazer caso lhe oferecesse um determinado preço. Quase queria que o vendedor me dissesse que estava sem cerejas para que a Ana Lucia não pudesse obsequiar o alemão com essa especialidade. Mas isso só daria à minha madrasta outra ocasião para se lamuriar das minhas falhas.

Ele abanou a cabeça, o boné a balançar sobre um rosto profundamente enrugado.

— Há meses que não — respondeu ele com os dentes manchados de tabaco. Fiquei aborrecida por ter vindo tão longe para nada e por a Hanna estar errada. O vendedor parecia arrependido por ter perdido a venda. Impulsivamente, apontei para um monte de crisântemos que ele também vendia. O seu rosto iluminou-se. — Talvez queira experimentar o czarny rynek na esquina da rua Pułaskiego — acrescentou ele, enquanto pegava nas flores de um vermelho vivo e as embrulhava em papel pardo. Entregou-me as flores e coloquei uma moeda na palma da sua mão.

Fiquei surpreendida com o facto de haver dois mercados tão próximos. Mas quando dobrei a esquina, descobri que o lugar que me tinha indicado não era propriamente um mercado, mas um beco estreito na parte de trás de uma igreja onde uma dúzia ou mais de pessoas se amontoavam. Então entendi. Czarny rynek significa mercado negro, um lugar ilegal onde as pessoas vendem mercadorias proibidas ou raras por um preço mais alto. Já tinha ouvido falar desses lugares, mas até agora não sabia se existiam realmente. Os poucos vendedores que por ali pululavam não tinham bancas, mas espalhavam os produtos em cobertores velhos ou lonas no chão, bancas móveis que podiam ser apanhadas num instante caso tivessem de fugir da polícia. Havia uma mistura de tudo, de alimentos difíceis de conseguir como chocolate e queijo a um rádio de contrabando e uma arma antiga tão velha que me perguntei se realmente funcionaria.

Pensei sair dali. O mercado negro era ilegal e qualquer um podia ser preso por comprar ou vender. Mas eis que avistei um vendedor de frutas no meio do beco com muito mais produtos do que os existentes no mercado verdadeiro. Comecei a avançar. Ali havia cerejas secas, pelo menos algumas, espalhadas sobre uma lona suja no chão. Peguei em todas as que havia e paguei ao proprietário desdentado, usando a maioria das moedas restantes que a minha madrasta me tinha dado. Pus uma das cerejas na boca para as provar, tentando não pensar nas unhas sujas do comerciante que acabara de mas entregar. O sabor agridoce da fruta arrepiou-me a cara. Chupei o caroço enquanto caminhava, depois cuspi-o numa sarjeta próxima.

Passei por cima da grelha com cuidado para não prender o salto do sapato. Lá do fundo veio um farfalhar que me assustou. Dei um pulo. Com toda a probabilidade era só um rato, disse a mim própria, como os que aparecem à noite para se banquetearem com o que puderem encontrar. Mas era de dia, e improvável que os roedores repugnantes andassem por ali.

Ouvi de novo o mesmo barulho, vindo lá de baixo, e demasiado alto para ser um rato. Olhei para o fundo e vi dois olhos que me fitavam. Não eram uns olhos redondos de animal, mas umas íris escuras rodeadas de branco. Olhos humanos. Havia uma pessoa no esgoto. Para ser mais específica, era uma rapariga. Ao princípio, pensei que fosse fruto da minha imaginação. Pestanejei para focar melhor, esperando que tal visão se tivesse esfumado como uma espécie de miragem. Mas quando olhei de novo, a rapariga ainda lá estava. Muito magra, suja e molhada, a olhar para cima. Ela recuou um pouco, como se tivesse medo de ser vista, mas ainda conseguia ver os seus olhos na escuridão, à procura. A observar-me.

Quis alertar em voz alta sobre a sua presença. Porém, algo me impediu, um punho que parecia apertar-me a garganta, silenciando a minha respiração para que nenhum som saísse. O que quer que a tivesse obrigado a enfiar-se naquele lugar horrendo significava que não queria ser encontrada. Eu não devia, não podia dizer nada. Sufocada, tentei respirar, desejando que o aperto diminuísse. Então olhei em volta, com curiosidade de saber se mais alguém tinha reparado, se tinha visto o que eu acabara de ver. Os outros transeuntes deambulavam, desatentos. Virei-me novamente, perguntando-me quem seria a rapariga e como é que ali tinha ido parar.

Quando olhei novamente para o esgoto, ela tinha desaparecido.

A mulher da estrela azul

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