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1 Sadie

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Cracóvia, Polónia

Março 1942

Tudo mudou no dia em que vieram buscar as crianças.

Eu devia estar no entreforro do sótão do prédio de três andares que dividíamos com uma dúzia de outras famílias do gueto. Todas as manhãs, a minha mãe ajudava-me a esconder-me ali, antes de se juntar ao destacamento de trabalhadores fabris, deixando-me um balde limpo para fazer as vezes de casa de banho e a advertência severa de não sair do sítio. Mas eu ficava enregelada e nervosa sozinha naquele espaço diminuto e frio onde não era capaz de me mexer, correr ou nem sequer estar de pé. Os minutos decorriam lentamente, apenas interrompidos por uns arranhões — crianças invisíveis, muito mais novas do que eu, armazenadas no lado de lá da parede. Mantinham-nas separadas, sem espaço para correr e brincar. Enviavam mensagens umas às outras com pancadinhas e arranhões, numa espécie de código morse improvisado. Às vezes, de tão entediada, eu também participava.

«A liberdade está onde a encontrares», costumava dizer o meu pai sempre que me queixava. O meu pai via o mundo exatamente como queria. «A pior prisão é a tua cabeça.» Para ele, era fácil falar. Embora o trabalho braçal do gueto distasse muito da sua profissão de contabilista anterior à guerra, pelo menos ele saía de casa todos os dias, e via outras pessoas, não estava confinado como eu, que praticamente não saía daquele prédio desde que, há seis meses, nos obrigaram a mudar-nos do nosso apartamento no bairro judeu, perto do centro da cidade, para o bairro de Podgórze, onde o gueto fora criado na margem sul do rio. Eu queria uma vida normal, a minha vida, livre para transpor os muros do gueto e ir a todos os lugares que conhecia e dava como garantidos. Imaginei-me a apanhar o elétrico para as lojas da Rynek ou para o kino para ver um filme, a explorar os velhos montes verdejantes nos arrabaldes da cidade. Se, pelo menos, a minha melhor amiga, a Stefania, fosse uma das outras crianças escondidas nas proximidades… Em vez disso, ela morava num apartamento afastado, do outro lado do gueto, atribuído às famílias da polícia judia.

Dessa vez, não foi o tédio ou a solidão que me tiraram do meu esconderijo, mas sim a fome. Sempre tive um grande apetite e o pequeno-almoço dessa manhã tinha sido meia fatia de pão, ainda menos do que o normal. A minha mãe tinha-me oferecido a sua parte, mas eu sabia que ela precisava de energia para o longo dia de trabalho na fábrica.

À medida que a manhã avançava no esconderijo, a minha barriga vazia começou a doer. Pela minha cabeça, e sem terem sido convidadas, passavam visões dos alimentos que comíamos antes da guerra: a deliciosa sopa de cogumelos e o borscht saboroso, e pierogi, os dumplings fofos e maravilhosos que a minha avó costumava fazer. A meio da manhã, sentia-me tão fraca da fome que me aventurei a sair do esconderijo e descer até à cozinha comum no rés-do-chão, que não passava de um fogão solitário e uma pia que pingava água morna e acastanhada. Não fui à procura de comida — mesmo que houvesse alguma, nunca a roubaria. Só queria ver se havia algumas migalhas no armário e encher o estômago com um copo de água.

Fiquei na cozinha mais tempo do que devia, a ler o exemplar amarrotado do livro que tinha trazido comigo. O que mais detestava no meu esconderijo do sótão era o facto de ser demasiado escuro para ler. Sempre gostei de ler e o meu pai trouxera o máximo de livros que pôde do nosso apartamento para o gueto, apesar dos protestos da minha mãe, que dizia que precisávamos do espaço nas malas para roupa e comida. Era o meu pai que alimentava o meu amor pela aprendizagem e encorajava o meu sonho de estudar Medicina na Universidade Jaguelónica, antes de as leis alemãs o impossibilitarem, primeiro ao banirem os judeus e depois ao fecharem definitivamente a universidade. Mesmo no gueto, no fim dos seus longos e árduos dias de trabalho, o meu pai adorava ensinar-me e discutir ideias comigo. De alguma forma, tinha-me conseguido um livro novo, uns dias antes, O Conde de Monte Cristo. Mas o esconderijo do sótão era muito escuro para o poder ler e praticamente não sobrava tempo antes do toque de recolher obrigatório e de apagarem as luzes. Só mais um bocadinho, disse a mim própria, ao passar a página na cozinha. Mais uns minutos não fariam diferença.

Tinha acabado de lamber a faca do pão suja quando ouvi o chiar de uns pneus pesados, seguidos de vozes que mais pareciam cães a rosnar. Fiquei petrificada, e quase deixei cair o livro. As SS e a Gestapo estavam lá fora, flanqueadas pela vil Jüdischer Ordnungsdienst, a polícia judia do gueto, que obedecia às suas ordens. Era uma aktion, a prisão repentina e sem aviso prévio de grandes grupos de judeus levados do gueto para os campos de trabalho. Era a razão primordial pela qual me mantinha escondida. Saí a correr da cozinha, atravessei o corredor e subi as escadas. Lá de baixo, veio um grande estrondo quando a porta da frente do prédio se escancarou e a polícia entrou. Era impossível voltar para o sótão a tempo.

Em vez disso, corri para o nosso apartamento no terceiro andar. O meu coração batia com força enquanto olhava desesperadamente em volta, à espera de encontrar um armário ou qualquer outro móvel adequado para me esconder no quarto minúsculo, quase vazio, à exceção da cómoda e da cama. Eu sabia que havia outros lugares, como a parede de gesso falso que uma das outras famílias construiu no prédio adjacente há menos de uma semana. Isso agora era muito longe, impossível de lá chegar. Os meus olhos pousaram-se no grande baú situado aos pés da cama dos meus pais. Uma vez, a minha mãe ensinou-me a esconder-me lá dentro, pouco depois de nos termos mudado para o gueto. Praticámos como se fosse um jogo, a mãe a abrir o baú para eu entrar antes de ela fechar a tampa.

O baú era um esconderijo horrível, muito exposto no meio da sala. Mas simplesmente não havia mais nenhum lugar; eu tinha de tentar. Corri até à cama e enfiei-me dentro do baú, depois fechei a tampa com esforço. Agradeci aos céus por ser pequena como a minha mãe. Sempre odiei ser tão franzina, o que me fazia parecer dois anos mais nova do que realmente era. Naquele momento, era uma bênção, isso e o triste facto de ter emagrecido à conta daqueles meses de mísero racionamento no gueto. Ainda cabia no baú.

Naqueles ensaios, imaginámos que a minha mãe colocava um cobertor ou algumas roupas em cima do baú. Claro que eu era incapaz de fazer isso sozinha, logo, o baú estava ainda mais desprotegido e qualquer pessoa que entrasse no quarto podia vê-lo e abri-lo. Enrolei-me como um bicho-de-conta, com os braços à volta do corpo, sentindo a braçadeira branca com a estrela azul que todos os judeus eram obrigados a usar na manga.

Vindo do prédio do lado, chegou um grande estrondo, o som de gesso a ser esquartejado por um martelo ou machado. A polícia tinha encontrado o esconderijo atrás da parede, delatado pela tinta ainda fresca. Um grito desconhecido ecoou quando uma criança foi encontrada e arrastada do seu refúgio. Se eu tivesse ido para lá, também teria sido apanhada.

Alguém se aproximou da porta do nosso apartamento e escancarou-a. O meu coração parou. Conseguia ouvir a sua respiração, sentir os olhos a espiolharem o quarto. Desculpa, mãe, pensei, sentindo a sua reprovação por ter saído do sótão. Preparei-me para ser descoberta. Será que seriam mais brandos comigo se me entregasse? Os passos ficaram mais fracos à medida que o alemão avançava pelo corredor, parando diante de cada porta, à cata de fugitivos.

A guerra chegara a Cracóvia num dia quente de outono, dois anos e meio antes, quando as sirenes dos ataques aéreos se ouviram pela primeira vez e esvaziaram as ruas das crianças que aí brincavam. A vida tornou-se difícil antes de ficar péssima. A comida escasseava e esperávamos em longas filas pelos mantimentos mais básicos. Uma vez não houve pão durante uma semana inteira.

Então, há cerca de um ano, por ordem do Governo-Geral, milhares de judeus oriundos de pequenas cidades e aldeias, atordoados e de trouxa às costas, lotaram Cracóvia. No começo, perguntei-me como seria possível que encontrassem um lugar para ficar no Kazimierz, o já acanhado bairro judeu da cidade. Mas os recém-chegados foram forçados por decreto a viver numa área abarrotada do distrito industrial de Podgórze, na outra margem do rio, que tinha sido cercada por um muro alto. A minha mãe trabalhava com a Gmina, a organização da comunidade judaica local, para ajudá-los a instalar-se, e muitas vezes recebíamos amigos de amigos que almoçavam ou jantavam connosco quando chegavam, antes de irem definitivamente para o gueto. Contavam-nos histórias horríveis demais para serem verdade das suas cidades natal e a minha mãe enxotava-me da sala para não as ouvir.

Vários meses após a criação do gueto, recebemos ordens para nos mudarmos para lá também. Quando o meu pai me contou, não conseguia acreditar. Não éramos refugiados, mas moradores de Cracóvia; tínhamos vivido no nosso apartamento da rua Meiselsa a minha vida inteira. Tinha uma localização perfeita: numa extremidade do bairro judeu, mas a curta distância da diversão e bulício do centro da cidade e suficientemente perto do escritório do meu pai na rua Stradomska para ele poder vir a casa almoçar. A nossa casa ficava por cima de um café onde um pianista tocava todas as noites. Às vezes, a música chegava até nós e o meu pai rodopiava com a minha mãe pela cozinha ao som de acordes fracos. Mas de acordo com as ordens, os judeus eram judeus. Um dia. Uma mala por pessoa. E o mundo que conheci durante toda a vida desapareceu para sempre.

Espreitei pela nesga fina do baú, tentando avistar alguma coisa no quarto minúsculo que dividia com os meus pais. Sabia que tínhamos sorte por dispormos de uma divisão inteira só para nós, privilégio que nos fora concedido por o meu pai ser capataz no trabalho. Outros eram obrigados a dividir um apartamento, por norma duas ou três famílias juntas. Ainda assim, o espaço era acanhado em comparação com a nossa antiga casa. Estávamos sempre uns em cima dos outros, o que magnificava as imagens, os sons e os odores da vida diária.

«Kinder, raus!», a polícia chamou várias vezes enquanto patrulhava os corredores. «Crianças, fora.» Não era a primeira vez que os alemães vinham buscar crianças durante o dia, sabendo que os pais estariam no trabalho.

Mas eu não já não era uma criança. Tinha dezoito anos e poder-me-ia ter unido às forças de trabalho como outros da minha idade e alguns vários anos mais novos. Via-os cada manhã na fila para a chamada, antes de se arrastarem para uma das fábricas. E eu queria trabalhar, embora pudesse dizer pela maneira lenta e dolorosa como o meu pai agora caminhava, curvado como um velho, e como as mãos da minha mãe estavam gretadas e a sangrar, que era difícil e horrível. Trabalhar implicava ter uma oportunidade de sair, ver e conversar com outras pessoas. O meu esconderijo era um assunto de grande discussão entre os meus pais. O meu pai achava que eu devia trabalhar. A autorização de trabalho era altamente valorizada no gueto. Os trabalhadores eram avaliados e menos propensos a serem deportados para um dos campos. Mas a minha mãe, que raramente se opunha ao meu pai, tinha-o proibido. «Ela parece ter menos idade. O trabalho é muito duro. É mais seguro ela ficar longe da vista.» No meu refúgio atual e prestes a ser descoberta a qualquer segundo, interroguei-me se ela ainda pensaria ter razão.

Por fim, o prédio ficou em silêncio, à medida que os últimos passos horríveis foram esmorecendo. Porém, não me mexi. Essa era uma das formas de apanharem pessoas escondidas, fingiam que se iam embora e ficavam à coca, à espera de que elas saíssem dos seus refúgios. Fiquei imóvel, não me atrevendo a sair do esconderijo. Os meus membros doíam-me, depois ficaram dormentes. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado. Através da fenda, consegui ver que a penumbra invadira o quarto, como se o sol estivesse mais baixo.

Algum tempo depois, ouviram-se passos novamente, desta vez o som arrastado da chegada dos trabalhadores, silenciosos e exaustos do dia de trabalho. Tentei desenrolar-me no baú, mas tinha os membros rígidos e doridos e os movimentos lentos. Antes de conseguir sair, a porta do nosso apartamento abriu-se e alguém entrou a correr no quarto com passos leves e agitados.

— Sadie! — Era a minha mãe, e parecia histérica.

— Jestem tutaj — chamei. Estou aqui. Agora que ela estava em casa, podia ajudar-me a desdobrar-me e sair dali. Mas o baú abafou a minha voz. Quando tentei abrir o trinco, emperrou.

A minha mãe saiu a correr do quarto para o corredor. Ouvi-a abrir a porta do sótão e subir as escadas a correr, ainda à minha procura.

— Sadie! — chamou. — Minha filha, minha filha — dizia repetidamente enquanto me procurava e não me encontrava, a sua voz elevada a um guincho. Pensava que tinha sido levada.

— Mãe! — gritei. Mas ela estava longe demais para me ouvir; para além disso, os seus próprios gritos também eram muito altos. Em desespero, tentei mais uma vez libertar-me do baú, mas foi em vão. A minha mãe correu de volta para o quarto, ainda em pranto. Ouvi alguma coisa a raspar; era o som da janela a abrir-se. Por fim, lancei-me com tanta força contra a tampa do baú que o meu ombro latejou. O trinco abriu-se.

Liberta, levantei-me rapidamente.

— Mãe? — Ela estava de pé na posição mais estranha, com um pé no parapeito da janela, a sua silhueta esguia perfilada contra o céu frio do crepúsculo. — O que é que estás a fazer? — Por um segundo, pensei que ela estava à minha procura lá fora. Mas o seu rosto estava contorcido de tristeza e de dor. Então percebi porque é que a minha mãe estava no parapeito da janela. Ela presumiu que me tivessem levado juntamente com as outras crianças. E não queria viver. Se não me tivesse livrado do baú a tempo, a minha mãe teria saltado. Eu era a sua única filha, o seu mundo todo. Ela estava disposta a matar-se antes de viver sem mim.

Um arrepio percorreu o meu corpo enquanto corri na sua direção.

— Estou aqui, estou aqui.

Trôpega, ela cambaleou no parapeito da janela e agarrei-lhe o braço para a impedir de cair. O remorso varreu-me. Sempre quis agradar-lhe, trazer aquele sorriso arduamente conquistado ao seu lindo rosto. E acabava de lhe causar tamanha dor que quase a levara a fazer o impensável.

— Estava tão preocupada — disse ela depois de a ajudar a descer e fechar a janela. Como se isso explicasse tudo. — Não estavas no sótão.

— Mas, mãe, escondi-me onde me disseste. — Fiz um gesto para o baú. — O outro lugar, lembras-te? Porque é que não me procuraste ali?

A minha mãe parecia confusa.

— Achei que já não cabias lá dentro. — Houve uma pausa e então nós as duas começámos a rir, um som áspero e fora de lugar naquele quarto deplorável. Por uns segundos, foi como se estivéssemos de novo no nosso antigo apartamento da rua Meiselsa e nada daquilo tivesse acontecido. Se ainda nos conseguíamos rir, de certeza que tudo se havia de solucionar. Agarrei-me a esse último pensamento improvável como a um colete salva-vidas no mar.

Mas um grito ecoou pelo prédio, depois outro, silenciando as nossas gargalhadas. Eram as mães das outras crianças levadas pela polícia. Ouviu-se um baque do lado de fora. Dirigi-me para a janela, mas a minha mãe impediu-me.

— Não olhes — ordenou ela. Tarde demais. Vislumbrei a Helga Kolberg, que morava no final do corredor, deitada, imóvel, na neve tingida de carvão no pavimento, com os membros em ângulos estranhos e a saia aberta em volta de si como um leque. Ela percebeu que os seus filhos tinham desaparecido e, tal como a minha mãe, não queria viver sem eles. Perguntei-me se saltar era um instinto comum ou se elas o tinham combinado, uma espécie de pacto suicida para o caso de os seus piores pesadelos se tornarem realidade.

O meu pai entrou disparado no quarto. Nem a minha mãe nem eu proferimos uma palavra, mas percebi pela sua expressão estranhamente sombria que ele já sabia da aktion e do que tinha acontecido às outras famílias. Simplesmente aproximou-se e rodeou-nos às duas com os seus braços enormes, num abraço mais apertado do que o normal.

Quando nos sentámos, calados e quietos, olhei para os meus pais. A minha mãe era de uma beleza impressionante — magra e elegante, com o cabelo louro claro da cor de uma princesa nórdica. Não se parecia nada com as outras mulheres judias e, mais de uma vez, tinha ouvido sussurros que diziam que ela não era daqui. Se não fosse por nós, ela podia sair do gueto e viver como uma não judia. Mas eu saía ao meu pai, de cabelo escuro e encaracolado e pele cor de azeitona que tornavam inegável o facto de sermos judeus. O meu pai aparentava ser o trabalhador que os alemães tinham feito dele no gueto, de ombros largos e pronto para levantar grandes canos ou lajes de betão. Na verdade, era contabilista — ou tinha sido até que se tornou ilegal para a sua empresa continuar a contratá-lo. Sempre quis agradar à minha mãe, mas era o meu pai que era meu aliado, guardião dos meus segredos e tecelão dos meus sonhos, que ficava acordado até tarde a sussurrar-me segredos no escuro e deambulava pela cidade comigo, em busca de tesouros. Aproximei-me, tentando perder-me na segurança do seu abraço.

Contudo, os braços do meu pai eram incapazes de me proteger do facto de que tudo estava a mudar. O gueto, apesar das suas condições horrendas, em tempos parecera relativamente seguro. Vivíamos entre judeus e os alemães até tinham nomeado um conselho judaico, o Judenrat, para gerir os nossos afazeres diários. Talvez se nos acalmássemos e fizéssemos aquilo que nos mandavam, dizia muitas vezes o meu pai, os alemães nos deixassem em paz dentro daqueles muros até ao fim da guerra. Era a nossa esperança. Mas a partir de hoje, já não tinha tanta certeza disso. Olhei em volta, assolada pelo nojo e pelo medo, em partes iguais. No princípio, eu não queria estar ali; agora estava com medo de sermos obrigados a partir.

— Temos de fazer alguma coisa — a minha mãe explodiu, a sua voz num tom mais alto do que o normal enquanto ecoava os meus pensamentos ocultos.

— Vou levá-la amanhã e registá-la para obter uma autorização de trabalho — disse o meu pai. Dessa vez, a minha mãe não replicou. Antes da guerra, era bom ser criança. Mas agora, ser útil e capaz de trabalhar era a única coisa que poderia salvar-nos.

No entanto, a minha mãe referia-se a mais do que a um visto de trabalho.

— Eles hão de cá vir de novo e para a próxima vez não vamos ter tanta sorte. — Ela já não se preocupou em conter as palavras para meu benefício. Balancei a cabeça num sinal mudo de concordância. As coisas estavam a mudar, disse uma voz dentro de mim. Não podíamos ficar ali para sempre.

— Vai correr tudo bem, kochana — sossegou-me o meu pai. Como é que ele podia dizer semelhante coisa? Mas a minha mãe deitou a cabeça no seu ombro, parecendo confiar nele como sempre fazia. Eu também queria acreditar. — Vou pensar em alguma coisa. Pelo menos — acrescentou o meu pai enquanto nos aconchegávamos… — ainda estamos todos juntos. — As palavras ecoaram pela sala, num misto de promessa e prece em partes iguais.

A mulher da estrela azul

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