Читать книгу A mulher da estrela azul - Pam Jenoff - Страница 9
3 Sadie
ОглавлениеMarço 1943
Fui acordada por um som alto de alguma coisa a raspar lá em baixo.
Não era a primeira vez que os barulhos do gueto à noite me incomodavam. As paredes do nosso apartamento, construídas à pressa para dividir as habitações originais em casas mais pequenas, eram finas como papel e os sons abafados do quotidiano trespassavam-nas com facilidade. No interior do nosso apartamento, os sons noturnos também eram constantes: a respiração pesada e o ressonar do meu pai; os grunhidos discretos da minha mãe enquanto tentava encontrar uma posição confortável para descansar a sua nova barriga inchada. Ouvia frequentemente os meus pais a bichanarem no nosso espaço diminuto, quando julgavam que eu já tinha adormecido.
Não que eles ainda tentassem esconder tantas coisas de mim. Desde que quase fui apanhada e levada na aktion, tornou-se praticamente impossível ignorar o horror da nossa cada vez mais grave situação. Depois de um inverno penoso, sem aquecimento e com pouca comida, a doença e a morte pairavam por todo o lado. Pessoas novas e velhas morreram de fome e doença ou foram baleadas por não obedecerem às ordens da polícia do gueto com rapidez suficiente ou por alguma outra infração, enquanto se alinhavam para irem para o trabalho cada manhã.
Nunca falámos do dia em que quase fui levada. Mas as coisas mudaram depois disso. Para começar, eu agora tinha um emprego, trabalhava com a minha mãe numa fábrica de sapatos. O meu pai tinha usado todas as suas influências para nos manter juntas e garantir que não fôssemos designadas para trabalhos pesados. Ainda assim, as minhas mãos ficaram calejadas e a sangrar por manusear o couro áspero doze horas por dia e os meus ossos doíam-me como os de uma velhota por estar continuamente curvada sobre o trabalho repetitivo.
Também havia uma coisa diferente na minha mãe — estava grávida com quase quarenta anos. Sempre soubera que os meus pais queriam desesperadamente outro filho. De forma inesperada, no pior momento, as suas preces tinham sido atendidas.
— Fim do verão — disse o meu pai, referindo-se à data prevista de nascimento do bebé. Já se notava, a barriga arredondada da minha mãe sobressaía do seu corpo magro.
Eu bem queria estar tão feliz quanto os meus pais por causa do bebé. Em tempos idos, tinha sonhado com um irmão mais novo, alguém mais próximo da minha idade. Mas agora tinha dezanove anos e poderia estar a formar a minha própria família. Um bebé parecia tão inútil, outra boca para alimentar na pior altura. Há tanto tempo que éramos apenas os três. No entanto, o bebé estava a caminho, quer me agradasse quer não. Não sabia bem se me agradava.
O barulho de raspagem voltou a elevar-se, como se alguém estivesse a cavar o cimento. A canalização antiga deve estar novamente a precisar de uma reparação, pensei. Talvez alguém estivesse por fim a arranjar a única casa de banho do rés-do-chão, que se alagava constantemente. Mas parecia estranho que estivessem a repará-la a meio da noite.
Sentei-me, irritada com a intromissão. Tinha tido um sono agitado. Não nos era permitido manter as janelas abertas e, mesmo em março, o quarto estava abafado, o ar estagnado e fedorento. Procurei os meus pais e fiquei surpreendida ao descobrir que não estavam. Às vezes, depois de eu ir para a cama, o meu pai desafiava as normas do gueto e ia sentar-se no degrau da frente a fumar com alguns dos outros homens que viviam no andar de baixo para escapar do confinamento do nosso quarto. Mas ele já devia estar de volta, e a minha mãe raramente saía, exceto para o trabalho. Havia algo errado.
Uns gritos irromperam na rua, alemães a gritar ordens. Fiquei tensa. Passara um ano desde o dia em que me tinha escondido no baú e, embora tivéssemos ouvido falar de aktions em grande escala noutras partes do gueto («liquidações», como o meu pai lhes chamara uma vez), os alemães não tinham entrado no nosso prédio desde então. Mas o terror nunca mais me abandonara e um instinto dizia-me, com certeza, que eles estavam de volta.
Levantei-me, vesti o roupão e calcei os chinelos, e corri para fora do apartamento para ir à procura dos meus pais. Sem saber para onde ir, comecei a descer. O corredor estava escuro, exceto pela luz fraca que vinha da casa de banho, para onde me dirigi. Quando transpus a porta, pestanejei, não só pela claridade inesperada, mas também de surpresa. A sanita tinha sido completamente retirada da sua base e empurrada para o lado, revelando um buraco irregular no chão. Eu não sabia que se podia desviar. O meu pai estava de joelhos no chão, a arranhar o buraco, literalmente a lascar os rebordos de cimento e a alargá-lo com as mãos.
— Pai?
Ele não ergueu os olhos.
— Veste-te depressa! — ordenou ele com uma rispidez inusitada na sua pessoa.
Ponderei fazer outra das dezenas de perguntas que me rodopiavam no cérebro. Mas fui criada como filha única entre adultos e era sensata o suficiente para saber quando me devia simplesmente calar e fazer o que me mandavam. Subi ao nosso quarto e abri o armário de madeira bolorenta que continha as nossas roupas. Então hesitei. Não fazia ideia do que vestir, mas não sabia onde estava a minha mãe e não ousei incomodar o meu pai novamente para lho perguntar. De qualquer modo, tínhamos chegado ao gueto com apenas algumas malas para os três, não havia propriamente muito por onde escolher. Tirei uma saia e uma blusa do cabide e comecei a vesti-las.
A minha mãe apareceu à porta e abanou a cabeça.
— Uma coisa mais quente — instruiu.
— Mas, mãe, não está assim tanto frio. — Ela não respondeu. Em vez disso, puxou a grossa camisola azul que a minha avó me tinha tricotado no inverno passado e o meu único par de calças de lã. Estava surpreendida; embora eu preferisse calças a saias, a minha mãe achava-as pouco femininas e antes da guerra costumava deixar-me usá-las só ao fim de semana quando não íamos a lugar nenhum. Quando acabei de me vestir, apontou para os meus pés.
— Botas — disse ela com firmeza.
As minhas botas eram de há dois invernos e muito apertadas.
— Ficam-me pequenas. — Tínhamos planeado comprar um par novo no outono passado, mas nessa altura tinham sido impostas restrições para os judeus entrarem nas lojas.
A minha mãe começou a dizer alguma coisa e tinha certeza de que ela me diria para usá-las mesmo assim. Então remexeu na última gaveta do armário com esforço e tirou as suas próprias botas.
— Mas o que é que tu vais calçar?
— Vá, calça-as já. — Ouvindo o seu tom firme, obedeci sem fazer mais perguntas. Os pés da minha mãe eram parecidos com os de um pássaro, estreitos e pequenos, e as botas eram apenas um número acima das minhas. Percebi então que, apesar de me ter mandado vestir roupa para o frio, a minha mãe continuava de saia, até porque ela não tinha calças, e mesmo que tivesse, não lhe serviriam na barriga, cada dia mais arredondada.
Quando a minha mãe acabou de enfiar alguns pertences num saco, olhei pela janela para a rua lá em baixo. À luz fraca da madrugada, vi homens fardados, não apenas a polícia, mas também as SS, a montar mesas. Ambas as extremidades da rua estavam bloqueadas. Os judeus estavam a ser forçados a reunir-se na Plac Zgody como faziam todas as manhãs. Só que não havia nenhuma ordem de chamada como quando fazíamos fila para ir trabalhar nas fábricas. A polícia estava a tirar as pessoas dos prédios e a tentar encurralar a multidão em filas com cassetetes e chicotes, conduzindo-as para uma dúzia de camiões parados numa esquina. Parecia que estavam a levar toda a gente do gueto. Deixei as cortinas cair com ansiedade.
Uma rajada de tiros matraqueou muito perto do nosso prédio, tão perto como nunca tinha ouvido. A minha mãe puxou-me para longe da janela e deitou-me ao chão, não sabia se para evitar que me vissem ou que fosse atingida.
Quando o tiroteio cessou por vários segundos, ela levantou-se e pôs-me de pé, então levou-me para longe da janela e conduziu-me até ao meu casaco.
— Vem agora! — Encaminhou-se para a porta, carregando uma pequena bolsa.
Olhei por cima do ombro. Por muito tempo, tinha odiado viver naquele espaço imundo e acanhado. Mas o apartamento que antes me parecera tão sombrio era agora um santuário, o único lugar seguro que conhecia. Teria dado qualquer coisa para ali ficar.
Pensei em recusar. Deixar o nosso apartamento agora com tantos polícias na rua parecia estúpido e inseguro. Então vi a expressão no rosto da minha mãe, não apenas zangada, mas com medo. Não se tratava de um passeio para pegar ou largar. Não havia escolha.
Segui a minha mãe escadas abaixo, ainda sem compreender. Achei que ia ter com os outros lá para fora para evitar chamar a atenção ou que os alemães viessem e nos mandassem sair. Quando chegámos ao rés-do-chão, dirigi-me para a porta da frente. Mas a minha mãe virou-me pelos ombros, empurrando-me para o fundo do corredor.
— Vem — disse a minha mãe.
— Para onde? — perguntei. Ela não respondeu, mas levou-me de volta para a casa de banho, como se me pedisse para usá-la uma última vez antes de uma longa viagem.
Quando nos aproximámos da casa de banho de novo, ouvi o meu pai a discutir com um homem cuja voz não reconheci.
— As coisas não estão prontas — disse o meu pai.
— Temos de ir já — insistiu o estranho.
Ir a qualquer lugar seria completamente impossível, pensei eu, lembrando-me do bloqueio na rua. Entrei na casa de banho. A sanita ainda estava arredada para o lado, revelando um buraco no chão. Fiquei surpreendida ao ver a cabeça de um homem assomada através dele. Parecia desmembrado, como uma excentricidade num espetáculo de horrores ou no Carnaval. Tinha um rosto largo, bochechas angelicais ásperas e em carne viva do trabalho ao ar livre no frio inverno polaco. Ao ver-me, sorriu.
— Dzień dobry — disse ele educadamente, cumprimentando-me como se tudo aquilo fosse perfeitamente normal. Então olhou para o meu pai e a sua expressão ficou sombria de novo. — Tem de vir agora.
— Mas para onde? — saiu-me sem pensar. As ruas estavam apinhadas de oficiais das SS e da Gestapo, para além de agentes da polícia do gueto judeu que, valha-nos Deus, eram quase tão maus como os outros. Olhei para o buraco no chão, e compreendi…
— De certeza que não pretende dizer…
Virei-me para a minha mãe, à espera que ela refilasse. A minha elegante e refinada mãe não se iria rebaixar a enfiar-se por um buraco debaixo da retrete. Mas o seu rosto estava pétreo e decidido, disposta a fazer o que o meu pai lhe pedisse.
Contudo, eu não estava pronta. Dei um passo atrás.
— E a babcia? — perguntei. A minha avó, que estava numa casa de repouso do outro lado da cidade, tendo de alguma forma escapado da deportação para o gueto.
A minha mãe hesitou, depois abanou a cabeça.
— Não há tempo. A casa de repouso não é judia — acrescentou ela —, ela vai ficar bem.
Pela janela sobre o lavatório, vi uma multidão de pessoas a serem conduzidas dos prédios para camiões. Avistei a minha amiga Stefania no meio da multidão. Fiquei surpreendida ao vê-la tão longe do seu próprio apartamento, do outro lado do gueto. Também tinha presumido que, por o seu pai ser um membro da polícia do gueto, ela poderia ser de alguma forma poupada, estar mais segura. Mas ali estava ela a ser levada, tal como todos os outros. Quase desejei poder ir com ela. Mas o seu rosto estava pálido de medo. Vem connosco, queria gritar. Assisti, impotente, enquanto era empurrada para a frente e desaparecia entre a multidão.
A minha mãe passou por mim.
— Eu vou primeiro.
Ao ver a sua barriga, o homem no buraco mostrou surpresa.
— Eu não sabia… — murmurou. O rosto do homem franziu-se de consternação. Via-o claramente a calcular as dificuldades acrescidas que um parto e um recém-nascido trariam. Por um segundo, perguntei-me se ele se recusaria a levar a minha mãe. Contive a respiração, esperando que ele dissesse que não funcionaria e que teríamos de encontrar outro caminho.
Mas o homem desapareceu buraco abaixo para abrir caminho e a minha mãe deu um passo em frente. Entregou o saco ao meu pai e sentou-se no chão com esforço, enfiando as pernas pelo buraco. Noutras circunstâncias, ter-se-ia por ali esgueirado com imensa facilidade. O meu pai chamava-lhe Passarinho, e a alcunha era adequada, pois ela era magra e parecia uma menina, mesmo estando já perto dos quarenta. Porém, agora era corpulenta, ao carregar a barriga arredondada no seu corpo esguio como se estivesse a segurar um melão. De forma embaraçosa, a sua saia foi puxada para baixo, revelando uma tira de barriga branca. Achei, como tantas outras vezes, que ela era demasiado velha para ter outro filho. A minha mãe deu um pequeno grito quando o meu pai a empurrou pelo buraco e desapareceu na escuridão.
— É a tua vez — disse o meu pai. Olhei em volta, a tentar ganhar tempo. Qualquer coisa para evitar enfiar-me no cano de esgoto. Mas os alemães já estavam à porta do prédio, aos murros fortes. Arrombariam a porta em pouco tempo e aí seria tarde demais. — Sadie, rápido! — disse ele, com a voz suplicante. O que quer que me estivesse a pedir para fazer era para salvar as nossas vidas.
Sentei-me no chão como a minha mãe tinha feito e olhei para o buraco, escuro e sinistro. Um fedor chegou-me às narinas e engasguei-me. Fui assolada por uma rebeldia e uma teimosia que eclipsaram a minha obediência habitual.
— Não sou capaz. — O buraco era escuro e aterrador, ao fundo não se via nada. Foi como daquela vez em que tentei pular de um ramo alto de uma árvore para um lago, só que mil vezes pior. Eu não era capaz de fazer aquilo.
— Tens de ser. — O meu pai não esperou por mais argumentos, e empurrou-me com força. O volume da minha roupa fez com que ficasse entalada a meio do caminho e ele empurrou-me outra vez, com mais força. Os rebordos imundos do cimento rasgaram-me as bochechas, cortando-as, e então dei por mim a cair na escuridão.
Aterrei com força de joelhos. Água fria e fétida salpicou à minha volta, encharcando as minhas meias. Evitei cair ainda mais agarrando-me a uma parede viscosa. Enquanto me levantava, tentei não pensar em que é que estava a tocar.
O meu pai desceu pelo buraco e aterrou ao meu lado. Lá em cima, alguém tapou o buraco no chão. Eu não tinha visto ninguém atrás de nós e perguntei-me quem seria, porventura um vizinho a quem o meu pai pagou ou talvez alguém a fazer uma boa ação ou receoso de se enfiar a si próprio no esgoto. O nosso último raio de luz foi eclipsado. Estávamos presos na escuridão total do esgoto.
E não estávamos sozinhos. Na escuridão, conseguia ouvir pessoas a mexer-se à nossa volta, embora fosse incapaz de dizer quem ou quantas eram. Admirei-me ao ver que havia mais gente. Também teriam vindo pelo cano da casa de banho abaixo? Pestanejei, tentando em vão habituar os olhos ao escuro.
— O que é que está a acontecer? — perguntou uma voz de mulher em iídiche. Ninguém respondeu.
Respirei e comecei a engasgar-me. O cheiro estava em todo o lado. Era o fedor da água repleta de fezes e urina, bem como de lixo e putrefação, que espessava o ar.
— Respira pela boca — a minha mãe sugeriu baixinho. Mas era pior, como se estivesse a comer a imundície. — Respirações superficiais. — Esta última sugestão também não ajudou muito. As águas negras do esgoto chegavam-me à altura do tornozelo, encharcando as minhas botas e meias, e a humidade gelada contra a pele fazia-me estremecer.
O estranho acendeu uma lâmpada de carboneto e a luz lambeu as paredes arredondadas, iluminando meia dúzia de rostos estranhos e assustados. Os mais próximos eram dois homens, um da idade do meu pai e outro que parecia seu filho, talvez com uns vinte anos. Vinham vestidos com os quipás e as roupas pretas próprias dos judeus religiosos. Antes da guerra e de estarmos todos amalgamados, o meu pai ter-lhes-ia chamado Yids[1]. Não o dizia de forma grosseira, mas sim como uma espécie de diminutivo para se referir aos judeus religiosos, que sempre me pareceram estranhíssimos com os seus costumes próprios que cumpriam com um rigor extremo. De certa forma, sentia que tinha mais em comum com os polacos gentios do que com aqueles outros judeus.
Atrás deles estava outra família, um casal jovem com um menino de dois ou três anos a dormir ao colo do pai, todos só de pijama por baixo dos casacos. Também havia uma senhora idosa e corcunda, mas como se mantinha à distância, não sabia dizer a qual das famílias pertencia. Talvez a nenhum das duas. Não vi mais nenhuma rapariga mais ou menos da minha idade.
Quando os meus olhos se adaptaram, olhei em volta. Tinha imaginado o esgoto, se é que alguma vez pensei expressamente nisso, como canos que corriam no subsolo. Mas estávamos numa passagem imensa e cavernosa com um teto abobadado de pelo menos seis metros de largura, um túnel pelo qual um comboio de carga poderia passar. O meio do túnel era preenchido por uma corrente rápida de águas negras, imensa e profunda o suficiente para ser um rio. Nunca imaginei que uma massa de água tão vasta corresse frenética sob os nossos pés. O som que ecoava nas paredes altas era quase ensurdecedor.
Parámos num rebordo fino de cimento de não mais de sessenta centímetros de largura que corria ao longo de uma das margens do rio e vi uma segunda saliência paralela no outro lado. A corrente era forte e parecia puxar-me enquanto me agarrava ao caminho estreito. Certa vez, li num livro sobre mitologia grega sobre Hades, senhor dos infernos do mundo inferior; parecia que me encontrava num lugar assim, uma espécie de mundo subterrâneo estranho que eu nunca pensara que existisse ou soubera da sua existência. Atordoada, fiquei a olhar para a água, com um medo em crescendo. Eu não sabia nadar. Não importava quantas vezes o meu pai tinha tentado ensinar-me, não suportava enfiar a cabeça debaixo de água, mesmo no lago mais calmo em pleno verão. Nunca sobreviveria se caísse ali.
— Vamos — disse o homem que irrompera pelo chão da nossa casa de banho. Agora que o via de corpo inteiro, reparei que tinha ombros largos e era robusto. Usava um simples chapéu de pano e botas altas. — Não podemos ficar aqui. — A sua voz ecoou muito alta na câmara abobadada.
Ele começou a caminhar ao longo do rebordo, segurando a lâmpada no alto à sua frente. Apesar da sua estrutura quadrada, movia-se facilmente ao longo do caminho estreito com a facilidade de quem trabalhava no esgoto e ali passava os seus dias.
— Pai, quem é ele? — sussurrei.
— Um trabalhador do esgoto — respondeu o meu pai. Seguimos o trabalhador numa fila única, usando a parede viscosa e arredondada para nos equilibrarmos. O túnel estendia-se infinitamente na escuridão à nossa frente. Perguntei-me qual o motivo que ele teria para nos ajudar, para onde é que estávamos a ir, como é que ele nos ia tirar daquele lugar miserável. Exceto pelo barulho da água, o ar à nossa volta estava silencioso e parado. Os ruídos horríveis dos alemães lá em cima foram abafados, praticamente perderam-se.
Chegámos a um lugar onde a parede do túnel parecia curvar-se para fora da água, formando uma pequena câmara. O trabalhador do esgoto conduziu-nos para dentro desse espaço maior.
— Descansem, antes de continuarmos.
Olhei com um ar duvidoso para as pequenas pedras pretas que cobriam o chão, perguntando-me onde é que podíamos descansar. Tive a sensação de que alguma coisa se mexia em cima delas. Mais perto, vi que estavam cobertas por milhares de minúsculos vermes amarelos. Abafei um grito.
O meu pai, aparentemente sem se importar, afundou-se nas pedras. As suas costas erguiam-se com grandes respirações de exaustão. Ele olhou para cima por um instante e eu vi algo, preocupação ou medo talvez, perpassar o seu rosto de uma forma que nunca tinha visto. Então, percebendo a minha presença, estendeu os braços.
— Anda cá. — Deitei-me no seu colo, permitindo que ele me protegesse do chão imundo e infestado de vermes.
— Venho buscar-vos quando for seguro — disse o trabalhador. Seguro para quê?, quis perguntar. Mas sabia que não devia interrogar a pessoa que estava a tentar salvar-nos. Ele saiu da câmara, levando a lâmpada consigo, mergulhando-nos na escuridão. Os outros acomodaram-se no chão. Ninguém falou. Percebi que ainda estávamos no gueto, ao ouvir os alemães mais uma vez. As detenções pareciam ter terminado, mas eles ainda andavam a vasculhar os prédios, à procura de mais alguém que pudesse estar escondido e remexiam nos parcos bens que as pessoas tinham deixado para trás, quais abutres. Imaginei-os a passarem pelo nosso diminuto apartamento. Já não tínhamos quase nada; tudo tinha sido vendido ou deixado para trás quando nos mudámos para o gueto. Mesmo assim, a ideia de remexerem nas nossas coisas e de já não termos direito a nada nosso, fazia-me sentir violada, menos humana.
Todos os meus medos e tristezas afloraram.
— Pai, não sei se consigo fazer isto — confessei-lhe num sussurro.
O meu pai passou os braços à minha volta e a sensação era tão cálida e reconfortante que poderíamos estar em casa. Enterrei a cabeça no seu peito, confortando-me com o cheiro familiar a menta e tabaco, e tentando ignorar o fedor do esgoto que se misturava com ele. A minha mãe acomodou-se ao seu lado e apoiou a cabeça no seu ombro. As minhas pálpebras ficaram pesadas.
Algum tempo depois, o meu pai mexeu-se, acordando-me do sono. Abri os olhos e olhei na penumbra para as outras famílias, que estavam espalhadas à nossa volta a dormir. Contudo, o homem mais novo da família religiosa estava acordado. Sob o chapéu preto, tinha feições gentis e uma barba curta e aparada. Os seus olhos castanhos brilharam na escuridão. Afastei-me com cuidado do meu pai e rastejei cautelosamente pelo chão escorregadio na sua direção.
— Que coisa mais esquisita para se fazer, dormir entre estranhos — disse eu. — Quero dizer, quem podia imaginar acabar num sítio assim? — Ele não respondeu, mas olhou-me cauteloso. — A propósito, chamo-me Sadie.
— Saul — respondeu ele com secura. Esperei que dissesse mais alguma coisa. Quando não o fez, recuei pelo chão em direção aos meus pais. O Saul era o único em todo o grupo quase da minha idade, mas não parecia ter interesse em ser meu amigo.
Pouco depois, o trabalhador voltou, iluminando novamente a câmara com a sua lâmpada e acordando os restantes. Gesticulou silenciosamente indicando que tínhamos de continuar. Então pusemo-nos de pé e formámos uma fila única para prosseguir o caminho ao longo do longo rio.
Poucos minutos depois, chegámos a uma encruzilhada. O trabalhador conduziu-nos para fora do canal principal, virando à direita num túnel mais estreito que nos levou para mais longe do rio de esgoto violento. Esse caminho acabava numa parede de cimento. Um beco sem saída. Ter-nos-ia conduzido de propósito para algum tipo de armadilha? Já tinha ouvido histórias de gentios que traíam os seus vizinhos judeus e os entregavam à polícia, mas aquela parecia uma maneira estranha de cometer uma traição.
O trabalhador ajoelhou-se com a lamparina e vi que mais abaixo na parede havia um pequeno círculo de metal, uma espécie de cobertura ou tampa. Ele abriu-a para revelar um tubo horizontal, então deu um passo para trás. A entrada do cano tinha apenas uns cinquenta centímetros de diâmetro. Decerto ele não queria que passássemos por ali. Mas ele ficou parado, esperando com expetativa.
— É a única maneira — disse ele, com um laivo de desculpa na voz que parecia dirigir-se principalmente à minha mãe. — A senhora vai ter de ir de barriga para baixo. Se enfiar a cabeça e os ombros, tudo o resto vai a seguir. — Ele entregou algo à minha mãe, depois entrou no cano e parecia impossível que o seu corpo robusto coubesse. No entanto, ela já tinha feito aquilo antes. Deslizou para o interior e, pouco depois, desapareceu.
A família religiosa foi a primeira e ouvi-os a gemer devido ao esforço. Então, foi a vez de a família com a criança pequena entrar no túnel. Só restávamos nós, eu, a minha mãe e o meu pai. Quando chegou a minha vez, ajoelhei-me em frente do cano, o que me lembrou o espaço empoeirado do sótão onde a Stefania e eu brincávamos no nosso antigo apartamento antes da guerra. Eu era capaz de passar de barriga para baixo. Mas e a minha mãe?
— És a próxima — disse a minha mãe. Hesitei, duvidando de que ela fosse capaz de me seguir. — Eu vou logo atrás de ti — prometeu a minha mãe, e eu sabia que não tinha escolha a não ser acreditar.
O meu pai deu-me uma cotovelada e comecei a trepar, tentando ignorar o fio de água húmida que escorria desagradavelmente pela parte da frente da minha roupa. O cano cercou-me, por todos os lados, encerrando-me num caixão aquoso. Parei, de súbito paralisada de medo, incapaz de me mexer ou respirar.
— Vem, vem — ouvi o estranho chamar do outro lado, e eu sabia que precisava de continuar ou morreria ali. O tubo tinha uns dez metros de comprimento e, quando cheguei ao outro lado e subi para outra saliência, virei-me à escuta. O mais certo era o meu pai ser grande demais para conseguir passar, e a minha mãe também, tendo em conta o seu estado atual. Morri de medo perante a ideia de poder ser deixada sozinho naquele lado, sem eles.
Passaram cinco minutos e mais ninguém apareceu pela abertura. O trabalhador do esgoto apanhou uma corda do chão e passou-a pelo cano, rastejando até ao meio para a fazer passar. Ele começou a puxá-la suavemente, parando de poucos em poucos segundos. Através do tubo, ouvia os gemidos suaves da minha mãe. Quando ela finalmente apareceu pelo cano com a corda amarrada à sua volta, estava coberta por uma espécie de graxa que o trabalhador lhe deve ter dado para a ajudar a deslizar. Decididamente eficaz, mas humilhante. Com o vestido enegrecido e o cabelo desgrenhado, distava muito do seu aspeto normalmente elegante e manteve os olhos semicerrados enquanto o estranho a ajudava a sair. O meu pai seguiu-a, empurrando com força de vontade. Nunca fiquei tão feliz por vê-lo em toda a minha vida.
Mas o meu alívio durou pouco. Precisamente no lugar onde desaguámos, havia uma grade de esgoto logo acima das nossas cabeças. Ainda estávamos debaixo do gueto, eu diria, já que ouvia vozes alemãs iguais às que nos acordaram poucas horas antes, a gritarem ordens. O feixe de luz de uma lanterna lambeu o bordo da tampa do esgoto e espalhou-se.
— Precisamos de continuar — sussurrou o trabalhador.
Seguimo-lo do túnel menor de onde tínhamos saído até ao túnel principal e às águas impetuosas do rio de esgoto. O rebordo de cimento desapareceu e fomos forçados a caminhar ao longo da margem pedregosa do esgoto, com os pés vários centímetros mergulhados na água. As pedras eram escorregadias e inclinadas e eu temia cair no rio a cada passo. Algo afiado debaixo de água cortou a minha bota e atingiu-me a pele. Agarrei-me ao pé, lutando contra a vontade de gritar. Queria parar e examinar o ferimento, mas o trabalhador do esgoto andava cada vez mais rápido, e senti que, se não acompanhássemos, seríamos deixados para trás para sempre.
Chegámos a um cruzamento onde o rio de esgoto que seguíamos era intercetado por outra enxurrada de água, igualmente volumosa e violenta. O barulho da água do esgoto cresceu até formar um rugido.
— Cuidado — preveniu o trabalhador. — Temos de atravessar por aqui. — Ele gesticulou indicando uma série de tábuas que tinham sido unidas frouxamente até formarem uma ponte sobre a água corrente.
Fiquei sem fôlego tal era o medo da ideia de atravessar o rio. Atrás de mim, o meu pai pousou a mão no meu ombro.
— Tem calma, Sadie. Lembras-te de quando entrámos no lago Kryspinów? As pedrinhas que eram como degraus? É a mesma coisa. — Gostava de destacar que as águas do Kryspinów, onde costumávamos fazer piqueniques no verão, eram calmas e mansas e cheias de pequenos girinos e peixes, não pejadas da imundície da cidade inteira.
O meu pai empurrou-me para a frente e não tive remédio a não ser seguir a minha mãe, que, apesar da sua barriga protuberante, começou a pisar as tábuas com a sua graça costumeira, como se estivesse a jogar à macaca. Comecei a avançar. O meu pé escorregou de uma das tábuas e o meu pai estendeu a mão para me segurar.
Virei-me para trás.
— Ó pai, isto é uma loucura! — exclamei. — Tem de haver outra maneira…
— Minha querida, o caminho é este. — A sua voz transpirava calma, a sua expressão segurança. O meu pai, que sempre me mantivera a salvo, acreditava que eu era capaz de fazer aquilo.
Respirei fundo, virei-me e comecei a avançar mais uma vez. Passei uma tábua, depois outra. Agora, estava no meio do rio, longe de ambas as margens. Não havia como voltar atrás. Dei outro passo. A prancha sob o meu pé cedeu e começou a escorregar para o lado.
— Socorro! — gritei, a minha voz a ecoar pelo túnel.
O meu pai avançou para me segurar e largou o pequeno saco que a minha mãe trouxera, e que ele carregava por ela. O saco, contendo o pouco que nos restava no mundo, parecia navegar em câmara lenta pelo ar, pairando sobre a água. Antes de cair, o meu pai tentou apanhá-lo. Agarrou no saco e atirou-mo, então tentou endireitar-se. Mas perdeu o equilíbrio.
— Pai! — berrei quando ele caiu na água escura do esgoto com um forte chapão. O trabalhador virou-se e correu rapidamente para as tábuas, puxando-me para um lugar seguro. Então, tentou alcançar o meu pai. Mas quando a sua mão se aproximou da mão do meu pai, a corrente forte puxou-o para longe e foi sugado para baixo. Na outra margem, a minha mãe gritou.
O meu pai reapareceu à superfície. Emergiu qual Fénix, com o tronco todo e a maior parte das pernas elevadas sobre a água, desafiando-a. A esperança subiu pela minha garganta. Ele ia conseguir. Então, a água pareceu agarrá-lo, uma mão gigante que se esticava para puxá-lo para baixo. Isso arrastou-o, com a cabeça e tudo, numa investida única sob a escuridão gelada. Contive a respiração, esperando que ele reaparecesse, para lutar e emergir mais uma vez. Mas a superfície do rio permaneceu intacta. As bolhas de ar que ele tinha deixado atrás diluíram-se na corrente e ele desapareceu.
[1] Calão ofensivo que significa judeu. (N.T.)