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Isabel Allende deixou-nos, para a posteridade, uma entrevista realizada na primavera de 2020, no início da voragem pandémica. Nela, reconhecia que vimos para o mundo para perder tudo e que, quanto mais se vivia, mais se perdia. Perdia-se o medo de ver morrer os pais e as pessoas queridas. Também garantia que era um erro viver com receio de algo que ainda não acontecera e que o que devíamos fazer era gozar do que temos e viver o presente.

A escritora chilena afirmou que, quando a sua filha Paula faleceu, há vinte e sete anos, perdeu o medo da morte para sempre. Ao vê-la a morrer nos seus braços, apercebeu-se de que era como o nascimento, uma transição.

Algo tão óbvio como difícil de aceitar. Diz a letra do famoso bolero que vinte anos não são nada; no entanto, dois mil e vinte anos — depois de ver como foi 2020 — sempre é qualquer coisa.

O ano de 2020 foi um ano de perdas. Sem prévio aviso, perdemos contacto físico, sofremos perdas económicas, perdemos liberdades de algum modo, perdemos empregos, sem nos aperceber, perdemos direitos, perdemos tempo, perdemos vidas humanas e quase perdemos as estribeiras. Tudo menos o medo. Este não só não se perdeu, como parece ter-se transformado numa epidemia paralela com uma curva em pleno crescimento exponencial, para a qual não existe uma vacina antimedo nem se espera que exista.

Em qualquer meio de comunicação social ou reunião, ouvimos como se catalogou o ano de 2020, como um «ano bisagra». Um ano de mudanças profundas nas nossas vidas. No meu caso, se tenho de lhe chamar ano bisagra, a bisagra é do tamanho das que articulam a porta da catedral de Santiago de Compostela. Faz-se referência constante à importância deste «ponto de inflexão» nas nossas vidas. No entanto, não paramos para pensar na utilidade nula de um ponto de inflexão se não vier acompanhado de um ponto de reflexão. De uma pausa, de uma análise e de uma introspeção.

Ao princípio, não parava de ouvir «sairemos melhores desta». A pandemia mostrou o desejo latente generalizado de modificar um modelo socioeconómico injusto e insustentável, que mostrou as poucas-vergonhas com as primeiras mudanças. Se sair melhores desta como sociedade significa desenvolver uma maior consciência coletiva e solidariedade com o próximo, por enquanto, estamos atrasados. Uma coisa é o desejo de mudança e, outra, a vontade de mudança. Para que se produza uma mudança, deve existir uma vontade de mudança real. Para além da tentativa de anulação que o sistema convenientemente exerce sobre nós por sistema — apesar da redundância —, o principal impedimento para a mudança individual continua a ser o medo. Vivemos com medo.

Como algumas e alguns saberão, num breve espaço de tempo desse ano maldito, tive de aceitar duas perdas enormes e impossíveis de substituir: A minha mãe e o amor da minha vida, o Antonio. Não sei se por azar do destino ou pela graça de Deus — pois os dados já estão lançados — tive de enfrentar o medo mais ancestral do ser humano: O medo da morte.

No comovente romance Paula, onde Isabel Allende relata a sua vivência ao acompanhar a filha na sua doença até à morte nos braços dela, escreveu que o que não deixava escrito para a eternidade no papel se diluía nas suas lembranças. Partilho com ela uma desconfiança idêntica na memória. Bastaram apenas mais de quarenta anos de constantes desorientações. Portanto, devido ao desejo, ou melhor dizendo, à necessidade de salvaguardar este fragmento da minha vida, decidi aplicar a mesma terapia e protegê-lo do passar do tempo no papel. Para sempre, para mim e para quem o quiser.

Amor, morte e humor. É disso que este livro trata. Três palavras que escapam das cercas de arame farpado que os seres humanos se esforçam para construir à volta delas. Três palavras destinadas a coexistir. Não morremos de amor, como costuma dizer-se, morremos se não amarmos e, para podermos morrer sem medo, é necessário amar a vida.

Também ninguém pode negar que a arma de sedução maciça mais potente é a comédia. Nada gera um vínculo tão forte entre duas pessoas como rir-se juntas de alguma coisa, por muito estúpida que seja. Da mesma forma que não se faz humor sem amar o ser humano, sem querer fazer as outras pessoas felizes, nem é possível fazê-lo com medo. Não podemos rir-nos com medo. A manifestação do humor é uma consequência direta da inteligência. Parte de uma ideia ou ocorrência do cérebro que causa prazer ao mesmo. Um sofisticado mecanismo evolutivo que o homem desenvolveu para esquivar os medos instintivos. Quando conseguimos rir-nos racionalmente dos nossos medos, estes desaparecem. Portanto, amor e humor são os dois únicos mecanismos que conheço para perder o medo da morte e, sem a morte, quem sabe se tudo o resto valeria a pena. Para crescer, precisamos de conhecer, investigar, aprofundar e falar sem tabus e com mais frequência sobre estas três palavras na nossa vida diária.

Nas páginas seguintes que, no momento em que escrevi isto não sei quantas serão no fim, não esperem encontrar, queridas e queridos leitores, uma tragédia romântica mórbida de sofrimento e dor. Se era o desejado, parem imediatamente. Shakespeare está ao fundo do terceiro corredor, na segunda prateleira do lado direito. Aqui, encontrarão uma história de amor contada com humor, sem papas na língua, sem disfarces e, o mais importante, sem medo. Uma viagem em que aprendi mais sobre a vida, o amor, o acompanhamento de um paciente moribundo, a morte e sobre mim mesma do que alguma vez imaginei. Espero que desfrutem e que, chegado o caso, vos sirva de ajuda.

O humor da minha vida

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