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Tinha catorze anos, a idade em que as meninas contemplam como acontecem uma série de mudanças nos nossos corpos pueris para nos transformarmos nas mulheres bonitas, finas, corretas e complacentes que seremos no dia de amanhã. A idade em que só pensamos em encontrar um príncipe encantado que nos faça felizes e nos complete, porque as mulheres vêm de fábrica como um puzzle da feira a que falta uma peça quando o compramos. Ou era o que, para meu espanto, me inculcavam que devíamos ser. Digo para meu espanto porque era totalmente o contrário do estereótipo antiquado de adolescente. Era uma criança em processo de colonização por uma legião de hormonas, sem dó nem piedade, que gostava de se rir à gargalhada impetuosa e ruidosa, com palmas incluídas, e de jogar às escondidas, ao mata ou a qualquer outro jogo que implicasse uma certa probabilidade de acabar lesionada ou com os óculos partidos. Era o que, na minha Cádis natal, se conhece como um “molho de nervos” ou “um cu inquieto”: Fugi de casa com pão e mortadela e quase matei a minha mãe de susto, peguei fogo à minha casa a brincar com uma caixa de fósforos por baixo da cama. Coisas de crianças.

A respeito da minha aparência física, basta comentar que, apesar dos óculos redondos e enormes que repousavam no meu nariz pronunciado, me chamavam a “Larga”[1]. Devia ser realmente alta para que essa alcunha prevalecesse sobre as outras peculiaridades aspirantes ao trono.

Eram os anos oitenta. Uma década que se recorda pelos seus avanços e mudanças importantes, tanto sociais como culturais, mas também pela chegada ao país de novas drogas que foram acompanhadas de um aumento no índice da delinquência. O meu irmão mais velho, o Luis, vendo que passava as horas a brincar na rua e pensando na minha propensão para me meter em confusões, tentava proteger-me.

— Paz, tens de te inscrever connosco nos escuteiros ou vais perder-te. Lá, as pessoas são saudáveis, não fumam e não há nada de bom na rua…

O Luis era tão desordeiro como eu, ou pior. Era eu, mas com mais dois anos de experiência. Não obstante, sentia uma certa obrigação de me proteger como irmão mais velho e repetia-se como um mantra budista «tenho de salvar a minha irmã, tenho de salvar a minha irmã…» E como diz um ditado, que se não for budista, está perto: «Não é a força do gotejar da água que fura a pedra, mas sim a persistência incansável desta ação.» Inscrevi-me nos escuteiros só para não ter de o ouvir.

No primeiro dia em que o acompanhei à sede do seu grupo Cruz del Sur, puseram-nos num círculo para começar uma ronda de apresentações ao mais puro estilo dos Alcoólicos Anónimos. Surpreendeu-me ver algumas caras conhecidas que não sabia que estavam lá — como nos Alcoólicos Anónimos — e decidi ficar ao lado de uma amiga da escola. Inspecionei, de soslaio, todas e todos, mas o meu olhar parou nele. Um rapaz moreno com umas calças de ganga justas e uma camisa aos quadrados posta por dentro das calças. «Que bonito. Que alto. Que forte», pensei. Se não era a minha alma gémea, era irmã, porque até se parecia um pouco comigo com os óculos e a cara longa. Mas que bonito. E que alto. E que forte. O “Largo” e a “Larga”[2]. Combinávamos imenso!

— Esse é para mim — disse à minha amiga.

Com o passar dos anos, o Antonio confessou-me, um dia, que se lembrava perfeitamente desse momento porque, ao ver-me, pensou: «Meu Deus! Quem é essa louca?»

Durante os meses de verão, os grupos de escuteiros costumam fazer um acampamento no bosque onde se fazem caminhadas, jogos, oficinas e todo o tipo de atividades coletivas. Numa das noites do meu primeiro acampamento, os monitores programaram um jogo que simulava o programa de televisão da época All you need is love. Nele, uma concorrente com os olhos vendados tinha de fazer várias provas às cegas a cinco candidatos e escolher um no fim. E adivinham quem foi a escolhida como concorrente de todo o acampamento? Melhor dizendo, adivinhem quem azucrinou o monitor até ser escolhida como concorrente de todo o acampamento, por ser chata? E vocês não são capazes de adivinhar quem pressionou insistentemente o monitor até conseguir fazer com que um dos candidatos fosse o Antonio, dizendo:

— Por favor, que seja ele. O resto, tanto faz, mas que seja ele.

Correto. Não é preciso dizer o nome da escolhida infeliz. Enquanto me punham a venda, perguntava ao monitor:

— Que número é? — sussurrava, quase sem mexer os lábios.

— Quem? — perguntou, no mesmo tom.

— O Antonio, quem haveria de ser?

— Ah, o três.

— Muito obrigada, muito obrigada, a sério.

E começou o jogo. Usei os meus dotes interpretativos, fingindo não saber as identidades durante as provas, embora aproveitasse a informação para fazer coincidir os meus gostos com os do número três ou para o apalpar mais do que devia.

— Afinal, que candidato vais escolher, Paz? — perguntou o monitor que servia de apresentador.

— O terceiro!

— Escolheste o Antonio!

— Ena, não estava à espera disso! Que bom!

O prémio que com tanto esforço ganhei era um jantar numa mesinha ligeiramente afastada do resto do grupo, enfeitada com flores silvestres e velas. Claro, para jantar, tínhamos o mesmo menu que os outros: Esparguete com tomate de frasco. Mas sentia-me como a protagonista de A dama e o vagabundo. Estava louca para que fôssemos comendo, sem nos apercebermos, o mesmo esparguete até acabarmos por nos beijar. Mesmo que me enchesse a cara de tomate. Para disfarçar, dizia:

— Olha como é o destino… É claro que o destino nos uniu…

E, de certo modo, quem sabe se não há um pouco de verdade nessa frase. Quem sabe se o destino nos uniu ou se o que chamamos destino é apenas uma expressão da vontade própria que não conseguimos compreender. A manifestação de que desejamos tanto alguma coisa que fazemos a nossa parte para a conseguir de forma inconsciente. Ou consciente, neste caso, pois sou uma trapaceira. Portanto, vários dias depois, procurei-o, ou encurralei-o, como preferirem, e perguntei:

— Olha lá, queres sair comigo?

— Bom… Está bem — respondeu, hesitando uns segundos.

Fez-me a pessoa mais feliz do mundo. De repente, estava a flutuar numa nuvem. Tinha namorado! E que bonito, que alto, que forte! Hoje, ainda lhe agradeço por, nesse momento, me ter escondido o que pensou. Seria também anos mais tarde que me contaria que, ao ouvir a minha pergunta, o seu pensamento foi: «Ufa… Temos de começar por algum lado. Não posso querer começar pela Michelle Pfeiffer.»

Pensando bem, se tivesse de realçar alguma coisa do início da nossa relação, não seria precisamente os passeios pela praia a ver o pôr do sol agarrados. A imagem que me vem à cabeça é a dos dois na marmelada durante horas e horas. No parque, na casa, num autocarro e na rua. Fosse onde fosse. Que dor nas mandíbulas no dia seguinte. Não tínhamos duas bocas, eram duas máquinas de lavar roupa a centrifugar. Não estou a exagerar. Uma vez, estivemos a enrolar-nos com ferocidade na Alameda, em Cádis, um passeio belo com jardins rodeado pelo mar da baía. Como, entre os óculos e o tamanho dos nossos narizes, aquilo se transformava num desporto perigoso com risco de nos causar cortes e feridas, deixámos os dois pares de óculos na balaustrada com vista para o mar. Depois de horas, quando apalpámos a balaustrada tateando, apercebemo-nos de que devíamos tê-los atirado à água com uma cotovelada apaixonada. Entre as minhas vinte dioptrias e as poucas que ele tinha naquela época, conseguem imaginar o tempo que demorámos a chegar a casa a apalpar as calçadas, os lancis, as paredes, as montras e todos os obstáculos que existem numa cidade. Consolávamo-nos pensando que tínhamos curado a miopia de dois peixes.

Crescemos juntos. Descobrimos juntos a sexualidade da forma mais sã que existe. Com muitíssimo amor, carinho e respeito. Aprendemos tudo, de mão dada um com o outro. De mão dada ou com qualquer outra parte do corpo, não sei se me explico bem.

O Antonio começou a estudar Direito alguns anos depois. Disse-me que estudara em Direito Canónico que, há séculos, para unir duas pessoas em matrimónio — de sexo diferente, é claro, não podia ser outra coisa! — só era necessário fazer o casamento aos olhos de Deus. Mais tarde, foi a igreja católica que se encarregou de realizar o censo do número de casamentos e de regularizar o procedimento para controlar as pessoas. Ou, pelo menos, foi o que eu entendi. Entendê-lo quando falava das cadeiras ou de algum problema que lhe rondasse a cabeça relacionado com a sua carreira era tão difícil como decifrar, à primeira, um discurso de Mariano Rajoy. Quando soubemos que havia uma opção de nos casarmos sem necessidade de consentimentos paternos, papéis ou dinheiro, não pensámos duas vezes.

No domingo seguinte de manhã, fomos à missa na igreja de Santo António, em missão secreta especial como dois espiões do KGB, dispostos a casar-nos em segredo. Ajoelhámo-nos nos bancos, demos a mão e, com cuidado para não sermos expulsos da igreja, sussurrámos:

— Antonio, aceitas receber a Mari Paz Padilla Díaz como esposa e prometes ser-lhe fiel na prosperidade e na adversidade, na saúde e na doença e, assim, amá-la e respeitá-la todos os dias da tua vida?

— Sim, quero. E tu, Mari Paz, aceitas receber o Antonio Juan Vidal Agarrado como esposo e prometes ser-lhe fiel na prosperidade e na adversidade, na saúde e na doença e, assim, amá-lo e respeitá-lo todos os dias da tua vida?

— Sim, quero. Já está?

— Acho que sim… Ah, não. Podes beijar a noiva.

E beijámo-nos às escondidas.

[1] Alcunha a “Alta”. (Nota da T.)

[2] Alcunha o “Alto” e a “Alta”. (Nota da T.)

O humor da minha vida

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