Читать книгу O humor da minha vida - Paz Padilla - Страница 13

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As coisas nunca correm como as planeamos. Nem para mal nem para bem. Aquilo não foi uma rapidinha e bola para a frente. Sentíamo-nos em casa, sabem como é difícil encontrar isso? Como custa encontrar uma pessoa da minha idade, solteira como eu e que não tenha alguma tara mental grande? Uma pessoa com conversa, que te divirta, que te faça sentir confortável, calma e que, enquanto fala contigo, só estejas a pensar em arrancar-lhe a roupa como se fosse um presente de Natal embrulhado? Que te faça sentir em casa! Talvez se fores jovem — e, portanto, ingénua e ao mesmo tempo descrente — minimizes a importância da façanha épica que tínhamos acabado de conseguir sem querer.

Não te preocupes, como disse o dramaturgo George Bernard Shaw, «a juventude é uma doença que se cura com os anos». Talvez numa altura em que, quando, provavelmente, tiveres de emigrar para encontrar trabalho, comeces a entender o que significa «sentir-se em casa» e como nos sentimos bem nela. É como diz uma estrofe de Carnaval «como se caga em casa, não se caga em mais lado nenhum».

Começámos a ver-nos cada vez com mais frequência, em Cádis, em Madrid ou onde pudéssemos. Acontecia-nos o que acontece sempre quando se inicia uma relação, isso em que todas e todos estão a pensar… Exato. Não parávamos de falar das experiências vividas durante os vinte anos em que as nossas vidas tinham percorrido caminhos diferentes. Que mentes porcas que vocês têm! De certeza que esperavam que falasse de outra coisa.

Bom, como escrevo um livro e tenho de parecer fina, direi que sim, que é verdade que me sentia prisioneira de uma incessante libidinosidade desmedida. Ora, era como a tocha da chama olímpica. Por causa do fogo e do tamanho. Contribuí mais para o degelo dos polos em alguns meses do que os quatro anos de mandato de Donald Trump.

Como podem verificar, continuo a ser tão refinada como sempre. Não acho que a fama me tenha mudado. Penso que sou como era antes de ser conhecida, igualmente simples, igualmente poupada. Por exemplo, em casa, reutilizo sempre a água usada do meu jacuzzi para regar algum dos buracos do meu campo de golfe privado.

O Antonio continuava a detestar as câmaras que me rodeiam todos os dias, mas encontrar uma Paz tão louca como há vinte anos pesou na balança a favor de uma segunda tentativa de relação com uma artista. Descobriu em primeira mão que, no meu ambiente, nem todos snifavam cocaína como se suspeitava. Refiro-me a que, quando me mudei para Madrid, me interpretou mal quando lhe disse que eu aspirava ao mais alto. Isto sim. Antonio, se eu alguma vez tivesse experimentado cocaína, terias descoberto, garanto-te. Com o nariz que tenho, com uma linha, deixo Wall Street sem cocaína, o que teria causado uma queda da Bolsa mundial.

Semana a semana, foi derrubando aquela pilha de medos que enchiam a sua cabeça em torno da ideia que criara sobre mim. Nesses primeiros meses de nos conhecermos — ou reconhecer-nos — surpreendeu-me saber que viajara pouco. Particularizo, gostava pouco de viajar. Dizia que, simplesmente, não gostava, mas eu sabia que era por medo. Do desconhecido, de não controlar a situação. No entanto, ouvia, com o entusiasmo de uma criança, as minhas histórias de viagens exóticas. Como quando uns piratas nos perseguiram de metralhadora na mão por uma praia de Cabo Verde, sabe-se lá com que intenção. Ou quando, por engano, apareceu um senhor a gritar que a água quente onde estava a tomar banho não era quente porque tinha feito chichi, mas porque se tratava da cratera de um vulcão que cuspia lava, de tempos a tempos, sem avisar. As histórias típicas. Eu percebia tal assombro em cada história que contava que descobrir o mundo com ele se transformou no meu maior desejo. Sem prévio aviso, disse:

— Antonio, não trabalho de tal a tal dia, consegues tirar uns dias livres? Sim? Faz a mala, vou convidar-te para ir às ilhas Maldivas.

Não foi uma ideia surgida do nada. Sofrera uma lavagem cerebral cuidadosa durante anos. Quando uma pessoa entra no submundo do espetáculo, nas entranhas do show business, para além de suportar o peso pesado da fama, deve suportar chatos de diversas índoles. Chatos com a obrigação moral de dizer o que devemos fazer, de comunicar o que é melhor para a nossa carreira artística e a decisão que marcará a nossa vida pessoal in aeternum. Este espécime que habita em qualquer canto do ecossistema artístico não retrocederá no seu empenho de fazer com que sigamos os seus conselhos sábios cada vez que os encontrarmos, como se se tratasse de uma missão divina. Para enumerar exemplos, acabaria a escrever uma saga mais comprida do que a do Harry Potter: Paz Padilla e o que pensam do seu físico, Paz Padilla e devias perder o sotaque andaluz, etc.

Muitos desses conselhos altruístas são fruto de uma tentativa vã de te demonstrar que «estão na moda» para que nos sintamos antiquados por não estar. São agentes comerciais vocacionais. Querem fazer-nos ver que estamos enganados por não ter o iPhone que saiu hoje e que estará ultrapassado antes de acabar esta frase; ou se não usarmos a roupa que foi «o último grito» na passerella di Milano — chateiam-me até ao tutano.

No meu caso, quando, graças ao meu trabalho, dispus de dinheiro para o poder fazer, comecei a percorrer o mundo. Viajar transformou-se no meu vício principal e adorava. Mesmo na época em que se viajava pelo prazer de descobrir uma cultura diferente em vez de para pôr uma fotografia para conseguir likes. Tinha o passaporte com mais tinta do que o corpo de Sergio Ramos. Isso sim, quando regressava do destino escolhido e acabava de fazer o pequeno resumo obrigatório, todas as colegas me diziam o mesmo:

— Ai, Paz, tens de ir às Maldivas.

É claro, para ser cool, não podemos dizer às ilhas Maldivas, temos de dizer Maldivas. Sem determinante nem nada, para que se note já que há familiaridade, como quem vai um fim de semana sim e outro não. Não sei porque é que isso acontece apenas com as «Maldivas», talvez seja porque inclui a palavra «divas» e as faz sentir especiais. Porque, quando vão aos Estados Unidos, não dizem «venho de avião dos Unidos» ou no caso de visitarem uma povoação com menos glamour como “Despeñapiedras de Arriba”, «venho de Arriba», e parece que viemos da açoteia depois de estender a roupa.

Não estou a dizer que não me parecesse um lugar atrativo, antes pelo contrário, quando via fotografias desse paraíso de cabanas de madeira construídas diretamente sobre um mar de águas turquesas, só conseguia pensar numa coisa: «Se for às ilhas Maldivas algum dia, vou apaixonada.» Ou seja, para o fazer a todas as horas como os coelhos. Não vou gastar um dinheirão para estar numa praia debaixo do chapéu a fazer um sudoku.

E esse dia chegara. Não o fiz mais vezes na minha vida. Peço desculpa pela imagem grotesca que vos possa causar. Desde que acordávamos. Antes de pôr um pé no chão, já estava a pô-lo no roupeiro para me precipitar para ele como uma tigresa. Molhávamos o biscoito ao pequeno-almoço e não era no leite. E em qualquer lado, até no duche. Apesar de ser incómodo e supervalorizado fazê-lo no duche… Enquanto a mulher está debaixo de água, o homem está a passar frio, com aquilo encolhido. Se me mexer, magoo o corpo. Se abrir a boca, afogo-me literalmente com a água; se a fechar, não faço nada. Passamos metade do tempo a tirar a água dos olhos para ver alguma coisa e, por último, depois de meia hora sem conseguir abraçar a outra pessoa porque escorrega como um sabonete, quando conseguimos começar, só pensas que terás de limpar o charco que formámos com a esfregona.

Essas ilhas parecem desenhadas para a fornicação. Em Sodoma e Gomorra era vício, ali, é necessidade. O corpo pede-to. É possível que o pôr do sol nem sequer seja real, que se trate de uma projeção digital de algum tipo de algoritmo informático criado para ficarmos imediatamente com vontade.

— Por favor, senhores, comportem-se, este não é o lugar apropriado para fornicar.

— Oh, desculpe, deixámo-nos levar por esse pôr do sol tão bonito e…

— Sim, sim, eu sei, mas o avião está prestes a aterrar no aeroporto e devem permanecer nos vossos lugares e com o cinto posto. Terão tempo para o fazer durante os próximos dias na ilha…

De certeza que os nativos o aceitam como mais uma característica autóctone do seu país. Interiorizam-no desde pequenos. Imagino os guias a fazer as rotas turísticas e a explicar às famílias:

— A seguir, se olharem para a vossa direita, pousados no ramo da árvore, poderão observar uns exemplares de araras endémicas e, em baixo, mesmo ao pé da árvore, o casal típico de quarentões europeus a praticar o coito no primeiro canto que encontraram. Oh, meu Deus! Estamos com sorte. Chegámos a tempo para ver um espetáculo maravilhoso da natureza que só pode ver-se nas ilhas Maldivas. Olhem para as dezenas de mulheres que andam como caranguejos a remolhar na margem as suas partes baixas ardentes depois de um dia intenso de sexo. É um fenómeno que está a destruir o nosso recife de coral porque causa uma mudança drástica de vários graus de temperatura na água entre a noite e o dia.

Lembro-me especialmente de uma tarde em que estivemos a debater sobre a crítica ímpia de Kierkegaard à metafísica hegeliana como uma ciência que descreve a realidade por completo, não por causa do seu caráter ideal e abstrato, mas por causa do seu encobrimento do ético. Está bem, talvez não tenha sido realmente assim, talvez estivéssemos deitados na praia perdidos entre apalpões excitados para variar. Seja como for, vimos, ao longe, um grupo numeroso de pessoas a andar — demasiado arranjadas para irem voluntariamente assim vestidas para a praia — que se dirigiam para uma estrutura de madeira com flores que havia na margem a cerca de cem metros de nós.

— Oh, olha, Antonio, há tantos pinguins nas Maldivas — brinquei.

— O que é isso? Um casamento? Com este calor?

— Sim, parece que sim, não é? Oh, homem, o sítio é lindo… Imaginas-te a casar-te aqui?

O casamento que celebrámos na nossa adolescência, aos olhos de Deus, não tinha nenhum tipo de validade. Bom, sim, era uma desculpa para podermos ter sexo sem pecar. A única coisa que nos importava e que importa ao mundo. Às vezes, penso que é o instinto de copular que o move de forma literal: Que a Terra gira sobre si mesma porque alguém corre à procura de outro alguém para ter sexo e essa pessoa corre para outra pessoa, fazendo com que nunca pare de dar voltas. Sendo o coito o motor central de tudo, a teoria coitocêntrica. Imagino que, quando se escreveu a Bíblia, deixaram esses pequenos vazios legais de propósito para o pecado como o «não levantarás falsos testemunhos, não mentirás… exceto para proteger outro eclesiástico acusado de pederastia num julgamento.»

Durante alguns segundos, fantasiámos com um casamento naquele altar florido num desses perfeitos pôr do sol algorítmicos, mas a realidade depressa penetrou nos nossos sonhos. Em primeiro lugar, era demasiado caro. Se a viagem fora um dinheirão, nem quero imaginar qual seria a conta se nos casássemos. Nem tanto por causa do aluguer do espaço, mas por convidar a minha família, que são os que mais comem e bebem no mundo. Pode dizer-se que a minha família, literalmente, tem muito bom fundo. Já não conseguia imaginar a cerimónia elegante sem pensar no meu irmão a dizer a um empregado que acabou o barril de cerveja, que trouxessem outro e que ele podia mudá-lo se fosse preciso.

Para que façam uma ideia, em 1998, tive a honra de discursar no Carnaval de Cádis. Ser nomeada pregonera[3] é um motivo de orgulho para qualquer gaditano apreciador do Carnaval. Uma das maiores distinções que podem ter-se e, por isso, é feito de graça. O meu cachê naquela época era elevado, estava em plena ascensão da minha carreira, mas, como já vos disse, faz-se de maneira desinteressada. A presidente da câmara disse-me que, apesar de ser gratuito, convidava familiares e amigos para o jantar posterior e, para continuar com a festa, tencionava dar-nos vales de bebidas para uma tenda grande que se instala na cidade durante essa semana. Duas horas depois de estar na tenda, já me procuravam para me avisar de que nos fechavam a torneira porque a minha família bebera o meu cachê e mais. Portanto, compreendam-me, eu só me questionava a quantos pregões equivaleria um casamento.

Quando finalizou a cerimónia que seguimos de soslaio, o pessoal conduziu os convidados para uns jardins de um hotel próximo para continuar com a celebração.

— Antonio, esta é a nossa oportunidade, corre, deixaram o altar! Vamos casar-nos! E sem gastar um tostão! — exclamei, puxando-o pelo braço para que se levantasse da areia.

Ele nunca era o instigador das loucuras, mas seguia-me nas que me ocorriam. Tinham deixado tudo perfeitamente decorado: Altar com uma passadeira para caminhar até ele, cadeiras, flores… Tudo pronto para que disséssemos — chorando a rir por causa do momento surreal — que queríamos passar o resto das nossas vidas juntos. Depois do «sim, quero» fomos diretamente para o nosso quarto sem jantar para falar de metafísica mais duas ou três vezes.

[3] Pessoa que apresenta um evento e faz uma espécie de discurso. (Nota da T.)

O humor da minha vida

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