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Esse foi o primeiro dos nossos quatro casamentos. Perante Deus. Quem diria? O Antonio fora criado numa família crente, de estilo conservador. Os seus pais eram bastante mais religiosos do que os meus e imensamente mais religiosos do que eu. De facto, não sei se, naquela época, viam com bons olhos que o filho saísse comigo: Um redemoinho desbocado, sem nenhum tipo de vergonha ou pudor, a fazer palhaçadas, fosse onde fosse.

Lembro-me de que a comunicação com o pai dele não se prolongava para além de uns cordiais «bons-dias», «boas-tardes», «adeus» ou um «quer ler o jornal?». Eu, para fazer tempo até o Antonio acabar de se arranjar, pegava num exemplar da camilha e dedicava-me a virar as páginas, assentindo com a cabeça ou usando expressões genéricas em voz baixa como «argh, sempre a mesma coisa…», «já era de esperar…»

Naquela época, embora não o expressasse, mais de uma vez, senti-o inibido com a minha forma louca de ser, até um pouco envergonhado à frente de amigos ou familiares. Com os conhecimentos atuais, compreendo — mas não justifico — que fomos educadas e educados com os valores de uma sociedade heteropatriarcal. Valores gravados desde o berço que requerem uma educação, vontade de melhorar e autoavaliação constante. Valores com os quais a minha forma de ser chocava várias vezes. Se começasse a chover, eu abria o guarda-chuva e dançava à sua volta, cantando uma versão macarrónica de I´m singing in the rain sem me importar que todos olhassem para mim no meio da rua. Dedicava-me a ser feliz sem me deixar afetar muito com o que os outros pudessem pensar. Explico isto para que possa compreender-se melhor o motivo principal do fim da nossa relação após doze anos de amor puro.

Como já esclareci algumas vezes, o meu salto para a fama aconteceu por acaso. Em 1994, selecionaram-me para participar em Genio y figura, um programa de humor de televisão recém-criado que se emitiria na Antena 3. Naquela época, trabalhava como auxiliar de enfermagem no Hospital Puerta del Mar de Cádis e, numa tarde de folga, acompanhei o meu cunhado, o Grande Malakatín, mágico de profissão, a um casting em Sevilha. Para fazer tempo, inscrevi-me no casting do lado. Tratava-se de contar algumas anedotas e eu sabia milhões.

Passado algumas semanas, comunicaram-me que fora escolhida entre não sei quantos participantes e decidi testar a minha sorte, mais para viver a experiência do que por ter intenção de acabar por me dedicar ao mundo do espetáculo. Quem ia imaginar que o programa acabaria por ser um sucesso terminante de audiências e que o meu sentido de humor criaria uma ligação com centenas de milhares de espetadores todas as noites. Começaram a ligar-me para aparecer noutros programas e fazer atuações por todo o país. De um trabalho saía outro e assim sucessivamente. Sabia melhor o trajeto de comboio entre Cádis e Madrid do que o maquinista.

Para além de enfrentar o maior desafio pessoal e profissional da minha vida e as barreiras que existiam no mundo do espetáculo para a mulher — e as que ainda existem —, tive de lidar com uma que nunca esperei encontrar: A desaprovação do meu parceiro. Não queria vir comigo para Madrid porque não entrava nos seus planos de futuro, algo totalmente compreensível. No entanto, também não queria que eu o fizesse porque «essa profissão é pão para hoje e fome para amanhã». Não sei em que proporção se misturavam a tentativa de proteção e o egoísmo. Como qualquer relação prestes a acabar, as chamadas telefónicas e o tempo que passávamos juntos começaram a transformar-se numa sucessão de discussões em torno do tema central. O resultado foi que me vi obrigada a decidir: Ficar em Cádis por amor e renunciar a uma oportunidade profissional arriscada, mas atraente, ou ganhar coragem, atirar-me de cabeça e dedicar-me exclusivamente ao que a minha mãe chamava «a artistiquice».

Com toda a dor dos nossos corações e o sentimento mútuo de incompreensão da outra parte, os nossos caminhos separaram-se. A rutura era inevitável. Não obstante, apesar de quase perder o contacto por completo, depois da separação, sempre houve cordialidade e carinho. Às vezes, ligávamos para saber como estava tudo e até para nos felicitarmos quando descobríamos que o outro se casava ou que tivera uma filha. Tínhamos refeito as nossas vidas. Ambos nos tínhamos casado e divorciado posteriormente. Iguaizinhos em tudo. O “Largo” e a “Larga”.

Vinte anos mais tarde, recebi uma chamada dele. Não sei se sob os efeitos da anestesia porque estava a sair do dentista, perguntou-me:

— O que fiz de mal na nossa relação?

Contou-me que se divorciara e que não conseguia compreender o que falhara no seu casamento. Queria saber se cometia algum tipo de erro sistematicamente. Pensava que, se descobrisse onde se enganara na nossa relação, talvez compreendesse o que correra mal na atual. Logicamente, a minha resposta foi que não entendia que tipo de vínculo havia entre as duas. Eram idades diferentes, pessoas diferentes… Como se pudéssemos pôr tudo no mesmo saco…

A partir daí, começámos a ligar um ao outro e a querer saber um do outro com mais frequência. Como estás? Como está tudo? Tudo bem? Até que, certo dia, algum tempo depois, lhe contei que ia a Cádis e me convidou para jantar para «falar pessoalmente, que é melhor do que pelo telemóvel». O clássico. Não há ninguém na história breve do telemóvel que não tenha dito essa frase sem intenção de seduzir. De certeza que, se tivessem telemóveis, Isabel de Castela teria dito a Fernando:

— Hey, Fer, tanto tempoooo! Podíamos combinar alguma coisa, não? Não me ligas nenhumaaaa (ícone da carinha sorridente, ícone de piscar de olho, ícone da carinha com beijinho).

— Apetece-te sair amanhã e beber um café — ah, não, não havia —, bom, não sei, hummm… ir à missa, que é o que está na moda (ícone da igreja, ícone das mãozinhas a rezar, ícone do padre careca).

— Sim, claro… Dizes-me sempre o mesmo e insistes em ajoelhar-te no banco para rezar primeiro e acabar por insistir… Por insistir em unificar os reinos de Castela e Aragão (ícone da carinha vermelha zangada).

— Claro que não, não sejas tonta!! Somos primos em segundo grau, como vou fazer isso??? Só quero que falemos pessoalmente, que é melhor do que pelo telemóvel (carinha sorridente).

— Claro, está bem, vem buscar-me depois do meu banho. Só tomo um a cada nove meses e, por isso, não vou falhar (ícone do banho, ícone da carinha prestes a vomitar).

Em suma, havia uma sedução prévia por ambas as partes e decidimos conversar ou fosse o que fosse. Tinha sido direta com a minha irmã há alguns dias.

— Sole, tu não viste o Antonio. Está bom como o milho e, se puder, vou para a cama com ele antes de voltar a Madrid. Não te preocupes, será apenas uma aventura rápida para recordar os velhos tempos e acabou.

Convidou-me para um sítio fixe na praia que conhecia e eu fiz-lhe uma contraproposta que não pôde rejeitar.

— Está bem, mas pagas tu.

Dificilmente poderei esquecer aquela noite por vários motivos. O primeiro, o sítio. Um lugar asqueroso com candeeiros de luz branca que pareciam servir para dois ou três blocos operatórios, gordura até na argola do guardanapo e um empregado com mais gordura do que a argola do guardanapo e com o cabelo cortado à tigela. Não era um gastrobar era uma imundice. Sim, era junto de uma praia da costa de Cádis, cujo nome não quero lembrar-me para não ferir sensibilidades. Hoje, com duas palavrinhas, encontra-se no Google Maps até quem comeu a sopa de morcego com Coronavírus.

Como sabíamos que faríamos, quando acabámos de jantar no restaurante imundo, onde não comemos sopa de morcego por pouco, fomos até à praia para dar um passeio. Ao sentir o cheiro penetrante do mar e das rochas com verdete do quebra-mar, recordei como sentia a falta da minha terra e pensei em como podia ter-me enchido de marisco nessa noite se eu tivesse escolhido o restaurante.

O Antonio parou-me por um instante para me mostrar uma aplicação no seu telemóvel que, ao apontar para o céu, distinguia as constelações, suspeito que por algum sistema de GPS. Aproveitando a sua envergadura, pôs-se atrás de mim e rodeou-me com os braços para se gabar, mostrando-me no ecrã, onde estavam a Ursa Maior, Orion e Vénus. Eu não percebi nada. Dizia:

— Ai, Antonio, que coisa tão bonita.

Mas porque olhava para os bíceps dele. De repente, uma rajada ténue de ar deixou-me petrificada, sem fala. O cheiro dele passou-me por cima como um camião. O cheiro dele, não o seu perfume. Voltava a ter catorze anos. Essas horas e horas a beijar-nos na Alameda sucediam-se a toda a velocidade à frente dos meus olhos como fotogramas de um filme romântico do cinema clássico. O relógio perfeitamente engrenado de lábios, dentes e línguas voltava a funcionar vinte anos depois. Desta vez, sem óculos para atirar aos peixes com uma cotovelada. Em vinte anos, tivemos tempo para nos habituar às lentes de contacto. A minha mente estava ocupada por um único pensamento: Estou em casa.

O humor da minha vida

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