Читать книгу A guerrilha de Frei Simão - Alberto Pimentel - Страница 11

Оглавление

E por melhor passar a vida com dissimulação me mudei n’estes trajos; que o logar não soffria mais.

Bernardim Ribeiro—«Menina e moça», cap. XXXV.

Trez dias depois, José Maximo da Fonseca estava ao serviço do tenente-general Canavarro, na qualidade de segundo criado.

Foi admittido sob condição, emquanto se esperavam as informações que o governador mandou pedir para Beja, e que o rapaz julgava lhe seriam honrosas.

Effectivamente, assim aconteceu. O Synhedrio tinha preparado bem as coisas. O informador bejense chegava a lastimar que um serviçal tão activo e obediente como Manoel do Nascimento tivesse tomado a resolução de ir para o Porto, talvez seduzido pela esperança de maiores interesses, pois que outro motivo não havia.

Todos, em casa do governador das armas, gostavam de José Maximo, incluindo o Teixeira, criado grave ou escudeiro, como então se dizia, especie de mordomo, que era difficil de contentar pelo que respeitava ás qualidades dos seus subordinados.

Teixeira era um homem de sessenta e cinco annos, que entrára ao serviço da familia Canavarro quando tinha apenas quinze. Consideravam-n’o mais um amigo da casa do que um criado. Alto, sêcco, de maneiras exemplarmente compostas, não deixava nunca a sua casaca preta muito escovada e a sua gravata branca muito clara.

Havia sido educado em casa de uma familia nobre de Traz-da-Sé, onde o pai fôra tambem escudeiro. Essa familia extinguira-se, e elle tivera de procurar collocação em outra parte. Entrou na casa dos Canavarros, e nunca mais de lá saiu.

Aprendera desde pequeno a respeitar Deus, o Rei, e os patrões. A consciencia da sua posição levava-o, porém, a jámais discutir qualquer assumpto, que fosse extranho ao cargo que desempenhava.

Mas tinha convicções intransigentes, embora não ouzasse nunca formulal-as em voz alta.

Detestava os maçons, porque tinham fama de ser inimigos da religião e do throno. Nas horas vagas, mettido no seu quarto, lia as publicações contrarias á maçonaria. Sobre a sua mesa de cabeceira estavam A nova sentinella contra maçons, a Atalaya contra os pedreiros-livres, a Historia certa da seita dos fran-massões (sic).

José Maximo percebeu rapidamente o feitio do Teixeira.

Poucos dias passados, teve occasião de entrar furtivamente no quarto do escudeiro, e de lêr os titulos d’aquellas brochuras. Os factos confirmavam assim as suas previsões: tinha de tratar com um adversario politico, encapotado, mas inoffensivo.

Procurou conquistar-lhe a amisade, dizendo uma vez, em voz alta, de modo que o Teixeira podesse ouvir:

—Ha criados tão atrevidos, que até se mettem em politica! Eu cá não fallo n’aquillo a que não sou chamado. Respeito Deus Nosso Senhor, abaixo de Deus o Rei, e depois do Rei os meus patrões. Gosto de rir com todos, e não offender ninguem.

Uma das feições que José Maximo adaptou artificiosamente ao seu espirito foi o humor alegre, a jovialidade expansiva.

As criadas do general riam dos seus ditos facetos, da sua inalteravel bonhomia.

—O Manuel, dizia uma serigaita, a Catharina, já muito amoriscada d’elle, está sempre na fresca ribeira!

—Pois eu, sr.ª Catharina, até era conhecido na minha terra pelo Fresca Ribeira!

E José Maximo desatava a rir, a rir, como se effectivamente fosse o homem mais feliz d’este mundo.

Elle conheceu, desde o primeiro dia, a cabeça leve d’esta Catharina, mas achou que poderia tirar d’ahi argumento quando fosse preciso despedir-se do serviço do general para passar a outra casa.

E não se enganou.

Teixeira começou a achar raras e estimaveis qualidades no «Manuel», a tal ponto que ia tendo com elle menos reservas do que com todos os outros criados, passados e presentes.

Um mez depois de estar ao serviço do general, José Maximo, tendo sahido pela primeira vez ao domingo, aproveitou a occasião para communicar a Frederico Pinto as suas observações.

Metteu-se n’uma mercearia da Ribeira, e escreveu-lhe uma longa carta, da qual a revelação mais importante dizia que a pessoa que repetidas vezes procurava o governador, e se fechava com elle longo tempo, era o sr. Mello, presidente do senado da camara.

Esta revelação, transmittida ao Synhedrio por intermedio do coronel Sepulveda, foi tida como de bom agoiro.

O presidente do senado passava por ser um homem a quem as ideias modernas não repugnavam.

Seis mezes depois, José Maximo fazia uma revelação ainda mais importante: tendo sahido o Teixeira para visitar o Lausperenne, pudera escutar á porta de um gabinete em que o governador das armas e o presidente do senado estavam conversando, e ouviu, distinctamente, dizer o general:

—Se isso vier, não tomarei a iniciativa, mas hei de respeitar a opinião da cidade. As ideias não se afogam impunemente em sangue. Quando se reprimem hoje pela violencia, resuscitam ámanhã mais exaltadas.

Isso, na opinião de José Maximo, era a revolução constitucional. Não podia mesmo ser outra coisa, a julgar pelo tom de confidencia em que ambos estavam conversando á porta fechada.

Quando José Maximo se via só, pensava, com intensa saudade, em Anna de Vasconcellos. Mas não podia abandonar o posto de honra que lhe fôra confiado, e resignava-se lisongeado pela ideia de que na casa de Cezár era conhecida, pelas suas cartas a frei Simão, a extranha aventura politica que elle, por amor da liberdade, estava correndo no Porto.

Embora frei Simão lhe não respondesse, porque José Maximo assim lh’o recommendára, a fim de não receber cartas que, por frequentes, se podessem tornar suspeitas, a familia de Cezár conhecia a enormidade do sacrificio que lhe fôra exigido, e a coragem com que elle o acceitára.

O Synhedrio, que a pouco e pouco ia augmentando em numero, teve casualmente a contra-prova de que as informações de José Maximo, a respeito do general Canavarro, eram seguras. A certeza d’esta importante adhesão fortaleceu muito o plano do movimento. Desde esse momento os fautores da revolução contaram com o apoio da guarnição do Porto.

José Maximo recebeu ordem para, aproveitando o primeiro pretexto, se despedir da casa do governador das armas.

Esse pretexto tinha-o elle de remissa havia muito tempo: era, como sabemos, a perseguição amorosa que lhe fazia a leviana Catharina.

José Maximo disse em confidencia ao Teixeira que, guardando respeito á casa do general, se ia despedir por aquelle motivo. Teixeira, muito pesaroso, respondeu logo que quem devia ser despedido era a Catharina. Mas José Maximo objectou-lhe que não queria prejudicar uma pobre mulher, a quem a sua má cabeça bastava para desgraça: ao passo que elle, como homem, encontraria sempre mais facil collocação. E despediu-se.

Experimentado pela prova de dedicação que acabava de dar, José Maximo foi encarregado de outro serviço, ainda muito mais importante do que o primeiro.

Certo o Synhedrio do apoio do general das armas, achou que não valia a pena sondar o animo das outras auctoridades.

Por isso, Fernandes Thomaz escolheu José Maximo para seu amanuense, especie de chanceller encarregado dos sêllos privados: era, alem de uma prova de consideração, tambem um premio merecido.

Desde esse momento, José Maximo deixou de ser Manuel do Nascimento, o Fresca-Ribeira, natural do Alemtejo, para subir a mais elevada categoria, passando a conviver com os deuzes do constitucionalismo no olympo revolucionario do Porto.

Foi então que elle poude conhecer Fernandes Thomaz, Ferreira Borges, José da Silva Carvalho, Duarte Lessa e outros, que lhe appareciam já sem disfarce,—com plena confiança.

Entrado o anno de 1820, rebentou em Hespanha a revolução liberal, que restaurou a constituição de Cadiz. O povo, amotinado, obrigou Fernando VII a revogar todos os actos com que tinha combatido a liberdade. E como o rei catholico cedesse promptamente, os revolucionarios hespanhoes imaginaram que estava definitivamente restabelecida em Hespanha a idadede-oiro do constitucionalismo. Que fugaz illusão de politicos de boa fé, muito theoricos ou, como hoje diriamos, muito nephelibatas! N’isto se pareceram os de cá com os de lá.

O que é certo é que a revolução de Hespanha alentou o animo dos conspiradores do Porto.

O Synhedrio ia augmentando em numero: eram treze os seus membros. Declararam-se adhesões até ahi latentes. Por exemplo, o coronel Sepulveda, aliás tão dedicado á causa da revolução, começou a frequentar as reuniões realisadas em casa de Fernandes Thomaz.

Meiado julho, attento o estimulo que viera de Hespanha e a apathia de Lisboa, resolveu a junta revolucionaria do Porto não deixar esfriar esse estimulo e tentar ainda vencer o retraimento medroso da capital.

Por este motivo resolveu-se que Fernandes Thomaz viesse a Lisboa. Veio, e trouxe comsigo José Maximo, que retomára o seu antigo disfarce de criado, para o acompanhar.

A regencia do reino, avisada de que Fernandes Thomaz tinha partido para Lisboa, expediu contra elle apertadas ordens de prisão.

Um dia, Fernandes Thomaz tinha sahido logo pela manhã para avistar-se com um amigo, que morava ao Arco da Graça. José Maximo ficou em casa a preparar-se para ir entregar umas cartas, que o desembargador havia escripto na vespera á noite.

Descia elle a escada, no seu disfarce de criado, quando entraram dois beleguins.

—Olá! ó rapaz! perguntou-lhe um dos esbirros, tu és criado cá da casa?

—Sou, sim, senhor.

—Dize-nos uma coisa: não está aqui hospedado um sujeito que veiu do Porto?

José Maximo respondeu sem a menor hesitação:

—Está, sim, senhor. Está lá em cima, no quarto. Chegou ante-hontem.

Os beleguins subiram a escada contentissimos, e José Maximo, não menos contente, correu ao Arco da Graça a avisar Fernandes Thomaz do que se tinha passado.

Foi tão feliz, que o encontrou no caminho, de volta para casa. Fernandes Thomaz retrocedeu, e n’essa mesma noite retirava com José Maximo para o Porto, demorando-se, de passagem, algumas horas em Coimbra, para conferenciar com o seu particular amigo José Maria da Encarnação.

José Maximo tinha ganho, definitivamente, as suas esporas de ouro de conspirador. Se não fosse elle, Fernandes Thomaz haveria sido preso, e a revolução do Porto teria abortado. Fernandes Thomaz, bem como todo o Synhedrio, reconheceu, com palavras de muito louvor, esse importante serviço.

Sepulveda felicitava-se de ter concorrido para a iniciação de um tão importante e dedicado auxiliar.

A felizmente mallograda occorrencia de Lisboa determinou o Synhedrio a precipitar os acontecimentos.

No dia 24 de agosto rebentava no Porto a revolução. Todos os coroneis dos corpos da guarnição a apoiaram. O tenente-general Canavarro adheriu, como se esperava. O senado da camara tambem.

No Campo de Santo Ovidio, á frente das massas populares, que davam vivas á tropa, distinguia-se José Maximo, cujo chapeu andava n’uma constante rodaviva, regendo os compassos do enthusiasmo revolucionario, como se fosse a batuta de um maestro.

Numerosos grupos percorriam as ruas da cidade, acclamando os vencedores.

Na occasião em que um d’esses grupos passava pela porta do governador das armas, José Maximo avançou e, fazendo concha com ambas as mãos sobre a bocca, berrou para uma das janellas, em que a doidivanas Catharina parecia muito admirada de o vêr:

—Ó sr.ª Catharina! agora é que eu estou na minha fresca ribeira!

O Teixeira, muito contrariado com os acontecimentos d’aquelle dia, mas sempre muito discreto, abstinha-se de fallar, comquanto não pensasse n’outra coisa.

—Parece impossivel, matutava elle, que o sr. general deixe em liberdade todo este desafôro! Até os criados de servir já se mettem a patriotas! Pois o Manuel era um bom rapaz, mas corromperam-n’o! Que pena e que desgraça!



VI
Uma nuvem em ceu azul

Índice de conteúdo

A guerrilha de Frei Simão

Подняться наверх