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...a elle aprouve que não per officio, mas per indiguação, não por premio, mas de graça, e mais offerecido que convidado...

João de Barros—«Década primeira».

José Maximo chegou ao Porto e correu a casa de Frederico Pinto para lhe entregar a carta de frei Simão.

Eram as suas credenciaes de revolucionario: desejava apresental-as sem demora.

Na casa de Santo Ovidio, o camarada de Frederico Pinto disse-lhe que o sr. alferes ajudante devia estar no quartel.

José Maximo atravessou rapidamente a rua, foi procurar o ajudante. Pelo Campo passeiavam alguns officiaes, mas o estudante, tão cego ia, que não fez reparo n’elles.

Chegando á porta do quartel, perguntou á sentinella:

—Pode dizer-me onde está o sr. alferes ajudante?

—Acolá, conversando com o nosso coronel, respondeu a sentinella.

Então José Maximo viu que effectivamente o coronel e o ajudante andavam passeiando junto ás arvores, que ao oriente marginam o Campo de Santo Ovidio.

Dirigiu-se para os dois e, parando deante d’elles, disse tirando o chapeu:

—Desejo entregar ao sr. alferes uma carta de frei Simão de Vasconcellos.

Frederico Pinto mostrou-se algum tanto inquieto: receiou más noticias de Cezár.

—Peço licença ao meu coronel... disse elle.

—Á vontade, respondeu Sepulveda, affastando-se um pouco, e continuando a passeiar.

O ajudante leu com visivel interesse, e a sua physionomia, durante a leitura, revelava surpreza.

Quando chegou ao fim da carta, mediu com um olhar perscrutador a pessoa de José Maximo. Tudo o que se estava passando lhe devia parecer muito extraordinario, porque Frederico Pinto mostrava-se enleiado, sem atinar com o que havia de dizer.

Felizmente encontrou uma formula dilatoria, que lhe permittiu tirar-se do embaraço.

—Folgo muito de conhecer o sr. José Maximo, e, como deseja meu irmão, estou inteiramente ao seu dispôr. Louvo a sua patriotica resolução, e oxalá que ella possa ser util á salvação do reino. Mas vossa mercê comprehende que n’este momento não podêmos alongar-nos n’uma conversação, que lhe aproveite. O meu coronel está esperando por mim. Ámanhã fallaremos, se me der o prazer de procurar-me em minha casa. Acolá...

E indicou-lhe o predio em que morava e que José Maximo já aliás conhecia.

O estudante retirou-se um pouco contrariado. Imaginava elle que o mesmo seria chegar ao Porto e iniciar-se no segredo das combinações revolucionarias.

Frederico Pinto contou ao coronel Sepulveda o que acabava de passar-se. Leu-lhe a carta de frei Simão, accentuando os periodos que diziam:

«Este moço possue uma alma generosa e heroica. Adivinho n’elle um homem de acção. Aproveital-o será bem servir a patria. Entrego-t’o para que o protejas e dirijas.»

Sepulveda riu d’esta inesperada apparição de um rapaz exaltado até á loucura do heroismo.

—Feliz idade! disse o coronel. Mas desgraçada familia, a quem elle decerto prepara os grandes desgostos que resultam das contingencias politicas.

—O que eu não sei é o que lhe hei de dizer! Que vá estudando, é talvez o melhor conselho que posso dar-lhe. E se elle quizer ficar no Porto, offerecer-lhe-hei o auxilio que precisar.

—Sim, respondeu Sepulveda muito reflexivo. Mas não me parece conveniente que o hospéde em sua casa. O rapaz é exaltado, pode comprometter o hospedeiro. De mais a mais, ninguem tem o dom de adivinhar ao certo quanto tempo durará ainda a incubação de graves acontecimentos. E lembre-se o ajudante de que, se o seu casamento se antecipar, o que é possivel, a presença de um hospede permanente ser-lhe-ha incommoda.

—Tudo isso me tinha lembrado, coronel, e foi essa a razão de lhe não offerecer a minha casa.

—Mas, continuou Sepulveda sempre reflexivo, eu hei de fallar n’este caso ao Fernandes Thomaz. Veremos o que elle diz. Entretanto o ajudante vá-lhe dizendo que espere, sem lhe dar outras explicações, que nos possam comprometter.

—De certo, meu coronel. Farei isso.

Aquillo, no Porto, estava ainda muito atrazado. Refiro-me aos trabalhos preliminares da revolução. Fernandes Thomaz pensava n’ella; Ferreira Borges tambem. Sepulveda estava disposto a auxiliar o movimento. Mas não passava tudo ainda de vagos projectos, descosidos e nublosos.

Comtudo, o coronel, logo que esteve com Fernandes Thomaz, contou-lhe a historia de José Maximo. Riram ambos com o caso, mas Fernandes Thomaz, com a sua intuição de revolucionario, acabou por dizer:

—Quem sabe se o rapaz nos poderá prestar para alguma cousa, visto que frei Simão o afiança! Veremos.

Trez dias depois, José Maximo escrevia para Cezár a frei Simão. A sua carta, em cifra, denunciava certo desalento.

«Seu irmão, dizia-lhe elle, recebeu-me muito bem, mas, quanto ao que nós sabemos, apenas me disse: Espere. E eu estou esperando que o coração da patria accorde. Ardo na febre da impaciencia, e receio que ella chegue ao periodo agudo do desespero».

Aproximando-se o natal de 1817, José Maximo consultou Frederico Pinto sobre se deveria ir, como costumava, passar as ferias em Cezár. Já o ralavam saudades de Anna de Vasconcellos. E, pelo que tocava á revolução, não estava menos atormentado, se bem que Frederico Pinto lhe tivesse dito uma ou outra vez com mais alguma decisão: «Isto vai indo.»

Que fosse a ferias, aconselhou-lhe d’ahi a dias o alferes ajudante, para que o tio de Cezár não desconfiasse da sua estada no Porto. Mas concluiu por dizer-lhe em tom imperativo: «Vossa mercê deve voltar depois do Natal, porque parece que os seus serviços vão ser aproveitados.»

Oh! que doida alegria a que estas laconicas e mysteriosas palavras deram a José Maximo! Ia vêr Anna de Vasconcellos e entrar, finalmente, nos segredos da conspiração. Sentia-se duas vezes ditoso. Sob esta agradavel impressão partiu para Cezár.

Uma vez em ferias, tudo se passou como de costume. José Maximo, de arma ás costas, rodeiava, com disfarce, a casa do Outeiro, para avistar Anna de Vasconcellos, que perpassava no pateo de pedra voltado para os campos ou assomava de fugida a alguma das janellas viradas ao nascente ou passeiava com as irmãs no souto de Santa Luzia.

N’aquelle tempo Cezár era uma terra morta, muito solitaria. Não a povoavam, como hoje, prédios garridos, de brazileiros dinheirosos. As duas torres da egreja, uma sem sinos, pareciam envergonhadas, em sua modestia, de defrontar-se com as estatuas pretenciosas do jardim do abbade,—unica pompa evidente em Cezár. O basto pinheiral da serra do Pinheiro, ao norte, occultava n’uma solidão melancolica alguns vestigios de construcções celticas, ruinas do passado. E ao sul, a capellinha alvejante da Senhora da Graça era a unica nota risonha, que quebrava a monotonia triste do pinheiral, prolongado e basto.

José Maximo não aguentaria o aborrecimento de Cezár, se a imagem de Anna de Vasconcellos, vista de longe, não pairasse sobre toda aquella adormecida solidão de pinheiros e campos de milho, illuminando-a como uma aurora. Mas forçoso era contentar-se com isso, vêl-a de longe, a discreta distancia, e com alguma secreta entrevista que tinha com frei Simão na espessura da serra do Pinheiro e em que juntos scismavam no que viriam a dar as mysteriosas combinações revolucionarias do Porto.

Chegado o dia de Reis, José Maximo, ardente de impaciencia, mandou um adeus escripto a D. Anna de Vasconcellos e partiu.

Ao cabo de algumas semanas de espera no Porto, passado o dia 21 de janeiro de 1818, Frederico Pinto disse-lhe com grande reserva:

—Amanhã, pelas oito horas da noite, vossa mercê irá á casa n.º 32 da rua das Taypas. Subirá cautelosamente até ao primeiro andar, e ahi baterá quatro pancadas na porta, com os nós dos dedos. Se de dentro lhe responderem com identico signal, vossa mercê poderá entrar com plena confiança, porque estará entre amigos, e fará o que lhe disserem.

José Maximo não dormiu essa noite, nem teve vontade de comer no dia seguinte.

Dirigindo-se, á hora convencionada, para a rua das Taypas, entrou na casa que Frederico Pinto lhe indicára, e bateu quatro pancadas na porta do primeiro andar, com os nós dos dedos. Houve um momento de silencio e de demora. Mas outras quatro pancadas responderam de dentro, e a porta abriu-se.

José Maximo, entrando, viu trez homens sentados a uma mesa, sobre a qual ardia um candieiro de latão com trez bicos. Todos os trez homens tinham a cara coberta por uma mascara de panno preto, similhante á dos Farricôcos das procissões de penitencia.

Este apparato de mysterio, em vez de maguar José Maximo, agradou-lhe, porque lhe deu a impressão de estar n’um club revolucionario, em exercicio de funcções.

Desde aquelle momento tambem elle era um conspirador.

Convidado a expôr as suas convicções politicas, José Maximo fel-o com desembaraço, até com exaltação.

Applaudiram-lhe a fé patriotica, propria de corações generosos, mas recommendaram-lhe discrição e prudencia.

—Tanto mais, disse um dos mascarados, que a missão de que vossa mercê vae ser encarregado, requer um longo e sabio disfarce. O nosso unico receio é a pouca idade de vossa mercê, que o pode fazer cahir em surprezas e armadilhas.

José Maximo replicou com grande energia de caracter que, qualquer que fosse a missão que lhe incumbissem, saberia desempenhal-a com tino e perseverança.

Havia nas suas palavras uma rara dedicação partidaria em tão verdes annos. Sentia-se n’aquelle moço, quasi imberbe, a alma de um conspirador por vocação.

Um dos mascarados, ouvindo a profissão de fé de José Maximo, passou a expôr a missão que lhe destinavam.

Precisavam conhecer a maneira de pensar das principaes auctoridades civis e militares do Porto com relação ao projectado movimento revolucionario: sondar até que ponto poderiam contar com a sua tolerancia ou apoio; e sobretudo ser informados com solicitude do que se fosse passando em casa d’essas auctoridades, especialmente da qualidade e numero das pessoas que com ellas tivessem mais demoradas conferencias.

—Para isto, disse um dos mascarados, precisa vossa mercê tomar um disfarce qualquer, e esse disfarce não poderá deixar de ser o de uma occupação humilde, que vossa mercê supportará com paciencia e habilidade. O mais conveniente seria o de serviçal, por se adaptar melhor ao nosso plano, visto ser pessoa de portas a dentro.

—Obedecerei incondicionalmente, respondeu José Maximo.

O inesperado d’este lance excedia todas as previsões, todos os seus sonhos de conspirador. A surpresa como que o aturdira por instantes. Mas um dos mascarados, julgando erradamente que José Maximo esfriára perante o sacrificio que lhe era exigido, procurou dissipar-lhe suppostos escrupulos, dizendo:

—Os nossos adversarios auctorisaram pelo exemplo os meios de que lançamos mão. Pois não é verdade que, na mallograda tentativa do anno passado, um desembargador, ajudante do intendente geral de policia, não duvidou introduzir-se no carcere de um dos conspiradores, o architecto Sousa, para lhe arrancar revelações? Comtudo nós apenas procuramos o bem da patria; longe está do nosso animo o perseguir individuos e fazer victimas.

—Todos os meios são bons, quando os fins os justificam, respondeu resolutamente José Maximo.

—Muito bem! Vossa mercê terá que sahir de tempos a tempos da casa que o receber como serviçal, para com o maior disfarce ir relatar á pessoa, que móra no Campo de Santo Ovidio, tudo o que tiver visto e ouvido. Convem que adopte um nome supposto, e uma supposta naturalidade. Pode vossa mercê dizer-se nascido no Alemtejo. Quanto ao nome, poderá ser Manuel... Manuel...

—Do Nascimento, atalhou um dos outros mascarados. Ficará vossa mercê uzando o sobrenome e o appellido de uma famosa victima da inquisição, o illustre Filinto Elysio.

—Mas convém que nós assentemos no seu nome de guerra para, no caso de qualquer occorrencia desagradavel, sabermos que vossa mercê e Manuel do Nascimento, por exemplo, são uma e a mesma pessoa.

—Serei pois Manuel do Nascimento, respondeu José Maximo, e natural do Alemtejo. O resto é comigo, e supponho que vossas senhorias não terão motivo para arrepender-se.

—Assim o esperamos. Vossa mercê, segundo o nosso plano, terá que estacionar em varias casas, taes como a do governador das justiças, juiz de fôra do civel e presidente do senado, mas por agora importa que vá offerecer-se á do governador das armas, o tenente-general Filippe de Sousa Canavarro, que precisa de um serviçal, segundo noticia que temos. Como decerto lhe serão exigidas abonações, vossa mercê indicará João Pereira da Costa, seu antigo patrão, residente em Beja, negociante e proprietario, como pessoa competente para informar sobre seus costumes. O governador mandará decerto escrever para Beja, e de Beja lhe responderão satisfatoriamente. Isso é comnosco.

Pouco tempo durou a audiencia.

José Maximo, feliz por poder prestar um serviço á causa da liberdade, sahiu da casa da rua das Taypas e foi passeiar para o Campo da Cordoaria, muito ufano de si pela confiança que n’elle depositava o club revolucionario do Porto.

Ora esse club não representava por então senão o pacto secreto de trez patriotas, que tantos eram os mascarados, a saber: Fernandes Thomaz, Ferreira Borges e Silva Carvalho.

Eis o nucleo do famoso Synhedrio, que planeou a revolução liberal do Porto.



A guerrilha de Frei Simão

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