Читать книгу A guerrilha de Frei Simão - Alberto Pimentel - Страница 8

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Que erradas contas faz a phantasia!

Pois tudo pára em morte, tudo em vento,

Triste o que espera! triste o que confia!

Camões—«Sonetos».

A 18 de outubro de 1817 ardiam nas fogueiras do Campo de Sant’Anna em Lisboa os cadaveres dos patriotas liberaes, que haviam sido condemnados pelo crime de lesa-magestade e alta traição.

A respectiva sentença ordenava que os corpos de doze conspiradores, depois de terem passado pelo garrote, depois de lhes haverem sido decepadas as cabeças, fossem queimados, e as suas cinzas lançadas ao mar. Apenas abria excepção, pelo que tocava á infamia posthuma da fogueira, para quatro reus. Mas a todos envolvia na confiscação dos bens que possuissem.

O tenente-general Gomes Freire de Andrade foi executado na torre de S. Julião da Barra, longe dos seus companheiros de desgraça, porque se receiou que o supplicio n’uma praça publica désse origem a manifestações populares.

O crime d’esses doze patriotas, e de outros que foram condemnados a degredo, consistia na aspiração de libertarem o paiz da tutella do marechal Beresford, como primeiro passo para a conquista de um regimen de autonomia constitucional.

A denuncia foi feita ao proprio marechal por tres individuos alliciados pelos conspiradores. Beresford tratou de coordenar as provas da conspiração. Depois entregou o processo ao conselho da regencia, para que o fizesse submetter a julgamento summario, sem admissão de recurso ao rei, que estava no Rio de Janeiro.

Mal podemos imaginar hoje a profunda sensação que este lugubre acontecimento causou nos espiritos fanatisados pelo ideal da liberdade. O sangue das victimas clama vingança. As fogueiras de Lisboa aqueceram, ao longe, nas provincias, o desejo da desfórra. Só Lisboa ficou como que mergulhada n’um enervamento de pasmo e terror.

Todas as esperanças dos liberaes se voltavam para o norte do paiz, especialmente para o Porto, terra classica das arremettidas corajosas.

Suspeitava-se vagamente que não ficariam inertes alguns homens de grande valor, cujo espirito era reconhecido n’aquella cidade como affecto ao progresso das instituições politicas. Indicavam-se nomes: o do desembargador Fernandes Thomaz e o do advogado José Ferreira Borges, secretario da Companhia dos Vinhos.

José Maximo já tinha voltado a Coimbra quando o garrote e o fogo fizeram abortar em Lisboa a primeira tentativa de revolução.

A tal ponto se exaltou, que abandonou o Collegio das Artes e, deixando uma carta confidencial ao seu veterano Lemos, sahiu de Coimbra.

Chegou de noite a Cezár e foi bater á porta da casa do Outeiro, dizendo-se portador de uma mensagem secreta para frei Simão.

Após breves momentos de espera, o ex-frade de Alcobaça appareceu a receber o mysterioso mensageiro. Ficou admirado de vêr ali, áquella hora, José Maximo da Fonseca.

O estudante não justificou a visita senão pelas exaltadas palavras com que rapidamente denunciou o estado do seu espirito.

Vibrava indignado pelos acontecimentos de Lisboa. Sentia-se incapaz de estudar, revoltava-o a ideia de receber a instrucção pela taça da tyrannia, segundo o seu proprio modo de dizer. Preferia ser soldado e conspirador onde quer que a causa da liberdade carecesse dos seus serviços. Se fosse precisa uma cabeça para o sacrificio, da melhor vontade offereceria o seu corpo ao garrote e á fogueira.

Frei Simão teve um momento de bom conselho fazendo notar a José Maximo que elle arriscava o seu futuro, e incorreria não só no desagrado, mas até no odio do tio.

O estudante respondeu com fogosa convicção:

—Que me importa arriscar o futuro, se estou prompto a arriscar a vida?!

Frei Simão, encantado com o animo valoroso d’aquelle rapaz, que pelo ardor do sangue parecia seu irmão, deixou cahir a mascara, e tambem por sua vez clamou por vingança contra os algozes de homens cujo unico crime era amarem a liberdade e a patria.

Estabelecida uma intima communicação entre o frade e o estudante, como se uma corrente electrica os inflammasse simultaneamente, frei Simão contou a José Maximo que tinha recebido uma carta do Porto, de seu irmão Frederico, que em linguagem nublosa lhe dava a entender o que quer que fosse de possiveis combinações revolucionarias. Frei Simão suspeitava que Frederico o saberia por confidencia do coronel Sepulveda.

—Pois vou ao Porto! disse com resolução o estudante. E parto já.

—Já?! exclamou com surpresa frei Simão.

Correu o frade a uma das janellas e abriu-a de repente.

A madrugada clareava o ceu n’uma alvura nitente de leite crystalisado.

—Não! disse elle. Os criados de seu tio, e talvez elle proprio, já devem estar a pé. Seria uma imprudencia inutil atravessar agora Cezár, podendo ser surprehendido. Vossa mercê fica n’esta casa até que escureça, e partirá de noite. Dar-lhe-hei uma carta para meu irmão Frederico, que mora a Santo Ovidio, perto do quartel. Só lhe peço, como retribuição, que, n’uma cifra que logo combinaremos, me vá informando do que se passar no Porto.

Ficar n’aquella casa até á noite! Passar um dia inteiro sob o mesmo tecto que abrigava D. Anna de Vasconcellos! Só este programma de felicidade o poderia deter na sua louca aventura de ir ao Porto. Se fôra o amor que o trouxera a Cezár, a pretexto de desabafar com frei Simão, seria ainda o amor que o reteria ali durante umas felicissimas vinte e quatro horas, que passariam rapidas como um sonho.

José Maximo, olhando para dentro de si, sentia-se heroe. No meio d’aquella familia liberal, Anna de Vasconcellos seria decerto a primeira pessoa que lhe engrandeceria a coragem e o arrojo, e era justamente a seus olhos que elle ambicionava ser heroe laureado ou victima celebre. Pouco lhe importava que acontecesse uma ou outra cousa, comtanto que D. Anna o considerasse como um homem da estatura moral de frei Simão, capaz de arrostar com odios acerbos e de manter até ao heroismo as suas fortes convicções politicas.

Quiz frei Simão que José Maximo fosse descançar algum tempo da fadiga da jornada.

O estudante obedeceu por delicadesa, porque não sentia cansaço nem somno.

Deram-lhe o quarto dos hospedes, sempre preparado nas casas hospitaleiras da provincia.

José Maximo deitou-se, mas não conseguiu adormecer. A sua fogosa imaginação ardia em sonhos de vaga felicidade. Cria-se já um heroe na atmosphera d’aquella casa, a que o coração o prendia. A imagem de Anna de Vasconcellos, que devia estar ali perto, sorria-lhe como o anjo da victoria, que lhe promettesse os louros de um duplo triumpho.

Ás oito horas da manhã, frei Simão bateu á porta do quarto do hospede. Eram horas de almoço. José Maximo não se fez esperar muito tempo. O coração saltava-lhe do peito em palpitações desordenadas. Era que se aproximava o momento de, pela primeira vez, poder fitar rosto a rosto a mulher amada, que até ahi apenas tinha contemplado de longe.

Durante o almoço e as breves horas que se lhe seguiram, o precoce revolucionario do Fundão sentiu-se cobarde deante de D. Anna de Vasconcellos, a si proprio se extranhou pelo acanhamento que o enleiava. Cerca do meio-dia, o acanhamento converteu-se em extasi quando, na sala nobre do Outeiro, a formosa menina dedilhou timidamente cythara franceza, em honra do seu hospede. Ao declinar da tarde, o estudante tinha ganhado coragem, a ponto de, já senhor de si, poder dizer de fugida a D. Anna de Vasconcellos uma coisa que ella sabia a preceito: «Amo-a como se pode adorar um anjo.»

A esta incendida declaração de amor respondeu uma onda de sangue, que do coração subiu ás faces de Anna de Vasconcellos.

Pelas oito horas da noite, frei Simão chamou á parte José Maximo, que se preparava para partir, e disse-lhe:

—Vossa mercê certamente leva pouco dinheiro comsigo. Bolsa de estudante costuma ser magra.

José Maximo respondeu, de prompto, que não precisava dinheiro.

—Ha de precisar, replicou frei Simão, pelo menos para as primeiras despesas. Depois, meu irmão Frederico, como n’esta carta lhe recommendo, olhará por vossa mercê.

José Maximo quiz ainda resistir á offerta, mas frei Simão entregou-lhe uma peça de ouro, dez crusados novos, e, como galanteria, a titulo de recordação d’aquella visita, um napoleão, moeda franceza que Junot havia introduzido em Portugal, e que tinha corrido com o mesmo valor das peças portuguezas: 6$400 réis.

—Esta moeda, disse o frade referindo-se ao napoleão, ficou com algumas outras no pé de meia da minha familia como memoria historica de uma epocha nefanda. Quero eu que vossa mercê a possua como um vademeco que lhe ha de espiritar o amor á patria e á liberdade, quando se lembrar de que os tyrannos pretendem escravisar os povos não só pelo ferro, mas tambem pelo ouro.

José Maximo agradeceu, confundido, a generosa dádiva de frei Simão, e sahiu da casa do Outeiro tão fascinado pela recordação deliciosa d’aquelle dia como pela ambição de poder ser, aos olhos de Anna de Vasconcellos e da patria, um libertador audaz, um redemptor immortal.

Metteu por atalhos até encontrar, á distancia de uma legua, a estrada real de Coimbra ao Porto.

Graças á generosidade de frei Simão, poderia fazer o resto da jornada mais commodamente, logo que encontrasse no caminho um almocreve ou um lavrador que lhe quizesse alugar um macho.

Marchou desembaraçadamente toda a noite. Só quando já alvejavam os primeiros clarões da manhã, descançou recostado ao tronco de uma arvore, por alguns momentos. Então uma voz de camponesa, plangentemente cadenciada, começou a cantar a pequena distancia:

Quem quer vêr um infeliz,

Que nasceu ao pé da faya?

Não ha desgraça nenhuma,

Que n’este infeliz não caia!

José Maximo, instinctivamente, levantou os olhos para a arvore a cujo tronco se tinha encostado: era uma faya.

Esta coincidencia impressionou-o.

Elle tinha bebido com o leite materno a credulidade nas superstições populares. Os agouros são a tea de aranha em que se enrédam muitas organisações audazes, que não costumam tremer deante de perigos reaes. Um vago presentimento intimida-as mais do que um franco adversario. E comprehende-se que seja assim, porque os fortes, por isso mesmo que não receiam os homens na lucta com elles, apenas podem acobardar-se deante do poder mysterioso que regula os acontecimentos humanos.

Aquelle rapaz, que parecia haver nascido para luctar, tinha, como Achilles, um calcanhar vulneravel: era a indole supersticiosa.

Por isso, ergueu-se rapidamente, seguindo jornada para fugir a esse logar de triste recordação,—como quem se dá pressa em cortar o inesperado encontro de um ruim agouro.



IV
A iniciação

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A guerrilha de Frei Simão

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