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Que buscas por aqui por esta serra

Que segundo o que julgo vás errado?

Frei Agostinho da Cruz—«Varias poesias».

Quando a noticia da revolução do Porto chegou a Cezár, frei Simão de Vasconcellos, delirante de alegria, quiz commemoral-a festivamente.

Embandeirou as janellas da casa do Outeiro, e mandou á Feira, por um proprio, comprar morteiros e bombas.

Estas demonstrações de jubilo irritaram profundamente os visinhos que eram absolutistas.

A cada morteiro que estrondeava de dia ou de noite, Ignacio da Fonseca, desesperado, lamentava que o sobrinho estivesse ausente, porque, dizia elle, havia de o mandar disparar muitos tiros, por troça, ao pé da casa do Outeiro.

Na sua opinião não havia ninguem como José Maximo para dar tiros á tôa.

O abbade Moreira Maia não gostou da «funcçanata» do Porto, como elle classificou ironicamente o inicio do movimento liberal, mas isso não o impediu de montar a cavallo como tinha por costume. Padre Antonio Pinheiro, porém, encerrado no seu quarto, rezava de joelhos, com os olhos fechados, e, ao estrondo de cada detonação festiva na casa do Outeiro, estremecia de terror como se o mundo desabasse em torno d’elle.

José Maximo, no dia vinte e seis de agosto, ao fim da tarde, sahiu do Porto depois de ter ido perguntar a Frederico Pinto se queria alguma coisa para a sua familia.

Este irmão de frei Simão tinha casado havia um anno, como já sabemos.

Frederico Pinto, constitucional dedicado, disse a José Maximo que abraçasse por elle o irmão, ao qual, aproveitando o ensejo, escreveu uma carta.

José Maximo recebeu a carta aberta, mas fechou-a na presença de Frederico Pinto. E partiu.

Fez a jornada a cavallo, acompanhado por um arrieiro, que despediu a uma legua de distancia de Cezár, no ponto em que tinha de abandonar a estrada real do Porto a Coimbra.

Não desejava ser visto por ninguem da casa de Ignacio da Fonseca, mas já o não assustava a hypothese de que o tio viesse a saber que elle estava em Cezár.

A embriaguez capitosa da victoria duplicava-lhe a ousadia.

Em caminho do Outeiro, viu por entre as plumas amarellas de um campo de milho, que pertencia ao tio, apparecer uma cabeça de homem. Cozeu-se com o muro do atalho, e passou.

Na casa do Outeiro foi recebido como um vencedor. Frei Simão deu-lhe uma boa duzia de abraços muito expansivos.

Anna de Vasconcellos felicitou-o com ternos olhares, mais gloriosos para José Maximo do que uma corôa de louros. E o estrondo dos morteiros, augmentando, reavivou o desespero de Ignacio da Fonseca e o sobresalto do padre Antonio Pinheiro.

Largamente contou José Maximo os trabalhos por que tinha passado no Porto, a sua ida a Lisboa com o desembargador Fernandes Thomaz, factos de que em carta cifrada havia mandado summaria noticia a frei Simão.

Estava encantado de ouvil-o, o frade. Sentia-se orgulhoso de ter inventado aquelle revolucionario, por cuja intervenção collaborára tambem no movimento do Porto. Era como que uma vaidade de editor, que acabasse de dar ao prelo uma preciosa obra até ahi inédita e, portanto, desconhecida.

—E, agora, o que tenciona vossa mercê fazer? perguntou frei Simão a José Maximo.

—Eu sei lá! Estou ao serviço da junta provisional, e farei o que me mandarem.

—Volta então para o Porto?

—Tenciono voltar esta noite, porque apenas pedi licença por vinte e quatro horas.

—Que pressa! Tem vossa mercê deante de si um bello futuro. Mas pena é que não adopte uma carreira definida: a das armas ou a das lettras. São as unicas que no nosso paiz dão presentemente accesso ás maiores honras. Por que não pensa vossa mercê em continuar os seus estudos?

—Farei o que os meus amigos quizerem que eu faça.

Lembrou-se José Maximo de entregar a carta de Frederico Pinto a frei Simão.

O frade leu-a com interesse, e chamou em alta voz as irmãs para repetir a leitura.

Frederico Pinto convidava Anninhas—como na familia lhe chamavam—a ir passar algum tempo no Porto, em companhia da cunhada.

«Individualiso a Anninhas, dizia o ex-ajudante de infanteria 18, por ser a mais nova das manas, e por isso a que menos falta poderá fazer no Outeiro. Seria muito agradavel a minha mulher ter aqui uma menina da sua condição e do nosso sangue com quem repartisse as alegrias e os cuidados de mãe feliz e dedicadissima. O nosso Frederico promette ser um rapagão sádio e forte. Mas a Margarida queixa-se de que eu não tenho geito nenhum para ajudal-a a enfaixar e adormecer creanças.»

Mal podia imaginar José Maximo que essa carta, de que fôra portador, havia de lhe dar tão agradavel surpresa. Ficou doido de alegria. Anna de Vasconcellos tambem não poude dissimular todo o contentamento que a alvoroçou.

Consultada por frei Simão, respondeu de prompto que acceitava o convite. As outras irmãs sorriram, e frei Simão imitou-as involuntariamente. José Maximo, vendo sorrir as trez senhoras e o frade, tambem deixou entrevêr um sorriso, de que chegou a envergonhar-se. Só Anninhas, cahindo de repente em si, ficou n’um pudibundo enleio, que a tornou mais graciosa.

Durante o dia, José Maximo, aproveitando um momento de estar a sós com frei Simão, disse-lhe improvisamente:

—Tenho que fazer um pedido a vossa reverencia.

—Um pedido! exclamou o frade.

E receiou que José Maximo se lembrasse de pedir-lhe a mão de Anninhas. Frei Simão adorava esse rapaz, é certo, mas não poderia consentir n’um casamento, que desde logo não garantisse a independente subsistencia dos conjuges. A suspeita de ter que recusar, quando quereria conceder, sobresaltou-o dolorosamente.

—Um pedido, repetiu serenamente José Maximo. Vai vossa reverencia fazer-me o favor de acceitar uma restituição, sem que se dê por affrontado.

—Como?! perguntou frei Simão cada vez mais surprehendido. Uma restituição?!

—A ultima vez que estive n’esta casa obsequiou-me vossa reverencia com uma peça de ouro, dez crusados novos e um napoleão. Restituo a moeda portugueza, e guardarei a de França, como recordação historica, a que a significação, que vossa reverencia lhe deu, duplica o valor.

—Mas então, perguntou o frade, vossa mercê não precisou tocar n’esse dinheiro?!

José Maximo sorriu e respondeu:

—Esquece-se vossa reverencia de que fui durante algum tempo serviçal assalariado do governador das armas do Porto?! Depois d’isso subi de categoria e tenho recebido honorarios pelo meu trabalho de amanuense da junta. Quiz recusal-os, mas o sr. Fernandes Thomaz disse que, conhecendo os meus apuros, não podia dispensar-me de receber um modesto estipendio. A minha hesitação cessou completamente quando elle accrescentou que apenas queria remunerar os serviços materiaes, porque não havia ouro que pagasse uma dedicação sincera. Ora eu repito a mesma cousa a vossa reverencia: restituo aquillo de que não precisei, mas permanecerei devedor insoluvel pela gratidão eterna que devo a vossa reverencia.

Frei Simão estava como absorto deante d’aquella hombridade de caracter, d’aquelle orgulho de fidalgo pobre n’um moço que, por servir a liberdade, se tinha sacrificado ao ponto de assoldadar-se como serviçal. E quasi sentiu remorsos de ter receiado que José Maximo lhe quizesse pedir a mão da irmã. «Não! pensava o frade, um homem d’estes fará minha irmã princesa ou não casará jamais. É muito altivo para lhe impôr o sacrificio da pobresa. Os caracteres que mais facilmente se sacrificam são os que mais obstinadamente procuram evitar o sacrificio alheio.»

Frei Simão conhecêra a preceito a alma de José Maximo. Abraçou-o visivelmente commovido, e guardou o dinheiro sem oppôr maior resistencia.

Foi já de noite que José Maximo sahiu do Outeiro para o Porto.

Nunca elle havia trilhado aquelle caminho em tão alegre disposição de espirito.

A causa da liberdade estava ganha. Com a excessiva credulidade que é propria da gente moça, imaginava José Maximo que a revolução liberal era um monumento inabalavel e duradouro como as pyramides do Egypto. Tão cego de enthusiasmo estava, que nem a lição do que se tinha passado em Hespanha lhe acudia á memoria; não se lembrava de que, depois da revolução de Cadiz, Fernando VII se repatriára em triumpho e fôra acclamado rei absoluto pelas tropas do general Elio, com applauso da nação. O que José Maximo apenas via ou queria vêr era a victoria da liberdade em procissão festiva pelas ruas do Porto, e a ventura que n’aquella cidade o esperava na hora em que Anna de Vasconcellos lá chegasse. O coração e o espirito estavam satisfeitos. Parecia a José Maximo que todos os ideiaes da sua vida tinham attingido uma realidade tão feliz como perduravel.

Ao entrar no atalho que cortava os milharaes de Ignacio da Fonseca, viu, de repente, trez homens sentados no rebôrdo do muro, que era feito de pedras soltas. Conversavam fumando. José Maximo não gostou do encontro, mas não se acobardou. Levantou a gola da niza, derrubou o chapeu sobre a testa, e seguiu.

Tinha já passado pelo grupo, quando um dos trez homens gritou:

—Ó sr. José Maximo!

Fez que não ouvia. Mas outra voz insistiu:

—Então não quer o sr. José Maximo jogar o entrudo comnosco?! Ora quem elle é! O sobrinho do patrão! Vá com Deus, sr. José Maximo, e boa viagem.

Nem uma nem duas. José Maximo, que distinguiu perfeitamente a voz de Manel Zarôlho, criado de seu tio, foi andando sem responder. Mas levou a certeza de ter sido reconhecido pelo grupo.

Justamente esse criado era o que andava trabalhando no campo quando José Maximo passára para o Outeiro. Viu o sobrinho do patrão, e asseverou aos outros dois criados que era José Maximo em carne e osso.

—Aqui anda marosca por força! accrescentou. De casa do frade não sahe cousa boa.

Eram as ideias do patrão, a opinião dos absolutistas de Cezár com relação a frei Simão de Vasconcellos.

—Homem! pode ser que te enganasses, objectaram-lhe os outros.

—Qual historia! Não conheço eu outra cousa! Senão p’ra quê, havemos de desenganar-nos. De dia ou de noite, elle hade sahir do Outeiro, e como foi ás escondidas decerto se não demora muito. Havemos de vêr-lhe a figura.

Esperaram-n’o, e reconheceram-n’o, apesar de José Maximo não ter respondido.

O povo parece gostar de ser alviçareiro de ruins novas, sobretudo quando se lhe afigura que o revelal-as pode parecer dedicação pelo interessado em sabel-as.

Correram pois os trez criados a dar conta a Ignacio da Fonseca do que se tinha passado.

O lavrador, que andava aturdido com a revolução do Porto, ficou boqui-aberto.

Deu-lhe um bate no coração.

—Querem vocês ver, disse elle, que meu sobrinho vai feito com frei Simão e com toda essa maldita cambada de pedreiros-livres?! Pois se assim fôr, não quero que torne a pôr-me a vista em cima, nem tornar a vêl-o n’este mundo ou no outro.



VII
Angustias

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A guerrilha de Frei Simão

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