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...e lhe deram os vestidos seculares, que requereu ancioso de proseguir os actos da sua liberdade por que suspirava.

Frei Antonio da Piedade—«Espelho de penitentes», tom. I.

As quatro filhas de José Bernardo de Vasconcellos chamavam-se Maria Albina, Anna José, Antonia, e Maria Henriqueta.

Todas ellas lindas mulheres, parecendo ser a belleza apanagio de familia, tanto nas senhoras como nos homens.

Maria Albina era a mais velha.

Anna José, branca como as irmãs, tinha como ellas uns olhos de purissimo azul, e cabellos castanho-claros. A côr dos olhos reproduzia-se em todos os filhos de José Bernardo. Se porém alguma das quatro irmãs se avantajava ás outras em belleza, era D. Anna a mais formosa, segundo o testemunho dos contemporaneos. Diziam-n’a encantadora.

O pae, ao rebate dos primeiros achaques, encarregou Frederico da administração da casa, que consistia principalmente em prasos de livre nomeação. Entregou-lh’a, reservando o rendimento da quinta do Outeiral em Arouca para seus alimentos, de seu filho Antonio Pinto, o mais novo, de sua filha Maria Henriqueta, que se destinava á vida monastica, e de D. Theresa Bernarda de Vasconcellos, sua irmã d’elle. Os outros filhos, José, Simão e Joaquim Maria, estavam em posição de não carecer de auxilio paterno.

Desde o casamento de José Bernardo o domicilio da familia Vasconcellos era, como dissémos, na casa de Cezár.

Não primava pela grandeza da traça o solar do Outeiro, como ainda hoje se pode verificar, mas denunciava a nobreza de origem dos seus habitantes no brazão em madeira que corôava o tecto da sala de entrada e no qual se liam os appellidos de gloriosos ascendentes—Leites e Amaraes, Moreiras e Vasconcellos.

Quem hoje fôr a Cezár com o intuito de visitar a casa do Outeiro, poderá reconhecel-a de longe pelos altos cedros, que a ensombram. Mas estas arvores são relativamente modernas. O mesmo se pode dizer de uma pequena sala de entrada, á qual se sobe por alguns degraus de pedra, e que está mobilada com cadeiras de couro, tauxiado nos espaldares e assentos.

Tudo o mais conserva a feição que tinha o solar no tempo de José Bernardo e dos filhos.

O edificio é de um só andar, a pequena altura do solo, com janellas de differente feitio, voltadas ao nascente.

Entrava-se então no Outeiro por uma porta fronha, chamada a Porta vermelha, que abre sobre um pateo de pedra, separado do pomar, cujo nivel lhe é inferior. A sala de recepção era a de entrada, brazonada no tecto. Seguia-se, para o interior da casa, um corredor que dava ingresso aos quartos de cama.

Fóra do edificio ficavam as dependencias do solar, as officinas agricolas, a habitação dos caseiros, e a capella de familia, hoje desmantelada.

A esposa de José Bernardo havia fallecido, deixando na alma do viuvo um denso negrume de saudade, cada vez mais cerrado pela tristeza da inercia, a que a doença o ia reduzindo.

Viviam muito solitarias as quatro meninas, orphãs de mãe, e privadas da tutella vigilante do pae, achacoso e triste.

Frei José tinha comprado a Quinta de D. Maria, a dois passos do Outeiro, e doára-a a todas as quatro irmãs para sua habitação. Mas no Outeiro ou em D. Maria a solidão era igual para ellas.

Quatro irmãos, ausentes: José e Simão cada um em seu mosteiro; Frederico no Porto, Joaquim Maria em Traz-os-Montes.

Frei Simão, cujo caracter energico e destemido animo nunca poderam deixar-se domar pelo habito de S. Bernardo, a si proprio quiz justificar a ideia de que a sua presença se tornava necessaria em Cezár, para companhia e amparo das irmãs.

Era até certo ponto um pretexto, por isso que as quatro meninas ainda tinham o irmão mais novo, Antonio, e a tia, irmã do pae, que podiam acompanhal-as.

Mas frei Simão, a quem a vida religiosa só repugnava pela disciplina monastica e pela sujeição claustral, lançou mão d’esse pretexto para insistir no pensamento de obter a secularisação.

A liberdade de acção e o regresso á terra natal, aos campos da sua infancia, sorriam-lhe como um sonho de felicidade.

Elle havia adquirido propriedades em Alcobaça, comprára ahi a quinta chamada do Mogo, mas o seu espirito nunca se apegára tanto ao torrão florente e uberrimo da Extremadura como aos campos de Cezár, menos pittorescos certamente, mas mais suggestivos para elle, porque desde creança os conhecia e amava.

Dispondo de um animo capaz de tentar empresas difficeis e de arrostar com obstaculos, frei Simão requereu em Roma a secularisação, allegando o pretexto que as circumstancias de familia lhe forneciam. Mas não confiou tanto na justiça da allegação, que não pensasse em reforçar o pedido com valiosas recommendações para o nuncio em Portugal, monsenhor Vicente Macchi, para o embaixador portuguez em Roma, conde do Funchal, e para o cardeal Pacca, prosecretario de estado na Santa Sé.

Succedia que o cardeal Bartholomeu Pacca tinha estado como nuncio em Lisboa, para onde viera em maio de 1795, sendo então arcebispo de Damietta. Vinha já de representar o Papa na côrte de Luiz XVI, d’onde se retirára quando o scisma rebentou. Demorou-se em Lisboa até 1800. No principio do anno seguinte, Pio VII chamou-o a Roma, deu-lhe o chapeu cardinalicio, e investiu-o nas funcções de prosecretario d’estado. Bartholomeu Pacca soffreu, ao lado do Pontifice, as prepotencias de Napoleão I. Esteve preso em França, porque o imperador via n’elle o instigador da bulla d’excommunhão com que havia sido fulminado. Em 1814 voltou com Pio VII a Roma, e reassumiu as funcções que antes desempenhava.

Durante a sua nunciatura em Portugal, o cardeal Pacca creára em Lisboa muitas relações com pessoas de alto valimento, persónas gratas, que lhe podiam recommendar, com efficacia, qualquer memorial.

Não se vae porém a Roma n’um dia, diz o proloquio, tão verdadeiro em relação ás pessoas como aos negocios. De mais a mais, a politica napoleonica continuou a dar que fazer á Santa Sé: em 1815 Murat marchou sobre Roma, e o cardeal Pacca, depois de ter protestado contra a violação do territorio e nomeado uma junta provisoria para governar a cidade sagrada, fugiu.

A pretensão de frei Simão de Vasconcellos foi retardada por todos estes acontecimentos politicos.

Mas quando em junho d’esse anno o cardeal Pacca voltou a Roma, redobraram-se junto d’elle as instancias movidas por frei Simão e auctorisadas com a informação favoravel do geral da ordem de S. Bernardo e do bispo do Porto.

Antes de sahir como enviado extraordinario para Vienna, em 1816, o cardeal Pacca referendou, a 17 de março, o breve de secularisação de frei Simão de Vasconcellos, com o fundamento de poder «prestar auxilio a quatro irmãs germanas, sómente emquanto d’elle carecessem», e com a reserva «de trazer sob o habito de presbytero secular algum signal do seu habito monastico, e de observar a parte substancial dos votos da sua profissão».

Frei Simão era então um homem de vinte e sete annos. Louro, de olhos azues—esses bellos olhos que caracterisavam toda a sua familia—largo de hombros, peito amplo, cabeça desenvolvida, estatura regular.

Com grande alegria recebeu elle o breve que o emancipava da vida conventual.

Mas não despiu a cogulla branca, nem tirou o chapeu preto, nem desatou o cordão que enrolava á cinta. Sahiu assim de Alcobaça, e assim, indo alem da imposição que superiormente lhe fôra feita, o viam os seus parentes e visinhos desde que regressára a Cezár.

Certos visinhos não o tornaram a ver com bons olhos, porque o temiam como homem e o aborreciam como frade secularisado, que não se pejava de mostrar-se inclinado á corrente de ideias revolucionarias que tinham vindo de França.

Mas frei Simão, fazendo-se lavrador ou trabalhando n’uma improvisada officina de mecanica, que montára na casa do Outeiro, dava mediana importancia a visinhos de ao pé da porta.

Alguns mendigos de Cezár, da Feira e de Oliveira de Azemeis iam esmolar ao pateo da casa do Outeiro. Frei Simão soccorria-os. Animados por este precedente, alguns trabalhadores recorreram ao frade para que lhes emprestasse qualquer quantia de que urgentemente precisavam. Frei Simão attendia-os, e perguntava-lhes:

—Quando julgas tu poder pagar?

—Saiba vossa reverencia que d’aqui a seis mezes.

—Pois bem. Dou-te outros seis mezes de espera, mas toma sentido, que se d’aqui a um anno me faltares, comigo terás de haver-te.

Se, passado um anno, o devedor ia pagar pontualmente, conquistava por esse facto a sympathia e confiança de frei Simão: podia contar, de futuro, com a sua algibeira. Se faltava á fé do contrato verbal, o frade, quando acontecia encontrar o devedor, crescia para elle, colerico, de bordão em punho, ameaçando punil-o corporalmente.

Frei Simão tinha uma justiça propriamente sua, principalmente baseada nos dictames da consciencia: bom para os bons, severo para com os delinquentes.

E em questões de dinheiro era de uma meticulosidade intransigente, tanto em relação a si mesmo como aos outros.

Frequentemente percorria todas as propriedades da familia desde Oliveira de Azemeis até Arouca, auxiliando na direcção agricola dos bens o irmão Frederico, antes e depois de casado.

Pela irmã mais velha, que lhe era especialmente dedicada, soube frei Simão que D. Anna José correspondia ao amor de um rapaz, natural do Fundão, de appellido Fonseca, e sobrinho de um visinho do Outeiro.

O frade não conhecia o namorado da irmã, que só apparecia em Cezár no tempo das ferias, mas acertou de se encontrar com elle na occasião em que o general Gomes Freire e os seus companheiros de infortunio já estavam entre ferros como réos de alta traição.

Gostou do rapaz, que era elegante, alto, moreno, cheia a physionomia de vivacidade peninsular: os olhos, muito pretos e luminosos, denunciavam-lhe o ardor da imaginação insoffrida.

O estudante e o frade começaram por conversar de superficialidades cerimoniosas, vindo frei Simão a saber que José Maximo da Fonseca cursava ainda preparatorios no Collegio das Artes, porque o pae levára tempo a consentir em que trocasse a agricultura pela vida litteraria.

Mas o estudante, com a confiança que lhe inspirava o facto de frei Simão ser irmão da mulher amada, e liberal convicto, não tardou a abrir-se em confidencias com elle.

Contou-lhe que em Coimbra era caloiro do alumno de medicina José Maria de Lemos, parente proximo do bispo-conde, e unico estudante que admittiam ás suas conferencias os organisadores da loja maçonica Sapiencia, a qual no anno seguinte começou a funccionar perto do Collegio Novo.

Pela convivencia com o Lemos, a quem era cegamente dedicado, ganhára José Maximo decidido enthusiasmo pelos principios liberaes, que sentia não poder defender ainda a peito descoberto em razão de ser estudante de somenos categoria.

Contou-lhe mais que quem o recommendára ao academico Lemos fôra o major reformado José Maximo Pinto da Fonseca Rangel, seu padrinho e parente, que de uma quinta de Traz-os-Montes tivera de evadir-se para Hespanha, por estar implicado na mallograda revolta constitucional de Lisboa.

Todo o seu desejo era vingar algum dia os trabalhos que o padrinho estava soffrendo por amor da liberdade.

Revelou a frei Simão que escrevêra uma óde em honra de Gomes Freire, e que a mandára ao padrinho para Hespanha.

Finalmente, segredou-lhe que occultava as suas ideias ao tio de Cezár, que não podia vêr liberaes, e que lh’as occultava porque gostava de vir passar com elle as férias.

N’este lance, calou José Maximo, discretamente, a razão capital por que preferia Cezár ao Fundão para passar as férias, a qual razão vinha a ser estar namorado de D. Anna de Vasconcellos, a mais linda entre todas as irmãs de frei Simão.

O frade comprehendeu José Maximo, e affeiçoou-se-lhe pela concomitancia de sentimentos liberaes, que os igualava em pontos de vista politicos, apesar do frade ser alguns annos mais velho que o estudante.

Frei Simão gostou do rapaz, poeta da liberdade aos vinte annos.

Mas Ignacio da Fonseca, o tio de José Maximo, surprehendendo-o uma vez a conversar com frei Simão, empoleirados ambos no muro de um atalho, berrou com o sobrinho, quando elle entrou em casa, e prohibiu-lhe expressamente que mantivesse relações com um sujeito de tão más ideias, disse Ignacio da Fonseca, e peiores sentimentos.

José Maximo, tendo inquadrada na alma ardente a imagem de D. Anna de Vasconcellos, só a ella via emquanto Ignacio da Fonseca berrava. E para evitar a contrariedade de ser expulso de Cezár, metteu-se debaixo dos pés do tio, attribuindo a um encontro casual a conversação no atalho.

—O que te disse elle? perguntava apopletico o lavrador. Havia de fallar-te d’esses marotos de Lisboa, raça infame de pedreiros-livres, corja maldita de maçons, que querem dar cabo da Santa Religião e d’El-Rei nosso senhor...

—Não fallamos de politica, meu tio, respondia José Maximo mentindo com quantos dentes tinha na bocca. Que me importa a mim a politica?

—Mas o que te esteve então elle dizendo?

—Contou-me historias dos frades de Alcobaça.

—Bonitas historias deviam ser essas! contadas por um frade impio, que abandonou a casa de Deus para vir ser vadio e espião na sua terra!

—Espião! exclamou involuntariamente José Maximo.

—Espião, sim, que se não pode dar um passo sem ser presentido por elle. Mas que tome cuidado, que assim como Gomes Freire e os outros estão com a vida por um fio, bem lhe pode acontecer o mesmo, e não se perde grande cousa.

—Eu ignorava que o tio não queria que fallasse com frei Simão. Mas para o futuro cumprirei as suas ordens.

—Eu sei lá! Tu foste levado á pia do baptismo por um maçon (referia-se ao major reformado Fonseca Rangel), tens o mesmo nome, podes ter tambem as mesmas manhas do teu padrinho. Mas põe os olhos n’elle, que lá anda a monte por Hespanha, por ser jacobino e cuspir na sagrada face de Jesus Christo.

—Meu padrinho fazia isso? perguntou José Maximo com inadvertida incredulidade.

—Pois o que fazem todos os pedreiros-livres, toda a cáfila dos maçons?! Se o não sabes, não o queiras saber, porque mettes a tua alma no inferno. Juizinho, sr. José Maximo, e não me ande por esses campos de Cezár a ler livros que não sei d’onde lhe vieram, nem a cochichar com o frade do Outeiro, que fez pacto com Satanaz. Que livros são esses que tu lês?

—São os meus livros de Coimbra, tio.

—Pensei que fossem de França ou de Hespanha... Estás em ferias, não estás? Pois descansa, e diverte-te. Pega n’uma espingarda e atira aos passaros. Isso é que é divertimento proprio de um rapaz, quando não tem que fazer.

José Maximo, logo que o tio voltou costas, foi esconder entalada n’uma trave do sótão a Folhinha do Père Gérard, publicação revolucionaria, vinda de França, de que um francez, Jacques Borel, havia mandado imprimir em Pariz doze mil exemplares, que, traduzidos em portuguez, foram expressamente destinados a Portugal.

Esse era o livro que elle, dias antes, andára lendo por disfarce nas circumvisinhanças do Outeiro, de modo a poder vêr de longe D. Anna de Vasconcellos, que de quando em quando chegava a uma das janellas empanadas por uma espêssa cortina de parietárias.

Elle bem tinha visto passar o tio, de enxada ao hombro, em direcção á presa, cujas aguas ia soltar para a réga.

Todo o cuidado de José Maximo, n’essa occasião, foi mostrar-se muito absorvido na leitura, para evitar que o tio podesse suspeitar que a cabeça de D. Anna José estava espreitando por sob as bambolinas da trepadeira.

Mas, se se livrou de um perigo, cahiu n’outro, porque Ignacio da Fonseca, se não suspeitou do namoro, desconfiou do livro.

Ainda bem que o lavrador lhe manifestou essa desconfiança, porque José Maximo preveniu-se escondendo a Folhinha do Père Gérard. Se Ignacio da Fonseca a tivesse podido haver á mão, decerto a teria ido mostrar ao abbade Moreira Maia ou ao padre Antonio Pinheiro, que lhe abririam os olhos sobre a inconveniencia de tal leitura,—uma peste revolucionaria.

O abbade Moreira Maia era um conservador sincero, mas tolerante, talvez porque a indole sentimental lhe amaciasse as convicções politicas. Era um poeta, que amava os versos e as flores. Posto gostasse de exteriorisar um grande respeito pelas tradições fidalgas, de exhibir pomposamente cavallos e lacaios, dedicava-se a cultivar os canteiros no jardim do presbyterio, jardim embonecado de estatuas mythologicas, com disticos em verso compostos pelo abbade.

Todos os dias Moreira Maia descia a escada de pedra do Passal para ir tratar das suas flores. Só depois de satisfeita essa predilecção artistica, vestia uma casaca de sêda verde, ultimava a sua toilette elegante de cavalleiro.

Quando sentia o tinir das ferraduras do cavallo impaciente no largo que se defronta com a egreja, e a meio do qual se levanta um cruzeiro, era que o abbade apparecia á varanda aberta, que então havia no Passal, calçando ainda as suas grandes luvas de anta.

Depois, de chicote debaixo do braço, apertando por ventura algum botão das luvas, descia a escada, e examinava o cavallo, que um lacaio segurava pela rédea.

Se não tinha qualquer observação a fazer, montava com firmeza, e lá ia, como se dizia então, fazer estremecer as pedras das ruas em Oliveira de Azemeis.

Este typo de abbade, dado a proezas equestres e venatorias, padre enxertado em sportman, foi muito vulgar n’aquelle tempo.

A sua toilette mundana era a casaca.

O famoso bispo santo de Bragança e Miranda, D. Antonio Luiz, que por esse tempo era assumpto de contradictorias opiniões, queixou-se em carta ao abbade de Rebordães de que, ao tomar conta da sua diocese, o commum da clerezia trazia casaca, salvos alguns raros ecclesiasticos, mais pios, que usavam uma chamarra aberta; e accrescentava que só á força de advertencias conseguira impôr o habito talar cerrado na forma dos canones.

Mas o bispo santo não fizera escola nem entre os prelados seus collegas, nem entre o clero de Bragança e outras dioceses. O que em geral os ecclesiasticos vestiam fóra da egreja era a casaca de sêda. O abbade Moreira Maia não singularisava, pois, uma excepção.

E, com a liberdade então permittida á sua classe, passava grandes temporadas longe da parochia, em festas de sport e distracções artisticas, sempre com um certo cunho de elegantes mundanidades.

Levava comsigo para as caçadas e demais excursões recreativas todos os seus lacaios, todos os criados de libré, em numero ostentoso.

Na abbadia ficava apenas uma criada velha, Gertrudes Magna, tia do padre Antonio Pinheiro, que ella havia creado de pequenino, e que o abbade escolhera como coadjuctor, para curar a parochia durante as suas longas e frequentes ausencias.

Este padre era um espirito concentrado, que fugia ao mundo. Vivia habitualmente no Passal de Cezár, mettido no seu quarto, entregue á leitura dos livros santos, e sempre prompto ao trabalho parochial, que o abbade tantas vezes declinava n’elle.

Vivia uma vida simples, frugal, inteiramente opposta á do abbade.

Era uma alma sincera, incapaz de odios, mas a quem causavam horror todos os inimigos da religião christã, suppostos ou verdadeiros.

Frei Simão, para elle, estava n’este caso. Horrorisava-o, porque era pedreiro-livre, segundo se dizia, e os pedreiros-livres, sobre não ter religião, insultavam-n’a.

Por sua parte, o abbade Moreira Maia não podia gostar, como realista que era, do frade constitucional do Outeiro. Mas não o detestava, porque o seu animo era avesso a perseguições facciosas e porque, respeitador da tradição das familias, reconhecia em frei Simão um homem de boa linhagem.

José Maximo, depois das explicações que tivera com o tio, resolveu escrever a frei Simão, communicando-lhe que Ignacio da Fonseca via com maus olhos que publicamente conversassem um com o outro. Contava-lhe o caso da Folhinha do Père Gérard. E pedia-lhe que continuasse a ser seu amigo, e a manter relações com elle, embora precisassem, d’ali em deante, occultar discretamente as suas entrevistas.

Para ser mais uma vez agradavel ao tio, José Maximo limpou uma espingarda velha que encontrou a um canto da casa, e foi caçar.

Completando o disfarce, o estudante disparava muitos tiros sempre que avistava Ignacio da Fonseca trabalhando nos campos com os criados.

O tio, ouvindo as detonações successivas, olhava para o ar e, como não visse passar caça, ria-se, e dizia para os criados:

—O diabo do rapaz entende tanto d’aquillo como de lagares de azeite!



A guerrilha de Frei Simão

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