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XXIII
A MORENA

Índice de conteúdo

Este romance é vulgar na Extremadura e Beira e nas duas provincias d’alêm do Tejo. Seguiu-se principalmente o exemplar vindo de Castello-branco, que era o mais amplo; mas approveitou-se de outras licções provinciaes o que foi necessario para lhe dar complemento. Transmittidas de bôcca em bôcca,—não me canso de o repisar—por tantas gerações, éstas coplas foram-se alterando com mutilações e interpolações graduaes, mas não constantes nem uniformes. O rustico menestrel de uma aldea tinha ás vezes pretenção de corrigir e enfeitar a singeleza dos primitivos cantares; outras, a avó velha que os recitava á lareira aos pasmados netinhos, cortava o que lhe parecia demais ou o que lhe esquecia; não poucas vezes, algum Macias namorado recorreu, na esterilidade de sua musa, ao bem parado d’este depósito commum, e, com mudanças de nomes e sitios, transformou a historia de uma antiga aventura em monumento moderno de suas glórias ou desgraças—como das mutiladas reliquias de um templo d’Isis se fazia nas eras byzantinas uma basilica de christãos; como de versos de Virgilio se compunham os celebrados centões; de pensamentos de Homero, de phrases de todos os poetas antigos, cozidos uns nos outros, se urdiam os poemas latinos de ha dois e tres seculos; como ainda até ha bem pouco tempo se escreviam tambem quasi todos os mesmos poemas vulgares. Dem desconto á simplicidade da obra e á inexperiencia do artista, e hão de achar a comparação exacta.

Fazia-se isto porêm desvairadamente em epochas e logares differentes; e d’aqui a necessidade de collacionar as tradições de uma provincia, de um districto, de uma aldea ás vezes, com as de outra.

No romance da ‘Morena’ não parecem descubrir-se vestigios de mui remota antiguidade: assim a adivinhar, deitá-lo-hia pelo seculo dezeseis. A elle sabe o mandar os escravos á fonte buscar agua, o manteo de cochonilha, e outras expressões que taes. Tem comtudo um certo sabor de originalidade no stylo, um tom familiar sem baixeza, um natural tam despido de todo o ornato, que lhe imprimem o cunho verdadeiro e inquestionavel da poesia primitiva de um povo. Quando quer que nascesse ésta flor singella, foi na serra inculta, foi entre o mato virgem das florestas, longe das formalidades da arte, das fataes tesoiras e indigestos adubos do jardineiro.

O assumpto é uma vulgar aventura d’aldea—d’essas que fez tam communs a devassidão dos mosteiros ruraes: isso mesmo a deixou porventura conservar na memoria dos homens como historia do que tinha sido, do que era e sería. Na última copla ha uma pincelada de mestre, dos mestres que faz a natureza, sublime de verdade e profunda de moral: ao incarar com a victima de sua profana leviandade, estendida n’uma tumba, o seductor riu-se, e o marido—diz o sincero trovador—o marido é que chorava!

Não se tomaram aqui liberdades de editor que restaura: é o quadro velho limpo, mas não repintado. Algumas camadas de côr postiça, que tinha porcima, cahiram ao lavar, e ficou mais claro o desenho original. Não foi preciso, como n’outros casos muitas vezes é, cozer a tella rasgada ou avivar o desenho summido: o fundo estava são e inteiro.

Nas collecções castelhanas não ha vestigio d’este romance; tenho-o por inteiramente portuguez e absolutamente popular.

A MORENA

Índice de conteúdo

Fui-me á porta da Morena[31],

Da Morena mal casada:

—‘Abre-me a porta, Morena,

Abre-m’a por tua alma!’

—‘Como te heide abrir a porta,

Meu frei João da minha alma,

Se tenho a menina ao peito

E meu marido á ilharga?’

Estando n’estas razões,

O marido que acordava:

—‘Que é isso, mulher minha[32],

A quem dás as tuas fallas?’

—‘Digo á môça do forno,

Que veio ver se amassava,

Se amassasse pão de leite,

Que lhe deitasse pouca agua.’

—‘Ergue-te, ó mulher minha,

Vai cuidar da tua casa;

Manda teus moços á lenha,

Teus escravos buscar agua.’

—‘Ergue-te d’ahi, marido,

Vai ao monte pela caça;

Não ha coelho mais certo

Do que é o da madrugada.’

O marido que sahia,

Morena que infeitava;

Seu manteo de cochonilha[33]

De dôze testões a vara,

Meia de seda incarnada

Que na perna lhe estalava,

Sua bengalla, na mão

Que mal no chão lhe tocava.

Foi-se direita ao convento,

Á portaria chegava.

O porteiro é frei João[34]

Que pela mão a tomava;

Levou-a á sua cella,

Muito bem a confessava...

Penitencia que lhe deu,

Logo alli mesmo a resava.

Á sahida do convento

O marido que a incontrava:

—‘D’onde vens, ó mulher minha,

Donde vens tam arraiada?’

—‘Venho de ouvir missa nova,

Missa nova bem cantada:

Disse-a o padre frei João,

Que assim venho consolada.’

—‘Consolar-te heide eu agora

Com a ponta d’esta espada...’[35]

Deu-lhe um golpe pelos peitos,

Deixou-a morta deitada.

—‘Não se me dá de morrer,

Que o morrer não custa nada;

Da-se-me da minha filha,

Que a não deixo desmamada!’

—‘Fôras tu melhor mãe que es,

Não fôras tam mal casada,

Não havias de morrer

D’esta morte desastrada.’

Levavam-n’a ao convento,

N’uma tumba amortalhada:

Surria-se o frei João,

E o marido... é quem chorava.

Romanceiro III

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