Читать книгу Romanceiro III - João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett Visconde de Almeida Garrett - Страница 11
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A MORENA
Este romance é vulgar na Extremadura e Beira e nas duas provincias d’alêm do Tejo. Seguiu-se principalmente o exemplar vindo de Castello-branco, que era o mais amplo; mas approveitou-se de outras licções provinciaes o que foi necessario para lhe dar complemento. Transmittidas de bôcca em bôcca,—não me canso de o repisar—por tantas gerações, éstas coplas foram-se alterando com mutilações e interpolações graduaes, mas não constantes nem uniformes. O rustico menestrel de uma aldea tinha ás vezes pretenção de corrigir e enfeitar a singeleza dos primitivos cantares; outras, a avó velha que os recitava á lareira aos pasmados netinhos, cortava o que lhe parecia demais ou o que lhe esquecia; não poucas vezes, algum Macias namorado recorreu, na esterilidade de sua musa, ao bem parado d’este depósito commum, e, com mudanças de nomes e sitios, transformou a historia de uma antiga aventura em monumento moderno de suas glórias ou desgraças—como das mutiladas reliquias de um templo d’Isis se fazia nas eras byzantinas uma basilica de christãos; como de versos de Virgilio se compunham os celebrados centões; de pensamentos de Homero, de phrases de todos os poetas antigos, cozidos uns nos outros, se urdiam os poemas latinos de ha dois e tres seculos; como ainda até ha bem pouco tempo se escreviam tambem quasi todos os mesmos poemas vulgares. Dem desconto á simplicidade da obra e á inexperiencia do artista, e hão de achar a comparação exacta.
Fazia-se isto porêm desvairadamente em epochas e logares differentes; e d’aqui a necessidade de collacionar as tradições de uma provincia, de um districto, de uma aldea ás vezes, com as de outra.
No romance da ‘Morena’ não parecem descubrir-se vestigios de mui remota antiguidade: assim a adivinhar, deitá-lo-hia pelo seculo dezeseis. A elle sabe o mandar os escravos á fonte buscar agua, o manteo de cochonilha, e outras expressões que taes. Tem comtudo um certo sabor de originalidade no stylo, um tom familiar sem baixeza, um natural tam despido de todo o ornato, que lhe imprimem o cunho verdadeiro e inquestionavel da poesia primitiva de um povo. Quando quer que nascesse ésta flor singella, foi na serra inculta, foi entre o mato virgem das florestas, longe das formalidades da arte, das fataes tesoiras e indigestos adubos do jardineiro.
O assumpto é uma vulgar aventura d’aldea—d’essas que fez tam communs a devassidão dos mosteiros ruraes: isso mesmo a deixou porventura conservar na memoria dos homens como historia do que tinha sido, do que era e sería. Na última copla ha uma pincelada de mestre, dos mestres que faz a natureza, sublime de verdade e profunda de moral: ao incarar com a victima de sua profana leviandade, estendida n’uma tumba, o seductor riu-se, e o marido—diz o sincero trovador—o marido é que chorava!
Não se tomaram aqui liberdades de editor que restaura: é o quadro velho limpo, mas não repintado. Algumas camadas de côr postiça, que tinha porcima, cahiram ao lavar, e ficou mais claro o desenho original. Não foi preciso, como n’outros casos muitas vezes é, cozer a tella rasgada ou avivar o desenho summido: o fundo estava são e inteiro.
Nas collecções castelhanas não ha vestigio d’este romance; tenho-o por inteiramente portuguez e absolutamente popular.
A MORENA
Fui-me á porta da Morena[31],
Da Morena mal casada:
—‘Abre-me a porta, Morena,
Abre-m’a por tua alma!’
—‘Como te heide abrir a porta,
Meu frei João da minha alma,
Se tenho a menina ao peito
E meu marido á ilharga?’
Estando n’estas razões,
O marido que acordava:
—‘Que é isso, mulher minha[32],
A quem dás as tuas fallas?’
—‘Digo á môça do forno,
Que veio ver se amassava,
Se amassasse pão de leite,
Que lhe deitasse pouca agua.’
—‘Ergue-te, ó mulher minha,
Vai cuidar da tua casa;
Manda teus moços á lenha,
Teus escravos buscar agua.’
—‘Ergue-te d’ahi, marido,
Vai ao monte pela caça;
Não ha coelho mais certo
Do que é o da madrugada.’
O marido que sahia,
Morena que infeitava;
Seu manteo de cochonilha[33]
De dôze testões a vara,
Meia de seda incarnada
Que na perna lhe estalava,
Sua bengalla, na mão
Que mal no chão lhe tocava.
Foi-se direita ao convento,
Á portaria chegava.
O porteiro é frei João[34]
Que pela mão a tomava;
Levou-a á sua cella,
Muito bem a confessava...
Penitencia que lhe deu,
Logo alli mesmo a resava.
Á sahida do convento
O marido que a incontrava:
—‘D’onde vens, ó mulher minha,
Donde vens tam arraiada?’
—‘Venho de ouvir missa nova,
Missa nova bem cantada:
Disse-a o padre frei João,
Que assim venho consolada.’
—‘Consolar-te heide eu agora
Com a ponta d’esta espada...’[35]
Deu-lhe um golpe pelos peitos,
Deixou-a morta deitada.
—‘Não se me dá de morrer,
Que o morrer não custa nada;
Da-se-me da minha filha,
Que a não deixo desmamada!’
—‘Fôras tu melhor mãe que es,
Não fôras tam mal casada,
Não havias de morrer
D’esta morte desastrada.’
Levavam-n’a ao convento,
N’uma tumba amortalhada:
Surria-se o frei João,
E o marido... é quem chorava.