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XXI
DOM JOÃO

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O assumpto d’este romance é um casamento á hora da morte, uma d’aquellas tardias mas solemnes reparações que a religião, a honra, o amor tantas vezes têem arrancado á consciencia do moribundo.

Os preconceitos de nascimento luctam, poderosos ainda n’esse momento extremo, com os deveres da religião, com os sentimentos d’alma, com os mesmos dictames da verdadeira honra. Oiro é a primeira coisa que o fidalgo expirante se lembra de deixar á infeliz donzella,—infelix virgo!—em compensação da sua honra perdida. ‘Mil cruzados’ lhe deixa: falta ahi villão que a queira, burguez que a requeste e cubra de seu nome vulgar a doirada fragilidade de uma menina tam bem dotada por seu senhor e seductor?

‘Mil cruzados não é nada’: lhe objectam.—‘Pois darei mais duzentos’: regateia a suberba agonizante.—‘A honra não se paga aos cruzados.’—‘Pois, terras, villas, senhorios e castellos a quem casar com ella. Ha tanto escudeiro e cavalleiro pobre! Casar com a manceba de seu senhor, e senhor tam generoso, quem hade recusá-lo? E para o que duvidasse... argumento de rei velho e de republicano novo: Tenha a cabeça cortada!’

Forte é o orgulho que assim lucta, quando ja na beira do sepulchro. Tenaz o preconceito que ainda agora fez mentir villanmente o cavalleiro pundonoroso, quando, n’uma derradeira esperança de vida, falsamente promettia á inganada donzella ‘as bençãos de um arcebispo e a estolla da sancta egreja’. Vivesse elle, e taes promessas se cumpririam tanto como as primeiras que a seduziram. Porêm mais forte é a piedade, a honra verdadeira de quem, até o último, combate esse vão orgulho, esse falso pundonor. Era sua mãe; não a mãe da desgraçada, que o não ousaria se viva era—que por ventura foi morrer de vergonha a um canto.—Não, mas sua propria mãe d’elle, do moribundo. Verdadeira mulher de alma e de coração, tudo o mais lhe esquece e despreza, e não vê na infeliz, que alli está debulhada em lagrymas junto ao leito da agonia, senão uma mulher; uma mulher que é victima de seu amor, que tudo quanto era deu a quem tudo lhe quer pagar com tam pouco.

A mulher triumphou. As últimas palavras do vencido são bellas:

—‘Pois fique ésta mão ja fria

Na ma mão adorada.

De Dom João é viuva,

Condessa será chamada.’

Estes grandes quadros desenhados em poucos traços, vivos só de verdade e natureza, são—não me canço de o fazer notar—os que dão á poesia do romance este vigor que se não acha n’outras, este character que a distingue em todas as nações, em todas as linguas.

Mais adeantada civilização trará poetas que inluminem, que repintem a côres estes simples desenhos a lapis do menestrel. Mas crear não hãode elles nunca, se não fecharem os livros escriptos, para abrirem o do coração, para estudar por elle o homem, a natureza que o cria, e o Deus que o fez.

O presente romance veio-me do Minho; variantes notaveis não me appareceram; nas collecções castelhanas não está; e não o creio—isto é, não o presinto mais antigo do que o seculo XV ou principios do XVI.

DOM JOÃO

Índice de conteúdo

Lá das bandas de Castella

Triste nova era chegada:

Dom João que vem doente,

Mal pezar de sua amada!

São chamados tres doutores

Dos que têem mais nomeada:

Que, se algum lhe désse vida

Teria paga avultada.

Chegaram os dois mais novos,

Dizem que não era nada;

Porfim que chega o mais velho,

Diz com voz desinganada:

—‘Tendes tres horas de vida,

E uma está meia passada;

Essa é para o testamento:

Deixar a alma incommendada!

A outra é para os sacramentos,

Que inda é mais bem impregada.

Na terceira as despedidas

Da vossa dama adorada.’

Estando n’estas conversas,

Dona Isabel que é chegada.

Ergueu os olhos para ella

Com a vista ja turvada:

—‘Ainda bem que vieste,

Minha prenda desejada,

Que tanto queria ver-te

N’esta hora minguada!’

—‘Tenho fe na Virgem sancta,

N’ella venho confiada,

Que me hade ouvir e salvar-te,

Que o teu mal não será nada.’

—‘Oh! que se eu chegar a erguer-me,

Minha rosa namorada,

No vaso d’este meu peito

P’ra sempre serás plantada,

Co’as bençaos de um arcebispo

E de agua benta regada,

Co’a estolla da sancta egreja

Ao meu coração atada.’

Estando n’estas conversas,

Sua mãe que era chegada:

—‘Que tens tu, filho querido

D’esta alma amargurada?’

—‘Tenho, mãe, que estou morrendo,

Que ésta vida está acabada;

Com só tres horas por minhas,

E uma ja meio passada.’

—‘Filho de minhas intranhas,

N’esta hora minguada

Lembra-te se algo deves

A alguma dama honrada.’

—‘Minha mãe, que devo, devo...

E Deus me não peça nada!

Dona Isabel que em má hora

Por mim fica diffamada.

Mas deixo-lhe mil cruzados

Para que seja casada.’

—‘A honra não se paga, filho;

Mil cruzados não é nada.’

—‘Ja lhe deixo mais duzentos

E a cruz de minha espada.’

—‘A honra não se paga, filho;

Os cruzados não são nada.’

—‘Deixo-a a estes tres doutores

Muito bem incommendada;

E a vós, minha mãe, vos peço

Que a tenhais bem guardada.

O que com ella casar

Tem uma villa ganhada;

O que lhe disser que não

Tenha a cabeça cortada,’

—‘A honra não se paga, filho;

Nem com terras é comprada:

Se a essa dama lhe queres,

Não a deixes deshonrada!’

-—‘Pois fique esta mão ja fria

Na sua mão adorada:

De D. João é viuva,

Condessa será chamada.’

Romanceiro III

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