Читать книгу Romanceiro III - João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett Visconde de Almeida Garrett - Страница 9
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DOM JOÃO
O assumpto d’este romance é um casamento á hora da morte, uma d’aquellas tardias mas solemnes reparações que a religião, a honra, o amor tantas vezes têem arrancado á consciencia do moribundo.
Os preconceitos de nascimento luctam, poderosos ainda n’esse momento extremo, com os deveres da religião, com os sentimentos d’alma, com os mesmos dictames da verdadeira honra. Oiro é a primeira coisa que o fidalgo expirante se lembra de deixar á infeliz donzella,—infelix virgo!—em compensação da sua honra perdida. ‘Mil cruzados’ lhe deixa: falta ahi villão que a queira, burguez que a requeste e cubra de seu nome vulgar a doirada fragilidade de uma menina tam bem dotada por seu senhor e seductor?
‘Mil cruzados não é nada’: lhe objectam.—‘Pois darei mais duzentos’: regateia a suberba agonizante.—‘A honra não se paga aos cruzados.’—‘Pois, terras, villas, senhorios e castellos a quem casar com ella. Ha tanto escudeiro e cavalleiro pobre! Casar com a manceba de seu senhor, e senhor tam generoso, quem hade recusá-lo? E para o que duvidasse... argumento de rei velho e de republicano novo: Tenha a cabeça cortada!’
Forte é o orgulho que assim lucta, quando ja na beira do sepulchro. Tenaz o preconceito que ainda agora fez mentir villanmente o cavalleiro pundonoroso, quando, n’uma derradeira esperança de vida, falsamente promettia á inganada donzella ‘as bençãos de um arcebispo e a estolla da sancta egreja’. Vivesse elle, e taes promessas se cumpririam tanto como as primeiras que a seduziram. Porêm mais forte é a piedade, a honra verdadeira de quem, até o último, combate esse vão orgulho, esse falso pundonor. Era sua mãe; não a mãe da desgraçada, que o não ousaria se viva era—que por ventura foi morrer de vergonha a um canto.—Não, mas sua propria mãe d’elle, do moribundo. Verdadeira mulher de alma e de coração, tudo o mais lhe esquece e despreza, e não vê na infeliz, que alli está debulhada em lagrymas junto ao leito da agonia, senão uma mulher; uma mulher que é victima de seu amor, que tudo quanto era deu a quem tudo lhe quer pagar com tam pouco.
A mulher triumphou. As últimas palavras do vencido são bellas:
—‘Pois fique ésta mão ja fria
Na ma mão adorada.
De Dom João é viuva,
Condessa será chamada.’
Estes grandes quadros desenhados em poucos traços, vivos só de verdade e natureza, são—não me canço de o fazer notar—os que dão á poesia do romance este vigor que se não acha n’outras, este character que a distingue em todas as nações, em todas as linguas.
Mais adeantada civilização trará poetas que inluminem, que repintem a côres estes simples desenhos a lapis do menestrel. Mas crear não hãode elles nunca, se não fecharem os livros escriptos, para abrirem o do coração, para estudar por elle o homem, a natureza que o cria, e o Deus que o fez.
O presente romance veio-me do Minho; variantes notaveis não me appareceram; nas collecções castelhanas não está; e não o creio—isto é, não o presinto mais antigo do que o seculo XV ou principios do XVI.
DOM JOÃO
Lá das bandas de Castella
Triste nova era chegada:
Dom João que vem doente,
Mal pezar de sua amada!
São chamados tres doutores
Dos que têem mais nomeada:
Que, se algum lhe désse vida
Teria paga avultada.
Chegaram os dois mais novos,
Dizem que não era nada;
Porfim que chega o mais velho,
Diz com voz desinganada:
—‘Tendes tres horas de vida,
E uma está meia passada;
Essa é para o testamento:
Deixar a alma incommendada!
A outra é para os sacramentos,
Que inda é mais bem impregada.
Na terceira as despedidas
Da vossa dama adorada.’
Estando n’estas conversas,
Dona Isabel que é chegada.
Ergueu os olhos para ella
Com a vista ja turvada:
—‘Ainda bem que vieste,
Minha prenda desejada,
Que tanto queria ver-te
N’esta hora minguada!’
—‘Tenho fe na Virgem sancta,
N’ella venho confiada,
Que me hade ouvir e salvar-te,
Que o teu mal não será nada.’
—‘Oh! que se eu chegar a erguer-me,
Minha rosa namorada,
No vaso d’este meu peito
P’ra sempre serás plantada,
Co’as bençaos de um arcebispo
E de agua benta regada,
Co’a estolla da sancta egreja
Ao meu coração atada.’
Estando n’estas conversas,
Sua mãe que era chegada:
—‘Que tens tu, filho querido
D’esta alma amargurada?’
—‘Tenho, mãe, que estou morrendo,
Que ésta vida está acabada;
Com só tres horas por minhas,
E uma ja meio passada.’
—‘Filho de minhas intranhas,
N’esta hora minguada
Lembra-te se algo deves
A alguma dama honrada.’
—‘Minha mãe, que devo, devo...
E Deus me não peça nada!
Dona Isabel que em má hora
Por mim fica diffamada.
Mas deixo-lhe mil cruzados
Para que seja casada.’
—‘A honra não se paga, filho;
Mil cruzados não é nada.’
—‘Ja lhe deixo mais duzentos
E a cruz de minha espada.’
—‘A honra não se paga, filho;
Os cruzados não são nada.’
—‘Deixo-a a estes tres doutores
Muito bem incommendada;
E a vós, minha mãe, vos peço
Que a tenhais bem guardada.
O que com ella casar
Tem uma villa ganhada;
O que lhe disser que não
Tenha a cabeça cortada,’
—‘A honra não se paga, filho;
Nem com terras é comprada:
Se a essa dama lhe queres,
Não a deixes deshonrada!’
-—‘Pois fique esta mão ja fria
Na sua mão adorada:
De D. João é viuva,
Condessa será chamada.’