Читать книгу O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton - Страница 22
ATRAVÉS DA JANELA, ÀS ESCURAS
ОглавлениеEichmann afastou o relatório que estava a redigir, com o qual Hagen, o seu novo chefe, ficaria com o mérito, se o houvesse. Outro farsante a aproveitar-se da experiência sólida de Eichmann. Abriu a janela e inalou o ar outonal enquanto o comboio atravessava o porto de Itália até à Áustria. Vomitara tanto enquanto atravessavam o Mediterrâneo do Médio Oriente até Brindisi a bordo do Palestina que o médico da enfermaria tentara tirá-lo do barco em Rodes. A viagem inteira fora um fracasso absoluto: Um mês inteiro de viagem para que, no fim, os britânicos só lhes permitissem passar vinte e quatro horas em Haifa e as autoridades do Cairo lhes negassem os vistos para a Palestina. Doze longos dias no Egito, fora a única coisa que tinham conseguido.
— Os judeus defraudam-se uns aos outros, essa é a base do caos financeiro da Palestina.
— Talvez seja mais efetivo dar dados específicos, senhor — replicou Eichmann. — Quarenta banqueiros judeus em Jerusalém.
— Quarenta banqueiros judeus e vigaristas — concordou Hagen. — Claro, outros cinquenta mil judeus emigrariam anualmente com o espólio que o Polkes pensa que devíamos dar-lhes.
Polkes, o único contacto real que tinham feito durante a viagem, sugerira que, se a Alemanha realmente queria livrar-se dos judeus, devia permitir-lhes levar mil libras britânicas para emigrar para a Palestina. Fora assim que o judeu o expressara: «Mil libras britânicas», como se os marcos alemães fossem inomináveis.
Eichmann escreveu no relatório: «O nosso objetivo não é que o capital judeu se transfira para o Reich, mas fazer com que os judeus que não têm meios emigrem.»
Partiu o lápis, incapaz de suportar a pressão dos seus pensamentos. Tirou a navalha do bolso, pensando na madrasta, fria e austera, cuja família em Viena se casara com judeus ricos, daqueles que não estariam dispostos a ir-se embora sem as suas riquezas ilícitas.
— Eu cresci aqui, em Linz — disse a Hagen, quando o comboio chegou ao topo de uma colina e as árvores se dispersaram para deixar ver a Áustria. O frio que sentia na cara naquele momento parecia-se com o frio de correr com o seu amigo Mischa Sebba por uns bosques parecidos com aquele, o vazio era como o das suas próprias mãos quando os pais entrelaçaram os dedos com os dos irmãos mais novos enquanto atravessavam a plataforma na estação de Linz, quando a família se encontrara depois de passarem um ano separados. Então, ele tinha oito anos e dez quando a voz suave da mãe deu lugar à da madrasta, que lhes lia passagens da Bíblia no apartamento estreito do número 3 de Bischof Strasse. Há quatro anos que não ia a casa, quatro anos desde a última vez que visitara o túmulo da sua mãe.
— Passava dias inteiros a montar a cavalo por campos como este — disse a Hagen. Montara principalmente com Mischa, que o ensinara a localizar os veados, a reproduzir o som de todo o tipo de pássaros e a pôr um preservativo muito antes de Eichmann pensar que a ideia de introduzir o pénis dentro de uma rapariga poderia ser mais do que simplesmente ridículo. Ainda recordava o desprezo na voz de Mischa ao descobrir o nome do seu grupo de exploradores Wandervögel: «Grifo? É uma espécie de pássaro que se extinguiu antes de os nossos avós nascerem, um abutre que se alimentava da carne dos mortos.» Mischa estava ciumento, claro. Não podia juntar-se aos rapazes mais velhos para passar os fins de semana a fazer passeios, com o uniforme e as bandeiras, porque era judeu.
Eichmann começou a afiar a ponta do lápis.
— Sou um bom cavaleiro — comentou. — Aprendi a disparar em bosques como este com o meu melhor amigo, Friedrich von Schmidt. A mãe era condessa e o pai era um herói de guerra.
Friedrich convidara-o para se juntar à Associação de Jovens Veteranos Austro-Alemães e tinham ido juntos à sua formação paramilitar. Contudo, Mischa continuara a ser o seu melhor amigo, mesmo depois de Eichmann se juntar ao partido, no dia 1 de abril de 1932. O membro 899 895. Continuara unido a Mischa, embora cada vez discutisse mais com ele, até a Áustria fechar as Camisas Castanhas nazis e a empresa Vacuum Oil o despedir unicamente pelas suas ideias políticas. Tivera de pôr as botas e o uniforme numa mala e atravessar a fronteira da Áustria para a Alemanha, em busca da segurança de Passau.
— Não vamos financiar a Palestina com capital alemão, nem sequer capital alemão judeu.
Eichmann desviou o olhar da paisagem, devolveu a atenção ao relatório e escreveu: «Dado que a emigração acima mencionada de 50 000 judeus anuais reforçaria o judaísmo na Palestina, este plano não pode ser motivo de discussão.»