Читать книгу O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton - Страница 31
KIPFERL E CHOCOLATE QUENTE VIENENSE
ОглавлениеEm Michaelerplatz, à frente da Hofburgkapelle e do palácio, estava um dia brilhante, ensolarado e frio e, por todo o lado, havia panfletos e cartazes que proclamavam «Claro!» e «Com o Schuschnigg por uma Áustria livre!», ou «Vota Sim» no plebiscito que o chanceler Schuschnigg convocara para decidir se a Áustria devia continuar a ser independente da Alemanha. Nas paredes dos edifícios e nas calçadas, tinham pintado cruzes brancas da Frente da Pátria Austríaca, o partido do chanceler. As multidões e os grupos juvenis entoavam «Heil Schuschnigg», «Heil liberdade» e «Vermelho, branco, vermelho até à morte!», enquanto os outros gritavam «Heil Hitler!».
Žofie tentava ignorá-los a todos. Tentava agarrar-se à música e à matemática que ainda se misturavam no seu interior enquanto percorria a Herrengasse com Stephan para o Café Central. Se os gritos da multidão incomodavam Stephan, não disse nada, embora não tivesse dito nada desde que começara a música na capela. Žofie supunha que aquela melodia mudara o seu mundo de palavras, tal como mudara o seu mundo de números e símbolos. Imaginava que fora por isso que se tinham tornado tão bons amigos, embora Stephan conhecesse outros há muito mais tempo do que a conhecia, porque a escrita dele era como a matemática dela num sentido que ambos entendiam, ainda que, na verdade, não tivesse sentido.
Estavam a empurrar as portas de vidro do Café Central quando Stephan falou finalmente. Agora, tinha os olhos secos, ainda que, na capela, tivessem humedecido, o que ela imaginava que o teria envergonhado à frente dos seus amigos do café.
— Imagina, Žofe, se eu conseguisse escrever uma coisa dessas — replicou.
Para além da vitrina dos bolos, no outro extremo do café, os seus amigos estavam sentados em torno de duas mesas juntas do lado das estantes da imprensa, já reunidos à espera de Stephan.
— Mas escreves peças de teatro, não música — indicou Žofie.
Stephan deu-lhe um empurrão suave no ombro, como costumava fazer ultimamente. Žofie sabia que o fazia a modo de brincadeira, mas, mesmo assim, adorava sentir a sua carícia.
— Tão asquerosamente brilhante, tão tecnicamente correta… E tão abismalmente errada — redarguiu. — A música não, idiota. Uma obra que emocionasse as pessoas dessa forma.
— Mas…
«Mas consegues fazê-lo, Stephan.»
Žofie não soube porque parou antes de dizer aquelas palavras em voz alta, tal como não sabia porque não dera a mão a Stephan na capela. Talvez pudesse ter-lhe dito lá, no silêncio depois da música, como lhe falara do colar. Ou talvez não. Era avassalador aperceber-se de que conhecia alguém que poderia fazer algo tão mágico como aquilo algum dia, se continuasse a entrelaçar palavras, a criar histórias e a ajudar os outros a torná-las realidade. Era avassalador pensar que as suas obras talvez acabassem por se representar no Burgtheater algum dia, que as suas palavras se recitariam à frente de um público que riria ou choraria e que, no fim, se levantaria e aplaudiria, como o público fazia nas melhores peças, aquelas que os arrancavam de um mundo e os deixavam noutro que nem sequer existia realmente. Ou existia, mas só na imaginação dos que viam a peça, só durante aquelas poucas horas na escuridão. O paradoxo do teatro: Real e irreal ao mesmo tempo.
* * *
Stephan queria pedir a Dieter para se mudar para o banco do fundo para poder sentar-se junto de Žofie, para continuar perto dela e da música do coro e do sentimento, da esperança que surgira no seu interior ao partilhar aquela música com ela. Se não tivesse vindo com ele à leitura da sua peça, teria agarrado no seu diário e teria ido diretamente da capela para o Café Landtmann ou melhor ainda, para o Griensteidl, onde ninguém o interromperia. Teria afundado os dedos nas palavras, para melhorar alguma das suas peças ou para começar uma nova. Porém, Dieter levantou-se para segurar a cadeira a Žofie. Tinham combinado encontrar-se para ler a peça de Stephan. Todos deviam conseguir ouvir por cima do barulho: A mesa do lado estava a meio de uma discussão acalorada sobre um exemplar da Neue Freie Presse que a tia Lisl lia às vezes e os jogadores de xadrez do outro lado também discutiam. Todos no café pareciam estar a especular sobre se a Áustria iria para a guerra com a Alemanha ou quando seria. De modo que Stephan ocupou o seu lugar habitual e pediu kaffee mit schlag e strudel de maçã. Depois, pediu ao empregado de mesa para trazer para Žofie — que dissera que não tinha fome — um kipferl e chocolate vienense, uma extravagância para ela que não era para ele e para o resto dos seus amigos.