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A TEORIA DO CAOS

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Stephan observou, nervoso, enquanto Žofie-Helene abria a porta lateral do Burgtheater com a chave que tirara do bolso do casaco do avô.

— Não devíamos estar aqui — disse Dieter.

— O Stephan poderá ver as cenas da sua própria peça representadas num palco a sério — insistiu Žofie-Helene, enquanto os guiava pelo corredor para o teatro. — Tal como o seu herói, o Stefan Zweig.

— Vamos meter-nos numa confusão se nos apanharem — insistiu Dieter.

— Pensei que gostavas de confusões, Dieter — replicou Žofie-Helene.

Deixou o casaco e o cachecol num dos bancos da última fila do teatro e, depois, desapareceu para o vestíbulo sem dar explicações.

— Pensei que gostavas de confusões, Dieter — sussurrou Stephan ao amigo.

— Só das confusões com as raparigas.

— Não te meteste em nenhuma confusão com raparigas, Dieterrotzni.

— Ah, não? Se queres beijar uma rapariga, fá-lo de uma vez, Stephan. E tu é que és um pirralho.

Acendeu-se uma luz no palco e Stephan assustou-se. Baixou ainda mais o tom de voz e disse:

— Não podes beijar uma rapariga sem mais nem menos.

— Elas querem que seja assim. Querem um homem que tenha o controlo. Querem que as lisonjeies e as beijes.

Žofie-Helene apareceu no palco. Como chegara até lá?

— «A questão agora baseia-se na hemoglobina» — replicou, recitando uma frase da sua nova peça. — «Sem dúvida, entenderão a importância desta minha descoberta.»

Quando Stephan e Dieter ficaram no corredor, a olhar para ela, acrescentou:

— Vá lá, Deet. Não memorizaste as tuas frases?

Dieter hesitou, mas tirou o casaco, percorreu o corredor e subiu para o palco. Recitou:

— «É interessante, sem dúvida, mas…»

— «É interessante, quimicamente, sem dúvida», Deet — corrigiu Stephan. — Não consegues recordar uma simples frase? — O seu nervosismo estava a transmitir-se para Dieter, embora bem pudesse ter estado zangado com Žofie. Mas como poderia estar zangado com uma rapariga que desejava dar-lhe o presente de ver a sua peça representada no palco do Burgtheater?

— Significa o mesmo — respondeu Dieter.

— É uma homenagem ao Sherlock Holmes, Deet — indicou Žofie-Helene. — Não funciona como homenagem se não disseres as palavras com exatidão.

Stephan percorreu o corredor, no caso de dever ocupar um banco perto do palco. Não era isso que os encenadores faziam?

— O Sherlock Holmes é um homem — disse Dieter. — Continuo sem entender como uma rapariga detetive pode honrá-lo.

— É mais interessante com uma rapariga detetive porque é inesperado — explicou Žofie-Helene. — Além disso, li todas as histórias do Sherlock Holmes e tu não leste nenhuma.

Dieter esticou a mão e tocou-lhe na face.

— Isso é porque és muito mais inteligente do que o Stephan e do que eu e mais bonita, minha pequena mausebär — redarguiu, usando a alcunha do primeiro ato de Stephan.

Stephan supôs que Žofie-Helene se riria de Dieter, mas só corou e olhou para ele, antes de pousar o olhar nas tábuas do palco. Não deveria ter dado a Dieter o papel de Selig para que o interpretasse junto da Zelda de Žofie-Helene, mas Dieter era o único com a arrogância suficiente para o fazer bem. Stephan tentara misturar uma detetive do tipo de Sherlock Holmes, a Zelda mulher, com uma personagem um pouco como o médico de Amok, de Zweig, um rapaz obcecado com uma rapariga que não estava interessada nele. No entanto, ele não entendia exatamente Amok e, quando perguntara ao pai porque a mulher pensava que o médico poderia ajudá-la com o bebé que não desejava, o pai respondera, com brusquidão: «És um homem de caráter, Stephan. Nunca te verás na situação de ter um bebé que não devias ter.»

Dieter levantou o queixo a Žofie e beijou-a nos lábios. Ela recebeu o beijo com um certo torpor, mas, depois, foi como se se fundisse com ele.

Stephan virou-lhes as costas, fingindo que estava distraído a escolher um lugar onde pudesse sentar-se, enquanto murmurava:

— É uma peça de mistério, não uma história de amor, palerma.

Sentou-se e olhou para eles. Por sorte, já não estavam a beijar-se, embora Žofie tivesse as faces coradas.

— Žofe — disse —, começa com a frase sobre como o Dieter é tolo.

— Sobre como o Selig é parvo? — perguntou Žofie.

— Não foi o que disse? Se todos vão repetir o que digo, nunca conseguiremos chegar ao fim.

Estavam a ensaiar há duas cenas e os relógios de Viena tinham acabado de dar as sete quando Žofie ouviu alguma coisa. A buzina de um carro? Aplausos à frente do teatro? Era o que parecia: O barulho amortecido da multidão a aplaudir e os carros a buzinar. Olhou para Stephan do palco. Sim, ele também ouvira.

Os três agarraram nos seus casacos e correram para as portas da entrada do teatro, à medida que o alvoroço aumentava. Quando empurraram as portas para as abrir, o barulho tornou-se ensurdecedor. Viena estava cheia de soldados das SA com as suas armas, homens com braceletes de suásticas, jovens agarrados a camiões com suásticas pintadas que percorriam a Ringstrasse e que atravessavam a universidade e a câmara municipal e passavam junto deles, à frente do teatro. No entanto, não havia motins. Estavam todos alegres. Todos gritavam: «Ein Volk, ein Reich, ein Führer!» e «Heil Hitler, Sieg Heil!» e «Juden verrecken!» Morte aos judeus.

Žofie estudou a multidão em busca da mãe enquanto os três se retiravam novamente para as sombras da entrada do teatro. Essa devia ser a razão por que o avô tivera de ficar com Jojo e com ela naquela noite enquanto a mãe saía, mas de que se tratava? De onde saíra tudo aquilo? Os camiões pintados. As suásticas coladas aos candeeiros. Os braceletes. A multidão. Não podiam ter-se materializado do nada. Zero mais zero mais zero repetido até ao infinito continuava a ser zero.

Uns rapazes ao fundo da rua começaram a pintar na montra de uma loja: Suásticas, caveiras e ossos cruzados. E a palavra «Juden».

— Olha, Stephan — observou Dieter. — São o Helmut e o Frank, da escola! Vamos!

— Devíamos levar a Žofie-Helene a casa, Deet — indicou Stephan.

Dieter olhou para Žofie, expectante, com a mesma emoção no olhar do que daquela vez em que Jojo tivera tanta febre que começara a chamá-la «papá», embora só conhecesse o pai através de fotografias e histórias, porque morrera antes de ela nascer.

— Eu levo-a a casa, Deet — ofereceu-se Stephan. — Encontro-me contigo depois.

Stephan e ela recuaram ainda mais para as sombras enquanto Dieter descia os degraus do teatro a correr, em direção a um grupo de nazis que avançava para um idoso que saiu de um edifício para proteger a sua montra. Um soldado das SA começou a gozar com o homem e os outros imitaram-no. Um deles deu um murro no estômago do pobre idoso e este dobrou-se de dor.

— Meu Deus! — exclamou Stephan. — Devíamos ajudá-lo.

O homem já desaparecera por baixo dos soldados.

Žofie desviou o olhar e reparou nuns homens que içavam uma bandeira nazi no Parlamento austríaco, sem que ninguém os detivesse: Sem polícia, sem exército ou sequer o povo de Viena. Aquelas eram as boas pessoas de Viena? Todas aquelas pessoas que gritavam o seu apoio a Hitler, esses jovens que podiam ter espreitado para a montra da loja para ver a maqueta do comboio no Natal?

— Não conseguiremos chegar a casa pela rua — disse a Stephan.

Caos. Era a única coisa que nem sequer os matemáticos conseguiam prever.

Com uma tesoura que encontrou na barbearia do avô sem acender a luz, Žofie tentou abrir o ralo de ventilação que havia por baixo do espelho. Guiou Stephan pelas condutas que tinham percorrido no dia em que se tinham conhecido, até uma abertura que dava para o subsolo, que descobrira mais tarde. Nunca entrara porque tivera medo de se perder.

— Puf — disse, ao deixar-se cair na escuridão do buraco, muito mais abaixo do que imaginara.

Stephan também se deixou cair e Žofie procurou-o na escuridão e acalmou-se quando os seus dedos encontraram a manga da camisa dele. Apertou-lhe a mão. Novamente, calma e mais alguma coisa.

— E agora? Por onde? — perguntou.

— Não sabes?

— Nunca tinha descido para o subsolo, só contigo.

— Nunca estive nesta parte — indicou Stephan. — Bom, não podemos voltar a subir pelo teatro, não sem um escadote.

Continuaram a avançar juntos, ouvindo a destilação da água e o barulho de animais escorregadios que os assustavam na escuridão. Žofie tentou não pensar nos abusadores e assassinos de que Stephan lhe falara. Que alternativa tinham? Na rua, os abusadores e os assassinos tinham conquistado tudo.

* * *

O barulho da multidão era distante, mas Stephan ainda ouvia a buzina dos carros e os «Heil Hitler» repetidos várias vezes quando emergiram do subsolo através da entrada de esgoto octogonal situada perto do apartamento de Žofie. Levantou primeiro um triângulo ligeiramente para espreitar e verificar se aquela rua lateral era segura.

Ao chegar à porta do seu prédio, Žofie pôs a chave na fechadura. «Tem cuidado ao voltar a casa, está bem?», disse a Stephan. Depois, deu-lhe um beijo na face e desapareceu no interior, deixando-o com a carícia dos seus óculos contra a pele, o calor da sua face e a humidade suave dos seus lábios.

No entanto, beijara o palerma do Dieter nos lábios.

Não, Dieter beijara-a.

Na janela de um andar superior, a sombra de um homem atrás das cortinas abanou os braços e abraçou a sombra da rapariga que era Žofie-Helene ao chegar a casa e cumprimentar o pai. Só que o pai de Žofie morrera. Stephan observou com atenção e distinguiu a silhueta de cócoras de Otto Perger. Ambas as sombras estavam fundidas num abraço de amor e de alívio. Não devia olhar e sabia. Devia virar-se e voltar para o subsolo, chegar até casa. No entanto, ficou ali enquanto a sombra do avô e a sombra da neta se afastavam e falavam, enquanto Žofie se esticava para dar um beijo na face do avô. Os óculos tocariam na face do avô, a pele tocaria na pele do avô.

Desapareceu da janela, mas a sombra reapareceu segundos mais tarde, segurando alguma coisa. Começaram a ouvir-se muito levemente as primeiras notas da Suíte N. 1 para violoncelo de Bach, misturando-se com as buzinas longínquas e os gritos de júbilo das pessoas, com o futuro desconhecido daquilo em que Viena se transformaria da noite para o dia. E, mesmo assim, Stephan ficou ali a olhar, a imaginar o que seria abraçar o corpo esbelto de Žofie, sentir a pressão dos seus seios, beijá-la nos lábios, na base do pescoço, onde o colar do infinito que não lhe fora oferecido pelo pai acariciava a sua pele nua.

O último comboio para a liberdade

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