Читать книгу Mestres da Poesia - Mário de Andrade - Mário de Andrade, August Nemo, John Dos Passos - Страница 12

Devastação

Оглавление

Já foi aqui a civilização.

Brilhou a luz. Cantou a fé. Riu o trabalho.

– Mas no rebanho há-de haver sempre algum tresmalho:

tresmalhou a afeição;

e veio a derrocada.


Seguindo os largos rios nos seus cursos,

nas faldas da cadeia abruta e torturada,

junto ao primeiro roble secular,

muito antes, tinham vindo os homens se agrupar,

na defesa comum contra as renas e os ursos.


– E a esperança brilhou, como sempre, a primeira.


Conseguiram vencer. O último urso brama,

e rebenta-lhe o crânio o machado de pedra…

Já pascem, junto ao lar, domesticadas renas;

o homem pensa em plantar, e o terreno se redra…

Enfim, na encantação de amplas tardes serenas,

– canta no alqueive o rouxinol, a terra cheira –

ao convívio do bem-estar,

o homem pode mirar a companheira

e colocá-la num andor…

E quando, pelas manhãs claras,

avoaçou a calhandra sobre as searas,

houve searas também, plantadas pelo amor.


– E o amor brilhou em cada lar.


Pelo trabalho, pelo engenho o homem procura

fortificar então sua ventura.

É só lançar a mão: e mais, e mais,

grassa na concha dos convales calmos

a poesia alourada dos trigais…

…É só lançar a voz: e sobre o monte,

e sobre o vale, e no horizonte,

e em toda parte lhe respondem outras vozes…

Sobem os fumos pelo céu – que ao fogo

já se derretem os metais –

já se não temem animais ferozes;

tudo é progresso!… Então, reunidos no sopé

da cadeia, a cantar, como em glórias e salmos,

soltam aos ares o primeiro rogo…


– E rebrilhou a fé.


Cria-se o livro. Os homens pensam.

Pensam e agitam-se em tumulto.

Por sobre os seus trabalhos paira a benção:

e todos os trabalhos tomam vulto;

O saber suspicaz penetra o alto segredo

da vida. É tudo um labutar de ciência.

O homem afoita-se, descobre, perde o medo…


– E brilha, altiva e forte, a inteligência.


E ele atinge afinal o cume do Jungfrau.

Olha em redor e vê, na campina tamanha,

uma herança que é sua e que se perde além:

e tem um pensamento mau.

Ele atingiu o cume da montanha!

Só ele é grande, mais ninguém!

Cogita, e se entremeia em labirintos

de sofismas agudos; e, infeliz!

diz tudo o que não pensa ou que não sente,

mas o que sente ou pensa nunca diz.

Constrói teorias, alevanta em plintos

novo ideal, que lhe é Deus; e, indiferente

encara o mundo e nada o maravilha…


– E o orgulho máximo e insensato, brilha.


Vem a rivalidade, a traição, a mentira,

o exagero da glória, a negação da falta;

Caim mata de novo Abel, – mas por mais alta

que sobressaia a eterna voz,

aos seus ouvidos não há voz que fira! –

Mesmos os Abéis tornaram-se Cains;

e os homens todos, na avareza atroz,

ganiram, defendendo os bens, como mastins…

A afeição tresmalhou. E no esterco fecundo

de mil invejas e ambições, abrolha

a flor de púrpura da guerra… E o mundo

todo, a tremer nos seus arcanos olha.


Nesse ponto do globo, onde o passado

viu continuar, em surto resplendente,

as civilizações do antigo oriente,

nas águas batismais das energias novas,

tudo é um imenso plaino devastado!


O homem voltou ao seu estado primitivo:

blasfema, odeia, trai, e sepulta-se vivo

em trincheiras, sinistras como covas…


Cruza os espaços, rebentando, atroa

a cólera do obus;

e no arruído, no choque e na fumaça,

a civilização perde a coroa,

e treme, e foge, e tomba e se espedaça,

desertando da grande luz!…


Diante de tanto mal e tanta ruína,

de tanta inveja parda e estulta,

diante desse ódio frio e cru,

pálida, imóvel, trágica e divina,

sobre a devastação que cresce e avulta,

surgiu a minha dor, como um mármore nu.


Surgiu, cresceu, e, imensamente branca,

com o branco triste dos enfermos,

na compunção atroz do seu sofrer,

a minha dor sem lágrimas, nos ermos

onde o último eco dos canhões estanca,

gelou o íntimo gesto e nada quis dizer.


Apenas, a sorrir, num sorriso que punge,

pálida, imóvel, trágica e divina,

olha sem ver para a devastação…

A esperança talvez lhe santifica e unge

o olhar, mas o sorriso, o sorriso que a mina,

trai o penoso fel duma desilusão.

Mestres da Poesia - Mário de Andrade

Подняться наверх