Читать книгу Aterrador - Renato da Silva Moreira - Страница 10
Оглавление1. Rei morto, rei posto.
Tive o mesmo sonho outra vez. Devo parar de comer antes de dormir, ou deixar de dormir depois de comer. Ideia: fazer uma lista relacionando os ingredientes ingeridos na última refeição do dia e os sonhos consequentes. Noite anterior: fettuccine al tartufo – enterro de meu pai.
Como em todo funeral de filme, chovia. Tanto na lembrança real como no sonho. O lugar estava lotado. Guarda-chuvas negros obrigavam as pessoas a manter certa distância umas das outras. Leila chorava copiosamente para fazer-se digna da herança. As lágrimas podem ser falsas, mas a alegria que ela proporcionou ao meu pai foi verdadeira, portanto ela merece. Tio Gildo é o mestre de cerimônias. Posta-se ao meu lado como uma esfinge protegendo minha paciência. Posso adivinhar suas três perguntas internas antes de deixar qualquer engravatado se aproximar de mim: 1. Qual o cargo do indivíduo dentro da empresa? 2. Quais são suas chances de ascensão depois do falecimento do presidente? 3. Esta ascensão, fortaleceria a mim ou ao meu sobrinho? Seguindo esta lógica simples, tio Gildo só deixa se aproximar de mim os seus puxa-sacos, não os meus.
Chovia. Gotas copiosas caiam sobre o féretro. Padre Agostino fazia o elogio de meu pai: santo Amauri, protetor dos fracos e oprimidos. Um gigante entre os homens, capaz de erguer um império apenas com o engenho de sua mente e a força do seu braço, duas dádivas que Deus ofereceu-lhe para trazer prosperidade à vizinhança. Meu pai sorria dentro do caixão. Cada pingo de chuva era uma afirmação: você é bom, você é bom. Da minha parte nunca vi meu pai usar “a força do seu braço”: sempre havia algum empregado disposto a fazê-lo no seu lugar. Claro, padre Agostino fala de maneira figurada. Nota mental: nunca levar um padre ao pé da letra.
A chuva compensa a ausência do choro entre os diplomatas. Eraldo espreme os olhos em busca de lágrimas. Aproveita um dos fios d’água que escorre do guarda-chuva para molhar os dedos e levar aos olhos em um gesto disfarçado.
Nunca vou saber se meu pai teve algum amigo de verdade. O velho era cativante, possuía um carisma natural. Lembro de uma de suas excursões anônimas que fizemos juntos. Inspirado pelo califa Harun al-Rashid, o velho se disfarçava de pobre para lidar com o povo. E mesmo nessa situação, supostamente sem ter nada de material para oferecer, meu pai tinha uma presença marcante. Quando falava, a gente ouvia-lhe e tratava-lhe com respeito e admiração. Mas de que valiam suas qualidades em meio a uma trupe de sangue-sugas? A diretoria da empresa é um ninho de víboras. Só querem saber de tirar proveito e são capazes das maiores acrobacias em busca de recompensa. E divirto-me com isso como se desse comida aos macacos. Veja o Eraldo. Aí está ele molhando mais uma vez os olhos com a água da chuva. Se o fizer uma terceira vez sem que ninguém mais perceba dar-lhe-ei uma promoção.
Mamãe não gostava que agisse assim. Dizia que anel de ouro não é para focinho de porco. Que quem compra afeto acaba sem teto. Santa mãezinha! Ela com certeza saberia uma medicina para espantar meus pesadelos. Em seu funeral também chovia, mas então eu chorava de verdade. Sequei com o tempo. Há onze anos, nos meus tenros dezesseis, tudo me emocionava. Agora resta-me uma máscara de alegria, uma postagem sorridente nas redes sociais e a satisfação digital de muitas curtidas.
Tio Gildo arranja logo uma saída para minha falta de lágrimas. Comenta para um grupo ao redor em um tom perfeito entre discreto e relevante:
– O pobre Enzo já sofreu tanto que nem chora mais... Primeiro a mãe, agora o pai. Sofrimento maior deixa a gente assim, perplexo. Queria poder emprestar minhas lágrimas para ele. Mas as lágrimas de quem perdeu o irmão não valem o lamento de um filho que perdeu o pai.
Esse é o tio Gildo que conheço, um mestre em massagear o ego alheio enquanto pontua sutilmente suas próprias qualidades e resignação. Sua estratégia só não funciona muito bem quando se trata de Luigi. O amor que tem pelo seu filho é tão grande, que ele não pode evitar de elogiá-lo descaradamente sempre que pode. Ele sabe que a melhor estratégia seria deixar Luigi ganhar respeito por si próprio, por isso sempre faz um adendo forçado depois de exaltá-lo:
– Luigi não pôde vir. Está doente. Colheu febre depois de passar uma noite ao relento, trabalhando como voluntário. Esse rapaz é mesmo um anjo, não sabe mais o que fazer para ajudar na nossa organização beneficente! Digo para ele, filho, você é sobrinho do presidente, não precisa se esforçar tanto. Mas ele não quer saber e diz: pai, se não trabalhar tanto ou mais que você ou o tio, ninguém nunca me respeitará. Esse menino vale ouro. Ouro!
E vale mesmo. Cada vez que Luigi decide fazer uma das suas viagens beneficentes milhares de euros são desviados, lavados, passados por debaixo da mesa e por dentro da manga. “Noite ao relento trabalhando como voluntário” – até parece que ele estava entregando sopa aos moradores de rua. Sua “febre” se chama “gonorreia” e seu serviço voluntário foi espalhar seu sêmen aos úteros de incontáveis meninas sulistas miseráveis.
Chove lá fora. Chove na minha lembrança e nos meus sonhos. Observo o contorno dos prédios através da janela do meu escritório, na cobertura da nossa sede em Milão. Tudo parece cinzento. Chamo Zeleide pelo viva-voz, peço que desmarque meus compromissos para essa semana e que prepare o Tappeto Magico. Cansei dessa chuva, vou dar uma volta pelo sul. Tenho um império para administrar e preciso estar de bom humor para tanto.
Nota mental: trocar o nome do jato particular. Só meu pai mesmo com seu sonho de califa para pensar em algo tão antiquado como Tappeto Magico. Ideias:
Força Aérea 66: subverter o Força Aérea 1 com um conceito beatnik.
Pégaso: batido, mas classudo.
Fênix: hmmmm...
Holandês Voador: yeah!
Millennium Falcon: por que não?
[ ]: gostei. Acho que vou ficar com esse.
Jorge | Kyara | Enzo | Leitor | |
Planta | Lótus | Orquídea | Narciso | |
Bicho | Cigarra | Borboleta | Formiga | |
Parte da Vila | Banho | Borboletário | Jardim | |
Rosa dos Ventos | Sul | Leste | Norte | |
Divindade Grega | Dionísio | Dafne | Apolo | |
Personagem do Pinocchio | Grilo Falante | Pinocchio | Geppetto | |
Energia Bloqueada | Raiva | Medo | Tristeza | |
Emoção Suplente | Tristeza no lugar da raiva | Vergonha no lugar do medo | Raiva no lugar da tristeza | |
Prática | Meditação | Desenho | Yoga | |
Notas | Dó | Mi | Sol | |
Sílabas | ME HUNG | OM MA | NI PE | |
Cores | Vermelho e azul marinho | Branco e verde | Amarelo e ciano | |
Purificação | Cobiça e ira | Orgulho e inveja | Desejo e estupidez | |
Paramita | dana paramita: generosidade, doaçãoshanti paramita: paciência, tolerância, auto domínio, aceitação, resistência | dhyana paramita: meditação, concentração, contemplaçãovirya paramita: energia, diligência, vigor, esforço | sila paramita: virtude, conduta apropriadaprajna paramita: realização direta do vazio e da interdependência | |
Sabedoria | Discernimento e espelho | Equanimidade e disposição | Sabedoria primordial e realidade absoluta |