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Caia na estrada e perigas ver8

Deixo as quatro paredes e ofereço uma face ao meu livro limitando a imaginação do que poderia ter sido autores sempre parecem maiores na imaginação autógrafos dedicatórias flores e entrevistas eis o escritor fora do seu habitat animal no zoológico recebendo elogios e pipocas por entre as grades carinho J ponto carinho J ponto carinho J ponto assim assino os exemplares com ares de dissimulada humildade careço da facilidade de preparar um rosto diante do público e prego um sorriso na cara queria estar insatisfeito mas a verdade é que me compraz massageiem meu ego reconheçam meu esforço exaltem minha capacidade depois de tanta solidão e dor de parto eis uma tarde uma noite um átimo de glória e o escritor endurecido rígido asceta se desfaz num mar de aclamação vinho louros e louvores aproveita desgraçado deleita bebe abraça e beija que logo vem o frio e já se erguem outras quatro paredes e de novo as dores do parto e as dedicatórias ficarão na memória não haverá mais pipoca só você e a dolorosa percepção de si mesmo da crueza das coisas da coisificação da gente sente invente o prazer se não há depois não haverá mais tempo para regozijo que essa gente tem memória fraca e aí vem a inundação do novo jornal pingando sangue nas notícias de última hora não há tempo se não o agora fora com toda consideração do absurdo vista a camisa e dê uma pirueta pipocas pipocas pipocas bom rapaz sorria para foto X X X o mesmo sorriso no rosto já não me desgruda da face ah se fosse sempre assim desfrute até ficar farto não seja ingrato que logo vem o quarto e as dores do parto alegria de pobre dura pouco de escritor menos ainda e de escritor pobre então mas você até que anda bem faceiro onde andam seus modos gregos seus intervalos sua gruta de eremita seu silêncio seus pontos e suas vírgulas ora deixo-os para o leitor esse preguiçoso quer tudo de mão beijada isso mesmo senhor burguês indivíduo morno mediano deixe as questões profundas para zaratustra ele que vá pra montanha e que se exploda e quando coçar a consciência quando não houver mais lenha pra fornalha intelectualoide a gente desenterra um desses sábios ascetas e voilà algo do que se falar nas rodinhas cultas mas não ouse entender o que o sábio diz que seu mundinho pequeno desmorona e a ordem que você tanto preza e mantém com o suor do seu trabalho enquanto você permanece sentado a ordenzinha tão bonitinha e seu trabalhinho tudo vai pro beleléuzinho e você não saberá o que fazer porque já não lhe resta energia para caminhar só lhe resta mexer a bunda no assento desconfortável mas o que é isso calúnia calúnia calma assim a gente se ofende e não adianta nada aumentar o coro de gritos já bastam os malditos rimbaud baudelaire e depois deles nada de novo no front não me venha chorar as pitangas nem praguejar que isso é coisa de escritor classe média preocupado com as contas pra pagar eu sei eu sei só amor cura compaixão compreensão jesus buda aí está o caminho o homem ainda tem jeito esse beco tem saída amanhã vai ser outro dia eu sei eu sei é que às vezes me escapa estou tão acostumado a levar porrada que não sei o que fazer com as palmas é brincadeira deixa pra lá você é bom é bom é bom você é vida você é o sol e quando as nuvens se dissiparem isso assim carinho carinho mansinho mansinho isso assim quietinho

E Kyara me vem com essa bomba! Sabe de tudo, faz tempo que lê minhas notas. Como pôde guardar segredo por tanto tempo e deixar seguir com minhas relações? Lendo passiva os comentários no dia seguinte... Absurdo. Se fosse comigo, logo de cara iria tirar satisfação. Perdeu peso, estava apática, sofrendo. E eu tonto não imaginava o que fosse. Se ela tivesse me parado no começo, me mostrado a dor que lhe causava, talvez eu tivesse abandonado minhas aventuras. Mas agora a gente nunca vai saber. Me resta a dor de perceber que por todo esse tempo nos enganamos mutuamente. Pensava que se ela soubesse me abandonaria. Mas não: passou todo esse tempo lendo minhas coisas às escondidas. Absurdo! Só revelou porque eu estava a ponto de viajar de novo e ela sabe (por ter lido) que quando viajo.... No começo, neguei. Não sabia o que fazer. Na minha cabeça ela nunca me perdoaria. Disse que era tudo ficção mas isso só piorou as coisas. Ela sabe que é verdade. Justo eu, que sempre me gabei de ser sincero, na vida e na arte. Que vergonha! E me perguntam se esse livro é autobiográfico... Sim, sim. Só digo a verdade, sempre a verdade, nada mais que a verdade, amém. Palmas! Palmas para o hipócrita, para o mentiroso. Mentiroso sim, pois o silêncio também é uma forma de mentira. Egoísta. De que vale oferecer amor de mão beijada pelas ruas enquanto sua esposa sofre em casa? Sim, esposa, pois nos casamos. Ela disse sim, mesmo sabendo de todas minhas aventuras. E eu, sem saber que ela sabia, disse sim também. Sim ao casamento, sim à bênção do estado, sim à papelada, sim à burocracia. Eu que pensava que se um dia fosse me casar seria debaixo de uma cachoeira e não em um cartório. Promete ser fiel na saúde e na doença, na alegria e na tristeza? Sim. Se bem que, de lá pra cá, não quebrei meus votos. Minhas escapadas se reduziram pouco a pouco no ano passado e pretendia (ou pretendo) oferecer exclusividade do casamento em diante. Mas agora, de que adianta? O mal já está feito. Ela me perdoou com a razão. Se casou comigo, mas e seu coração? Coração orgulhoso de geminiana que nunca se curou do rompimento entre sua família. Me pergunto se esse coração duro é capaz de perdoar de verdade ou se esse casamento, essa viagem, não passa de uma reação em cadeia, um trem impossível de deter mesmo descarrilhado. E ela levando como vai levando tudo, incapaz de uma ação enérgica, de uma mudança de rumo. Ao menos ela se graduou na faculdade. E com que dificuldade! Tive que ficar no seu pé e insistir muito, mas afinal seu trabalho foi aplaudido. Quem sabe tem conserto essa história de nós dois? Basta amor, basta querer, basta esforçar-se no caminho certo. Quem sabe ela esteja certa na sua intuição: saindo daqui tudo será diferente. Tenho vontade de trocar energia com a terra, viver uma utopia concreta.9 Não quero cair na armadilha do núcleo familiar limitado. Bem acho que vem daí minha inquietude. Talvez minha libido exacerbada seja uma válvula de escape. Bastaria a vida em comunidade para que pudesse me sentir parte de algo maior e vivenciar a diversidade que não necessariamente tivesse que ser sexual. Então poderia oferecer de bom grado o que Kya me pede e me aprofundar em suas riquezas. Conhecer bem uma única mulher, ao invés de várias superficialmente. Apesar de que foram especiais meus relacionamentos extraconjugais, mesmo sendo fugazes. E mesmo que só por um instante, uma noite, tocamos a essência um do outro. Assim, me vejo numa balança sem saber mais para que lado cair. Apenas sei que o amor não é errado. Feito com adoração, é sagrado. Mas se dividir essa energia faz sofrer alguém que amo, então silêncio.

Minha primeira novela acaba de ser publicada, justo quando finalizo minha segunda coletânea de contos. Por falta de algo mais substancial, preparo um Miojo.10 A viagem está marcada. Avante para novos horizontes, quais fronteiras! Quebre a rotina, aprenda com as diferenças. Antes de partir, planto uma muda de mariri e outra de chacrona. Peço por força, coragem, firmeza e atenção. Mariri e chacrona unidos são um só.

8 Nome da música dos Novos Baianos, do álbum homônimo de 1976.

9 Ver conceito de utopia de Ernst Bloch.

10 Título do livro ainda inédito.

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