Читать книгу Aterrador - Renato da Silva Moreira - Страница 11
ОглавлениеNão me venha achar ruim porque você me conheceu assim3
Vai, Dionísio. Faça seu elogio ao prazer e à loucura! Defenda o indefensável, o ilegal, o imoral e o que dura pouco. Que oco vai o interior da gente. Que mente e finge que engana. Vai, sublime boêmio. Transforma em sagrada a alma profana. Lá vem mais um milênio. E nós aqui, bebendo cana...
Tentei. Expliquei. Demonstrei. Que existe um amor maior, sem propriedade ou fronteira. Que o ciúmes é a maior besteira, filho do silêncio e da ignorância, pai do apego e do ódio. Faço o que posso. Mas como dar uma cara, corpo de palavra ou efeito, a [ ] que me vai no peito?
A gente sabe que um só alimento não traz satisfação. Que a paixão exclusiva envelhece, tem idade, enquanto a vida é infinita em sua diversidade.
Nosso costume é uma camisa de força. Penduraram na forca todos que tentaram liberar o amor. Não é à toa, que ele virou um bem privado. Tudo nesse mundo foi rotulado, privatizado e vendido. E enquanto as monoculturas destroem a terra sob nossos pés, a monogamia apodrece o coração da gente.
Acredito que duas pessoas possam se amar e se bastar uma para outra até o fim da vida. Conheci um ou dois casais assim. Um ou dois, de quantos? São flores raras, pinguins que no futuro devem ser protegidos da extinção. Mas daí todo esse aparato midiático de princesa e príncipe encantados... Por favor! A gente cresce sendo convencido de que nosso instinto está errado. Que todo o desejo deve ser controlado em prol da relação “ideal”. Ligue o rádio. Acenda a TV. Você verá quantas vezes se fala desse amor daninho entre só eu e você. “Só quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno!”4
Dói, é... dói. Ninguém quer bulir o assunto. Ninguém quer lidar com defunto. E depois de montar sua armadura, lá vai o homem seguindo os passos do pai, continuando o que não entende, macacos se espancando sem banana e sem necessidade de castigo. Um dia o homem olhou pro céu e viu um Deus separado de si. Vestiu a máscara do ego. Botou-se à parte da natureza e esqueceu como se ama. O abraço genital5 virou sexo, prazer simplório carregado de frustração. Agora Deus está morto. Mas a máscara tomou o lugar do rosto. E desde pequeno a gente aprende que tem que ser fiel que nem os nossos pais. Amém.
Mas quem é “a gente”? O povo? A humanidade? Todos nós? Que pretensão a minha botar todos no mesmo saco, querer que você seja o mesmo que eu. Posso chamar de “nós” meu eu, fruto do agora, e o leitor de um futuro distante? Pois de agora em diante irei me referir somente a mim. Sou eu quem leva essa armadura e essa máscara. Sou eu quem carrega essa farsa. Eu que, sem querer, imito meu pai e sonho com a princesa. Eu, que não me satisfaço com uma só beleza.
Kya, Kya, Kya.
Kya se assusta com a mordida, que nem machuca, nem é ardida. Imagina o que seria se fosse morder a sério. Que doces impropérios me diria? Que sou tolo? Bobo? Envolto em sonho sexy e suado de desejos córneos e alados? Kya se deita na cama e quer que o mundo se exploda. Sem versos, sem loas. Quer que tudo acabe em lua cheia. Vira de lado, disfarça o embaraço, expande suas veias. No seu sangue corre sede e preguiça. Seu quadril empinado me conquista, me emaranha em suas teias. Kya não liga a mínima se o verso vai dar em rima. Mal sabe que presencia o futuro num bêbado vadio e casmurro que em vão solta fumaça. Come meus papéis feito traça. Acha graça na minha desgraça. Desconversa meus versos. Quer minha batuta de maestro e não minha fala desbocada.
Pois aqui estou com minha princesa tão desejada. Mas como diria Wilde, no mundo há apenas duas tragédias: uma é não conseguir o que se quer e a outra é justamente consegui-lo. Para dizer bem a verdade, não era uma princesa que queria. Era uma parceira. Alguém com quem dividir o amor livre. Pois posso resistir a tudo, menos à tentação. E “a única maneira de libertar-se de uma tentação é entregar-se a ela. Resista, e sua alma adoecerá de desejo das coisas que ela a si mesma se proibiu, com o desejo daquilo que suas leis monstruosas tornaram monstruoso e ilícito”.
Mas Kya não quer saber de amor livre. Para ela, isso é monstruoso e ilícito. Como algo que dá tanto prazer e traz tanto bem-estar pode ser mal? O amor cura. Quer dizer que para fazer o bem a uma pessoa, tenho que me privar de fazê-lo a muitas outras? Onde está o bem nisso? Confortar o medo que Kya tem de me perder? Pois é justamente assim que ela me perde, ao querer me prender. A mim não me resta alternativa senão aquiescer. Pois a amo e não quero me separar. Prometi, tentarei acalmar meu facho. Mas acho que não será fácil. O amor é meu tudo, meu Yin, meu Yang e meu Jung. Meu aquilo, meu isso, meu vício. Me abster completamente da diversidade me deixará louco. Talvez... reduzindo... pouco a pouco...
E quem sabe com o tempo, Kya mude de ideia.
Desde que viemos morar juntos ando mais tranquilo. Enquanto termino mais um livro de contos, minha primeira novela, escrita anos atrás, está a ponto de ser lançada. Impressionante como acabo publicando sem me preocupar em publicar. Conheci o editor por acaso. É que acho que a arte tem pernas próprias. O tempo que tenho entre um trabalho e outro, entre ganhar o pão de cada dia, prefiro aproveitar escrevendo ao invés de correr atrás de publicação. Não escrevo por glória, riqueza ou reconhecimento, mas por devoção e autoconhecimento. Sinto pena dos escritores que perdem o sono pensando em publicar ao invés de irem dormir (e despertar) com seus escritos.
E com mais um livro saindo do forno, deixo para trás mais uma pele de serpente. Me liberto das dores do parto. Mas um livro não é um filho, já nasce independente, não necessita do cuidado do pai. Cai no mundo sobre suas patas e segue seu próprio caminho. Sozinho, encontra quem tem que encontrar. E saio mais uma vez de banda. “Há quem sambe diferente noutras terras, outra gente, um batuque de matar”.6
Dessa vez, não parto só. Kyara vem comigo. Andiamo in Italia que mi fará piaccere conoscere il bel paese.7 Minha papelada está pronta, foi reconhecida minha cidadania portuguesa. Agora só falta resolver o que toca a Kyara. Sem lenço, sem documento, quem diria, nos resta o casamento.
3 Trecho da música “Tem Dó” de Baden Powell e Vinicius de Moraes.
4 Trecho da música “Quero que Vá Tudo pro Inferno”. de Erasmo Carlos e Roberto Carlos.
5 Termo utilizado por Wilhelm Reich.
6 Trecho da música Brasil Pandeiro de Assis Valente.
7 “Vamos à Itália que terei prazer em conhecer o belo país”.