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21/03/2015

Faltam duas semanas para a nossa viagem e já nem sei mais o que pensar. Já passei por todos os níveis de ansiedade e estresse e agora simplesmente me sinto vazia. Semana passada foi o aniversário de Jorge e ele aceitou o convite da Sociedade Panteísta para fazer o chá da ayahuasca. Passou todo o fim de semana colhendo folhas e limpando troncos, fervendo e preparando o chá. Como o convite não se estendia a mim, que sou nova na Sociedade, fiz uma visita rápida na sexta-feira 13, dia do seu aniversário. Levei um bolo que me custou uma grana e que afinal era puro açúcar enfeitado. Depois, só nos vimos na noite de domingo, na cerimônia do feitio. Quando acabou, Jorge trouxe um pé de cada planta e plantou no nosso quintal.

Semana passada também ele terminou de escrever seu livro de contos. Acompanhá-lo durante o processo, ler as primeiras versões e ajudá-lo a corrigir foi muito marcante para mim. Principalmente quando ele escrevia sobre algo que havíamos vivido juntos. A forma de Jorge trabalhar faz tudo parecer fácil. Seu processo criativo é leve e espontâneo. Simplesmente se senta para escrever e escreve. Quando termina, lê e relê milhares de vezes. Foi assim que em seis meses ele terminou mais um livro. Achava que os artistas saíam buscando por inspiração como quem caça borboletas e que fossem sujeitos ao acaso. Porém Jorge trabalha com método e quando quer escrever não sai caçando borboletas, mas encontra beleza em qualquer formiga.

Quinta-feira foi o lançamento do seu livro. Ele parecia contente com toda a atenção que recebia. Não parou um minuto de autografar e foi o único dos escritores presentes, cinco no total, que vendeu todas as cópias. Porém, via como ele às vezes parecia se desconectar e olhar perdido para o nada. Logo, ele voltava do além com seu sorriso e o aterrissava na pessoa diante de si. Desde que tivemos aquela conversa, ele anda mais introspectivo que o normal, preocupado e diria mesmo triste. Tive que revelar a ele que sabia de tudo, pois ele estava a ponto de fazer mais uma das suas viagens e eu já não aguentava mais. Ele precisou de um tempo para processar a informação. Na verdade, acho que ainda está processando. Ele negou tudo, disse que era ficção, uma maneira de extravasar platonicamente. Prometeu que se livrou da lista de suas amantes, mas acho que ele deve ter escondido em algum lugar. Sei que ele tem a pretensão de compilar suas experiências sensuais em um livro privado e não acho que ele se livraria assim sem mais nem menos de todo o material que reuniu ao longo dos anos.

Vai fazer três meses que nos casamos e embora tenha recuperado um pouco da minha vitalidade (junto com alguns quilinhos) Jorge não me parece muito bem. O casamento no cartório foi muito simples. Meus pais nos acompanharam. Nada de festa. Depois de assinar os papéis, fomos almoçar em um restaurante japonês, só nós dois. Jorge estava de bom humor e eu que nunca imaginei me casar, vivia aquele dia como se fosse um dia na vida de outra pessoa.

Estive relendo minhas anotações e percebi o quanto falo dos outros. Desde que estou com Jorge, por exemplo, só falo dele. É como se o meu Eu fosse uma reação ao outro. Olho mais para fora do que para dentro e me pergunto se isso não é uma fuga. Talvez tenha medo do que encontraria caso voltasse os olhos para meu interior. Talvez [ ]. Talvez seja insegura e tenha mais medo de não encontrar nada interessante do que encontrar algo terrível. E mesmo que encontrasse algo peculiar, teria o talento para transpor em imagens, em arte, meus sentimentos? Jorge diz que se quero ser pintora obviamente tenho que pintar. Mas ele não entende que agora não é o momento, que não estou pronta. Antes era a faculdade, agora a viagem... Tudo isso me faz sentir banal. Para ele é fácil ter segurança, ao menos ele sabe fazer bem alguma coisa. Sabe o que quer da vida: viver bem e escrever. Mas e eu? O que sei fazer? Não sou boa em nada. Depois de estudar e trabalhar com cinema tenho minhas dúvidas se quero mesmo seguir carreira. Me pergunto se a ideia de pintar não é só um sonho infantil. Ou então o que? O que vou fazer dessa minha vida?

Minhas perguntas caem todas no vazio. Pensar nessas coisas cansa. Minha mente fica rodando que nem um carrossel e volta sempre para o mesmo lugar. Vejo o Jorge fazendo uma brincadeira como se fosse algo distante, como se fosse com outra pessoa com quem ele brincasse e não comigo. Mas também, por que ele precisou de outras mulheres enquanto estávamos juntos? Quer dizer que não sou boa o suficiente? Mas o que ele viu em mim afinal?

Ele tenta me animar, brincar, me fazer cócegas, contar piadas. Quando dou risada ele se derrete todo. Mas de uns tempos para cá ando um tanto séria. É esse carrossel na minha cabeça. E me sento sempre no cavalo branco da inação. Tudo começa e termina com ele. É o cavalo que diz: foda-se, não quero fazer nada, não quero pensar em nada. Amanhã. Amanhã a gente vai estar na Itália, tudo vai dar certo. Amanhã vou pintar. Amanhã eu e o Jorge finalmente vamos nos acertar. E assim o cavalo branco dá lugar ao preto que diz “mas e se”... E se eu não for boa o suficiente? E se ele me deixar? Logo vem o cavalo marrom da estupidez, o verde do ciúmes, o vermelho da ira, o amarelo [ ]. Eles vão se sucedendo até voltar ao branco. Foda-se. Amanhã...

E por falar em amanhã, ao menos o lugar onde ficaremos já parece resolvido, por mais absurdo que possa parecer. Jorge respondeu aquele anúncio maluco sem foto e recebemos a resposta um mês atrás:

Caros Jorge e Kyara,

Agradecemos o interesse e lhes parabenizamos pela excelente resposta que supera desmesuradamente em conteúdo, forma, estilo e humor qualquer outro contato que recebemos. Estamos cientes de que nosso anúncio não é nada convencional e os rasgos poéticos de Jorge nos parecem mais de acordo com nossa proposta do que tantos currículos que nos foram enviados. Além disso, nos encanta a ideia de que as duas vagas sejam preenchidas por um casal. Assim, vocês poderão fazer companhia um ao outro sem se aborrecerem com a calmaria do povoado. Esperamos que passem bons momentos e nos encantaria dividir um pouco do tempo livre com vocês discutindo sobre a vida, o universo e tudo mais.

Em anexo, vocês encontrarão informações sobre a casa, fotos e contatos. Qualquer dúvida, podem falar diretamente comigo. O proprietário é uma pessoa muito reservada e ocupada. Vocês devem conhecê-lo mais adiante.

Seguimos em contato para acertar os detalhes.

Um abraço,

Alessandro.

Então vem uma lista com todas as comodidades da casa e as fotos. Casa? A propriedade inclui dezenas de quartos, restaurante, fazenda, casa de verão e até um borboletário! Com certeza é preciso um mói de gente para manter esse lugar. Só o jardim, vixi! Agora não sei que frescura é essa desse anúncio. Essa gente tem dinheiro, podem pagar quantos funcionários quiserem. Para quê procurar por voluntários? Se bem que rico é tudo pirangueiro mesmo. Segundo Jorge, isso deve ser algum velhinho paranóico querendo companhia. Ele acha que nosso trabalho vai ser mais conversar com o tiozinho do que outra coisa, o que para gente é ótimo, porque assim praticamos o italiano.

Não sei não. Tudo isso soa muito fantástico para o meu gosto. De todos modos, agora é tarde demais. Jorge já meteu isso na cabeça, já confirmamos e faltam só duas semanas para a viagem. Duas semanas. Aí vem o cavalo branco. Depois o preto, o marrom, o verde, o vermelho...

Busco dentro de mim uma faísca de alegria. Afinal, estou fazendo o que me propus, sair de Recife, viajar, conhecer outros lugares. Arranco uma folha do caderno e monto um aviãozinho. Faço um pedido e o lanço no ar. Seja o que o destino quiser.

Escreva nesta folha o nome de um lugar que gostaria de visitar. Arranque-a, faça um aviãozinho e jogue o mais longe que puder.

Aterrador

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